quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

PRECONCEITO AO SAPO BARBUDO (161)


"CRER É, ANTES DE TUDO, TER MEDO"
Eu hoje queria passar batido, não escrevinhar nada, ficar no meu canto, ler, estudar, tentar vender meus caraminguás, permanecer entocado, sem saber das notícias externas. Fico assim, acabrunhado e contido, cada vez que me deparo com uma leitura a me tocar. Foram duas e na junção delas, algo para meu quase retiro. Escrevo, quase, pois não resisti e quando estava pronto para bater perna - ir dar de comida pro meu cão -, cai uma chuva, recheada de trovões, raios e resolvo voltar, me acasalar, esquento um leite no micro-ondas e olhando pela janela, céu escuro, me ponho a juntar os dois escritos. Toara consiga.

Um livrinho comprado ano passado num sebo que não me lembro qual, o manifesto póstumo do diretor do Charlie Hebdo, o Char, assassinado cruelmente na redação do jornal exatamente por defender a liberdade total de escrevinhar e publicar algo como essa "Carta aos Escroques da Islamofobia que fazem o Jogo dos Raciustas" (editora Casa das Palavras RJ, 2015, 96 páginas). Peguei ontem, dele não mais me separei até terminar, grifei inteiro e estou cá ruminando o ali contido, diante de tanta iniquidade rolando por aí. Na França já matam por discordar de gente professando o ateísmo, mas tirando o sarro em tudo, inclusive em si mesmo e nos outros, inclusive nas religiões, no que elas possuem de mais perverso. Aqui ainda não, mas muito em breve, algo parecido.

Afirmo isso após ler também uma das matérias da edição da revista Piauí, edição de janeiro 2021, a "Nada é mais antigo que o passado recente - Um escritor conta sobre os 143 processos movidos contra ele por pastores da Igreja Universal". O escritor é o J.P.Cuenca, 42 anos e tendo sua vida revirada do avesso após publicar ano passado um tuíte satírico criticando a família Bolsonaro e a Igreja Universal. 

Foram mais de 150 processos, vindos dos mais diferentes lugares, além das agressões verbais, pressão, demissão, injúrias, perseguições e afins. Sua vida virou um inferno e uma via-crúcis judicial. Num certo momento ele desabafa e me vejo, eu e tantos no mesmo barco, uns mais agredidos, outros ainda não, mas todos bem encaminhados para serem admoestados e perseguidos: "O ataque que é feito contra mim é do tipo que tem como objetivo intimidar e viabilizar vozes críticas a poderosos. (...) cedo ou tarde, esse governo vai acabar. Como sempre ocorre. Mas esses indivíduos continuarão habitando o mundo, exatamente como antes".

Um já foi morto, outro sofre insana perseguição, tantos outros padecem, como Luís Nassif, Jean Wyllys e tantos outros, a maioria anônimos e padecendo de um mal, o de contrariar as forças que hoje se impõem como as mais poderosas, todas de extrema-direita. Quando a gente entra numa briga, tendo caráter, postura, firmeza de propósitos, algo difícil é ocorrer o recuo. Existe apoios, cada vez mais difíceis, mas quem adentra esse campo de luta, costuma não recuar, mesmo quando agredido. Na instalação do ver para crer, talvez paguem caro, com empregos, renda e até a vida. Sem esses o mundo não muda. A intolerância não pode prosperar e vencer. "Os fascistas encontraram nas redes sociais o recurso ideal para expressar com alarde todo seu ódio e estupidez. Seguem estimulados pela sensação de que, finalmente, alguém ouve seus grunhidos de hiena, mesmo que seja por meio das caretas de um bonequinho amarelo", protetiza Cuenca.

Charb foi morto quando, no auge dos ataques em Paris, via a luta libertária sendo substituída pela proteção e promoção de uma religião. Ele resistiu, não se entregou, acreditou na força da imagem e da palavra impressa contra o raciocínio torto dos contrários. "Uma religião não existe sem crentes. Um texto só se torna sagrado e eventualmente perigoso porque um leitor fanático decide aplicar de forma literal o que está escrito em seu livro de cabeceira. (...) ...o problema não é nem o Carão nem Bíblia, romances soporíferos, incoerentes e mal escritos, mas sim o fiel que lê o Corão e a Bíblia como se lesse as instruções de montagem de uma estante da Ikea", Charb.
Ambos foram processados e os motivos, banais para eles, grandiosos para os que tendo somente a religião como mola mestra, enxergam tudo segundo o que professa, nada mais. 

Charb era ateu convicto e escreve no final de seu manifesto algo que usaria como defesa contra os ataques: "...nenhum ateu irá jamais levá-los à justiça, vocês não receberão ameaças de morte, e suas instalações não serão destruídas. (...) Os ateus são perseguidos quase no mundo inteiro, mas nenhum destrói as obras de arte criadas por crentes para homenagear seu Deus. (...) Nenhum ateu reivindicará a existência de um racismo antiateu. (...) Nenhuma discriminação é menos ou mais grave do que outras". 

O cerco se fecha, a intolerância grassa, viceja e se frutifica. A vejo se multiplicando. O motivo de meu acabrunhamento hoje é este. Talvez tomando chuva melhore... Caraca, estamos cada vez mais rodeados de fundamentalistas.
OBS.: Vou escrever e publicar este texto em "drops", aos poucos. Mais tarde termino, vou tomar banho de chuva para ver se me acalmo. Volto em breve, molhado e recarregado...

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