segunda-feira, 1 de agosto de 2022

MEMÓRIA ORAL (283)

CRÔNICA DO ROUBO DE MEU CELULAR NO CENTRO DE BUENOS AIRES

Imprudência total de minha parte. Desde antes da saída de Bauru, para estadia de doze dias em Buenos Aires, fui devidamente avisado dos perigos de tirar fotos nas ruas de grandes centros urbanos, ainda mais tudo agravado com a situação social de Brasil e Argentina. Tanto aqui como lá, grande quantidade de famélicos nas ruas em situação não só de rua, mas de marginalidade. Na falta de condições de subsistência, muito agravada a condição humana e daí, um pulo para pequenos delitos, feitos em sua maioria para a continuidade da vida e sobrevivência. Padeci pelo descuido.

No domingo passado, ao sair do hotel, na calle Viamont, andávamos pela avenida Nove Julho, havíamos cruzado a avenida Corrientes, bem defronte o famoso Obelisco, marco principal da cidade de Buenos Aires, quando saco o celular do bolso, no meio da agitação do lugar, me posiciono para tirar uma foto de Ana Bia, quando sinto algo tocar minha levantada mão. Foi tudo tão rápido e o jovem ladrão, com blusa pampera, com motivos militares, desses camuflados, sai em dispara pelas ruas Diagonal e Caravelas, desembocando na rua Rivadavia. Eu correndo atrás, quando o perdi de vista. Desesperado, corria e gritava pelas ruas, com mochila às costas, que voltasse: "Eu te pago, volte, pago para me devolver".

Antes de correr atrás do rapaz, um grupo de moradores de rua deitados na esquina da Diagonal com Caravelas, haviam demonstrado conhecer o rapaz. Na volta da correria, ainda em desespero, converso com eles, junto de Ana. Foi quando Micaela, companheira de outro ali deitado ao seu lado, num colchão debaixo de uma marquise se apresenta e diz conhecer o rapaz. Pede mil pesos (em torno de 20 reais) para ir atrás dele e me trazer o celular de volta. Dou, Braian, seu companheiro vai e ela fica ao nosso lado conversando. Tudo presenciado por um segurança, de obra no local. Brian volta em dez minutos, diz ter falado com ele, mas ele não aceita voltar e quer mais dinheiro para entregar o celular. Dou mais 2 mil pesos (por volta de 40 reais) e aguardo. Essa vez, ele se vai nos confins do lugar junto de outro que se aproximou, de nome Roberto. Em instantes, Micaela que estava ao nosso lado, junta suas coisas, as deixa guardadas na obra, com permissão do segurança e se vai. Esperamos mais dez minutos e todos somem.

Instruído pelo segurança da obra, me diz que não voltarão, ele liga para a Polícia e em instantes aparecem. Relatamos o ocorrido e somos aconselhados a ir prestar depoimento da delegacia mais próxima, pois de posse deste documento poderia acionar o seguro da Vivo. Eles nos levam até a delegacia, isso já por volta das 12h e daí uma maratona, até de lá sairmos, por volta das 17h30. Fomos muito bem atendidos. A polícia de posse de meu depoimento localizou dois dos ladrões. Os vimos detidos dentro do carro policial, Micaela e o ladrão, que não sei o nome - faltavam Braian e Roberto. Pelas leis locais, fui ouvido, os identifiquei, mas a polícia nada mais pode fazer. O próximo passo é dado pelo juiz que, decidiu mantê-los detidos, porém ouví-los vai demorar. Ou seja, pelo meu leigo entendimento, se ambos fossem ouvido de imediato, talvez uma chance de localizar no dia o aparelho, mas com os outros dois soltos e os detidos sendo ouvidos não se sabe quando, quase nenhuma possibilidade de recuperar o aparelho. Foi-se o que era doce.

Volto pra Bauru no dia seguinte, segunda e não tenho mais notícias do andamento das investigações por lá. Tenho e-mail do policial que nos atendeu, chamado ao local, por ter conhecimento de português e da delegacia local. Fez o serviço de tradutor junto a nós. Presencio mais duas ocorrências - nenhuma de roubo -, onde policiais falam em inglês e alemão. Não nutro mais esperança de recuperação e o próximo passo é tentar algo pelo seguro da Vivo, recuperação das imagens e arquivos guardados na Nuvem, daí tocar a vida e se precaver mais para não ter repetida situações como a ocorrida. Teria feito um acordo com eles, ali no momento, para recuparer, mesmo ciente do erro deste ato. Talvez desespero, sangue quente quando do ocorrido. Hoje, dois dias após tudo, já em Bauru, sei que, o ocorrido se repete não só lá, mas por todos os lugares deste planeta, onde as desigualdades estão cada vez mais latentes e pulsantes. Estamos diante de um mundo onde tudo está aí exposto, mas poucos podem adquirir esse algo mais e daí, os excluídos fazem de tudo e mais um pouco para participar do butim. O jogo é este, talvez sejam as peças com menos culpa no quadro apresentado. Os entendo e compreendo, escrevo regularmente sobre esses temas. Gostaria, se tempo houvesse, de conhecer mais da realidade da Micaela e dos seus nas ruas, fazer um amplo apanhado da situação vivenciada por estes, que pouco se difere dos que vivem abandonados nas ruas de São Paulo, na denominada Cracolândia ou mesmo, nas esquinas de todas nossas grandes cidades. Mas tudo ocorreu justamente um dia antes de voltar. Com certeza, iria voltar e tentar contatá-los para contar algo segundo a versão de como vivem e são discriminados.

A minha perda foi somente material. De todas as cronicas que pude escrever, com vivências in loco pelas ruas de Buenos Aires, essa mais uma delas. Ter passado uma tarde de domingo inteira dentro de um plantão policial argentino me foi muito revelador. Muita coisa até então por mim totalmente desconhecida veio à tona. Não sabia, por exemplo que, lá não existe essa divisão de Polícia Civil, Militar, Rodoviária e Federal. Todas são concentradas numa só e assim agem, não existindo as divisões e disputas ocorridas aqui no Brasil. Outro fato revelador e constatado in loco, foi de como as mulheres são melhores e mais ágeis no aprontar da descrição de um BO policial. Enquanto os homens se enrolam e demonstram dificuldade de transcrição, elas se saem muito melhor e a narrativa flui muito rápido quando investidas diante de um relato e sua transcrição para o papel. Outro fato, diferente do que vejo aqui, é a forma de abordagem para o cidadão, principalmente o mais vulnerável. Não existe o aperto quando da prisão para revelar o ocorrido. Simplesmente, fazem a detenção, levam para a delegacia e aguardam a decisão de um juiz, que diante dos fatos narrados, toma a decisão dos próximos passos. Minha cronica sai de forma rápida, ainda pulsando algo bem pessoal, mas no frigir dos ovos, trata-se de uma experiência, dentre tantas outras tidas por lá, de algo que fui em busca, o algo mais de um país visitado, não só em busca de turismo, mas de histórias. Com essa minha, dá para construir uma bem minuciosa. Um dos policiais, ao me identificar como jornalista - periodista para eles -, me diz: "Nesta tarde tens diante de si um painel bem amplo para muita escrita e reflexão". Concordei.

OBS. 1:
Como é por demais importante contar com a presença de amigos por perto, quando de situações como a ocorrida, ainda mais em países com procedimentos diferentes dos que vivemos. Durante toda a tarde contamos com dois fiéis amigos, Adrián Jara e Sergio Bauer, moradores do bairro de Boedo, amigos de longa data, da convivência nos congressos acadêmicos. Algo mais do que indescritível tê-los por perto e, ao final, fazendo questão de nos deixar na portaria do hotel.

OBS. 2: "Então, esse fato ocorrido com você, pode render um aprofundamento (matéria) sobre polícias e modelos de policiamento, segurança pública nos países da América Latina, suas diferenças. A Argentina tem uma polícia totalmente desmilitarizada. Já no Brasil essa instituição, criada por decreto da Ditadura Militar em 1970, acumula desde aquela época denúncias de abusos contra a população, muitos são milicianos, integram organização criminosa, fazem tráfico de drogas, etc. Só verificar as pesquisas de pessoas que foram mortas pela Polícia Militar. Ver os dados da Secretaria de Segurança Publica do Estado de SP? Só de SP. Essa separação das polícias no Brasil é errada, além de militarizada, violenta, etc. As polícias no Brasil, sempre tiveram ligação com grupos de extermínios presentes em suas forças de segurança pública. Como no Chile, a polícia é altamente militarizada. Aqui no Brasil, as forças de segurança dos Estados tem como política a repressão preventiva, e voltada para os jovens de setores populares, e seletiva, voltada para militantes de organizações sociais, etc. Mas a Argentina também esteve envolvida, na Operação Condor, formalizada em Santiago do Chile no final de outubro de 1975, uma aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de 1970, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para a realização de atividades coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, com o objetivo de vigiar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer desaparecer militantes políticos que faziam oposição, armada ou não, aos regimes militares da região. Enfim, onde tem atuação militarizada, corrupta, assassina, saímos do Estado de Direito e caímos em um Estado Policial, fora de controle, que praticam massacres, genocídios na periferia, pobres e negros, etc. A função de limitar o poder punitivo, violento das polícias viria do judiciário, entretanto, assistimos no curso da história, muitas vezes, o Judiciário traiu sua função. Na medida em que os juízes traem sua função, tornam-se menos juízes, levando a um estado policial em que não há juízes, mas policiais fantasiados de juízes. Foi o que aconteceu na Alemanha nazista. Etc. etc. etc", comentário da advogada bauruense Maria Cristina SAnt'Anna Zanin.

OBS. 3: As fotos são meramente ilustrativas e foram sacadas do google argentino.

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