segunda-feira, 15 de abril de 2019

DOCUMENTOS DO FUNDO DO BAÚ (128)


OS TEMPOS ATUAIS EXIGEM REAÇÕES À RUBEM FONSECA – COMO O PERSONAGEM “O COBRADOR” RESOLVE SUA DOR DE DENTE E EU A MINHA

Dia penoso para meu problema dentário. Justo hoje, a coisa se agravou e tomo conhecimento minha dentista baixa em Paris, viagem de 20 dias. Diante de algo as ser resolvido agora, imediatamente, ela lá longe, tento outras alternativas e com todas à mesa, relembro de um conto de Rubem Fonseca, justamente o que dá nome a um de seus livros mais famosos, “O Cobrador” (1979), quando seu personagem principal, uma espécie de vingador sanguinário, faz das suas, sem dó e piedade. Um “vingador não apenas da divisão de classes, mas também da violência simbólica”. Vou nas estantes do Mafuá e fico todo contente, pois o livro resistiu à enchente e dele extraio seu texto inicial, justamente o que me deu vontade de fazer para resolver a questão do meu problema dentário. Eis o que veio à mente:

“Na porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.

Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muito. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.


Só rindo. Esses caras são engraçados.

Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui – e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.

Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso. São quatrocentos cruzeiros.

Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.

Não tem não o que?

Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.

Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encorajava as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele – que tal enfiar isso no seu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem bolas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.

Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!

Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta”.

Assim começa o livro do Rubem Fonseca, uma eletrizante leitura, essa reação que o "fudido" um dia tem na vida diante de tanta coisa martelando e zunindo na sua cabeça. O seu Dia de Fúria. O meu não foi hoje, nem será amanhã, mas vontade não me falta, ainda mais diante desse maldito momento em que enfiaram o país. A gente tem que se segurar pra não fazer loucuras, uma atrás de outra. Comedido, contido, atado dos pés à cabeça eu lembro da estória do livro e com ela prossigo com minha dor de dente, sem coragem para cometer loucuras. No exato momento em que vou me deitar, leio a mensagem deixada no meu whatts pelo atendente de plantão da clínica: “Vamos agendar para moldar amanhã?”. Durmo com analgésico e esqueço momentaneamente da solução que O Cobrador deu para seu problema. Sou mesmo um bosta.

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