terça-feira, 3 de dezembro de 2019

RELATOS PORTENHOS / LATINOS (74)


MAIS UMA HISTÓRIA ARGENTINA*
* Em 04/11 contei através dessa via e meio a história de Sérgio Horvath, artista bonaerense vivendo no bairro de La Boca, peronista e aguardando a chegada do novo Governo com enorme expectativa. O fiz logo após ter voltado de uma viagem à Buenos Aires, feito com o intuito de presenciar e registrar a eleição de Alberto Fernandéz e Cristina Kirchner para a presidência argentina. Eis o link do texto: https://mafuadohpa.blogspot.com/search…. Faltava outra, a de outro estabelecimento no mesmo local do primeiro relato e a conto hoje, desta feita exatos sete dias para a posse de Alberto e Cristina. Essas histórias por aqui estão sendo relatadas com o calor da emoção, porém, em outra instância, merecedoras de relatos mais jornalísticos, encomendas de revista mensal de circulação nacional. Pelas redes sociais, não me seguro, carrego na emoção e paixão pelo presenciado, algo feito por onde circule, tendo de cada canto visitado algo a contar.

RAMON E TEREZA, A “COMEDORIA” POPULAR NO CORAÇÃO DE LA BOCA
Durante o desgoverno neoliberal de Maurício Macri algo que despontou como uma sinalizador de sua péssima administração foi o aumento desmedido das “comedorias”, espécies de restaurantes populares, como os existentes no Brasil com seus preços subsidiados. Com o seu aumento, evidenciou-se o aumento da pobreza e ela é mais do que evidente em toda a Argentina. Feliz do cidadão tendo uma “comedoria” perto dos seus domínios, pois do contrário a penúria de ter que pagar caro pela alimentação, com preços subindo de forma constante e de maneira muito irregular, além do deslocamento, com fome, para lugares distantes. Nos bairros periféricos buenaristas algo com preços a atender a demanda de moradores. Fui conhecer um restaurante bem local, atendimento quase exclusivo para a população ali residente e com pouquíssima frequência de turistas. Trata-se do Bar “Minutas Black Café”, mais precisamente na calle Olavarria 713 – Local 1, popular e frequentadíssimo bairro de La Boca. Está há menos de duzentos metros do campo de futebol do time do Boca Junior, o La Bombonera e dentro de uma galeria no Antigo Mercado de La Boca, local que muitas décadas atrás abrigou um frigorífico.

Não esperem nada sofisticado por ali. Com todas suas lojas ocupadas, o mercado tem de tudo, desde as lojas de roupas, serviços, como um bar e esse também como restaurante. Bem lá no fundo, tendo que atravessar todas as lojas, está o estabelecimento comercial comandado pelo sorridente Luiz Ramon Lopes, 72 anos e destoando da maioria dos moradores do bairro, ferrenho torcedor do adversário, o River Plate. No bar tem flâmulas de quase todos os grandes times argentinos, mas ele quando questionado não se intimida e afirma ser River Plate e sem nenhum problema. Quando brinco com ele sobre o fato, um frequentador do lugar o abraça e me diz: “Veja o tamanho dele, pequeno desse jeito a gente não quer brigar, ou seja, não batemos em crianças”. Dentro desse espírito, Ramon toca seu negócio junto da esposa, Maria Tereza Contrera, 68 anos, a comandante da cozinha e na maioria das vezes também do caixa. “A gente cuida em conjunto, mas sempre com os olhos dela mais atentos para gastos além do necessário”, me diz.

O lugar ferve de gente do bairro, pois lá no fundo do mercado, ocupam um espaço bem maior do que o das lojas, com muitas mesas e uma TV permanentemente ligada, atraindo a atenção principalmente dos jubilados (aposentados em espanhol). Esses chegam muito antes do almoço, ocupam as mesas com um frenético bate papo, além de jogarem carteado e dominó. Quem como eu é turista percebe logo a diferença. A comida é caseira, feita por Tereza e uma única ajudante, Rosalia Caballero, 53 anos, essa jogando em todas as posições, pois além da cozinha, serve mesas e faz o serviço de faxina. Esse o trio servindo comida caseira, desde assados à cozidos. O grande diferencial é mesmo o preço cobrado. Num restaurante a pouco mais de duzentos metros, na região turística do bairro, qualquer prato não sai por menos de 500 pesos, daí para mais, mas ali no Black a média é de 80 a 100 pesos e com porções bem substanciosas.

No balcão principal os principais pratos, os assados saem mais cedo e servem como chamarisco para chamar a clientela. O atendimento não é self servise, mas uma espécie de a la carte, como a maioria dos lugares no país, ainda não muito querendo aderir a tal da comida por peso ou o come-se à vontade. A regra é perguntar qual os pratos do dia e ver o que pode ser servido, dependendo sempre da quantidade de pessoas. Para um, o tradicional é o que conhecemos como prato feito, quase sempre acompanhado por um copo de vinho ou grapa, espécie de aguardente dos pampas. O preparo pode ser conferido in loco, pois a cozinha não possui separação com o restante do local, somente o balcão separa um do outro, com o cheiro do que está sendo preparado invadindo tudo e servindo também como atrativo. Mais que isso, o que conta muito é a simpatia do casal, pois atendem a todos com muita presteza, sempre sorridentes e nunca negando aquele algo a mais.

Quando lá estive desta feita, o fiz com dois amigos de Tupã SP, preços combinados e no frigir dos ovos, com salada, assados, carne de panela, arroz e papas (o que mais se come na Argentina, batatas), tudo não saiu por mais de 100 pesos para cada. Na conversão do dia para o real, 14 por 1, para nós, nada igual a preços praticados no Brasil para a quantidade ali consumida. Sem contar que um dos amigos, ainda quis comer batata doce, pediu para Tereza se ela podia fazer. Na confirmação, foi comprar numa banca do lado externo do mercado e tudo saiu ali na hora, para deleite de todos. Foi um almoço de lamber os beiços. Quem me apresentou a casa, três anos atrás foi o professor bauruense Claudio Goya, muito exigente em matéria de comida e restaurantes, mas nesse fez questão de me dizer: “Henrique, exijo de quem tem tudo para te oferecer algo diferenciado e não o faz. Aqui não exijo nada, como, me esbaldo e saio feliz da vida”. Foi o que fizemos. Volto todo ano com a esposa, a professora Ana Bia, nos retornos participando de Congresso Acadêmico na Universidade de Palermo.

Já sou conhecido do lugar e o tratamento alegre, com altos papos se estende por todo o período por ali. Um lugar dos mais simples, sem nenhum requinte, porém com esmero no atendimento, no trato com o semelhante e na comida sem surpresas. Sérgio Horvarth, artista plástico com um sebo bem defronte o restaurante, outro amigo conquistado com o passar dos anos me diz do local: “Como aqui quase todo dia. O preço dele é inigualável e para quem é freguês habitual, uma condição ainda melhor. Como e depois jogo um baralhinho com meu sócio e amigos numa das mesas”. Convidado pelo trio, neste dia Sérgio almoçou conosco e participou da animada conversa, intercalando histórias e causos do lugar. O que sentimos por ali estar? Tudo foi devidamente aprovado. Além da discussão de futebol, tema mais que frequente num bairro predominantemente esportivo, o tema política obrigatoriamente esteve presente. A quase imensa maioria no bairro sente na pele o que foram os quatro anos de Macri no governo e as dificuldades todas, a quebradeira generalizada e um se escorando nos demais para continuar sobrevivendo. Está estampado na fisionomia de todos a boa receptividade com os novos tempos do país com o retorno do peronismo ao poder.

Sérgio, o do sebo ali defronte é declaradamente peronista, kirchnerista e bota toda fé do mundo na dupla Alberto/Cristina e enxerga uma nova Argentina a partir da posse em 10 de dezembro. Do casal donos do Black Café, quase a mesma coisa, porém mais contidos. Vimos muito isso na Argentina, um receio em alguns de expor declaradamente para estranhos suas preferências, pois ainda existe o temor delas serem mal interpretadas pela camada apoiando o outro lado e, dessa forma, a perda de clientes (nada diferente do Brasil). Saímos de lá em estado de jubilo e contentamento, local bem popular, tendo prazer em conhecer um pouco mais da verdadeira identidade da periferia de um grande centro urbano e do prazeroso contato com pessoas mais do que valorosas. Quando me pedem alguma indicação de local diferenciado, onde se possa conhecer de fato as entranhas de Buenos Aires, não penso duas vezes e indico logo ir ter com o Sérgio no seu sebo e loja de arte, no local (box) 70 e com Ramon e Tereza no local 1. Dois lugares bem com a minha cara e identidade. Nos retornos anuais o passeio não é a mesma coisa quando, por algum motivo sou impedido de ali comparecer.

Viva a periferia argentina!

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