quinta-feira, 6 de setembro de 2018

DOCUMENTOS DO FUNDO DO BAÚ (120)


JOAQUIM , UM SEBO CURITIBANO SOBREVIVENDO AO TEMPO
No dia em que estive no acampamento defronte a sede da PF, onde mantém injustamente detido o preso político Lula, fazia muito frio e chovia. O amigo curitibano que me levou até lá, Kizahy Baracat Neto, na volta, tendo que retornar ao trabalho, quando lhe disse queria fazer uma tour pelos sebos da região central da cidade, disse me deixaria na porta de um, "dos melhores, um que vai gostar muito". E assim fiquei no centro velho da capital paranaense, por volta das 16h, no meio da quadra da rua Alfredo Bufren. Na calçada, olho para os lados e não vejo a livraria, mas sim uma placa e escada. Subo, fujo do vento gelado, enfim, a companhia de livros sempre aquecem esses tantos a perambular sem eira e sem beira pelas ruas.

Um pequeno apartamento transformado em livraria e um nome mais que instigante, JOAQUIM. Por que esse nome? Teria que desvendar esse enigma, do contrário isso me intrigaria pro resto da vida. Olho para os lados, um grande balcão no centro, com livros e discos espalhados por todos os lados. Ao fundo, ouço vozes, um balcão ao estilo de um bar e atrás, uma pessoa em cada cômodo, de um lado um senhor de maia idade, do outro uma mulher. Interrompo a conversa deles e peço para fuçar. Inicio a garimpagem e percebo algo triste, o papo entre eles não continua, pois param motivados pela minha presença, um forasteiro no lugar. Parecia tão agradável. Um som rola no ar, uma boa música, vinda de algo pelo qual gosto muito, um antigo LP. O som toma conta do lugar.

Quando entro nesses lugares esqueço de tudo o mais lá fora e assim permaneço por mais de hora, vasculhando, estante por estante. Esse é muito organizado, tudo separado por temas, bem dispostos, não como uma imensidão de títulos, mas o pequeno local devidamente preenchido. Não gosto de vir a um lugar como esse e sair de mãos abanando. Imagino o que seja manter um sebo aberto nos dias de hoje e assim, dou o meu quinhão para a permanência deles enquanto local profano, de espalhamento necessário de cultura. Escolho um e ao pagar, puxo conversa e assim conheço o proprietário, Marcos Duarte, 7 anos à frente do sebo, esse com 11 anos de existência. Uma vida ali rolando num simples subir das tais escadas.

Quando lhe digo ser de Bauru, ele me conta algo da região. Seus avós são de Reginópolis, muito próximos, ele mesmo já tendo passado pela aldeia onde moro por diversas vezes. O Tema foi suficiente para a conversa se ampliar, crescer e florescer. Para me contar algo mais do local foi um pulo. Pedi permissão para as fotos e fomos papeando livremente. Claro, não é nada fácil manter uma livraria como a dele, mas faz o que pode, tendo sua clientela principal advinda dos alunos e nos entorno da Faculdade de Humanas da federal paranaense, localizada a alguns quarteirões dali. Falo de meu amigo que me indicou o local, o dito "Palestino" Neto, como é conhecido no meio político local. Ambos militaram juntos no passado, se conhecem, mas distantes no atual momento. Falamos de Bauru e ele me conta que, na última passagem esteve num sebo desorganizado no centro, avenida Rodrigues Alves, o do seu Bau, vasculhando LPs e também na livraria da USC, depois foi falar com as "irmãs" em busca de títulos da extinta editora da universidade. Mesmo existindo estoques de todos os livros não foi bem sucedido na empreitada, queria ter alguns títulos deles, mas não sentiu nas tentativas de negociação nenhuma disposição.

Conversamos sobre as famosas revistas literárias paranaenses. Coisa de uns 15 anos atrás, vinha semana sim, semana não para Curitiba, sempre a trabalho, vendo chancelas e unindo o útil ao agradável. os cinemas culturais do centro, em quatro locais, hoje todos fechados e os muitos sebos, quando me conta do destino de todos, foram revisitados na conversa. Cito Dalton Trevisan e ele me diz estar do mesmo jeito, arredio e calado. Tira de uma das prateleiras uma coleção encadernada da revista dos anos 40/50, a Joaquim, onde o escritor foi diretor e Poty o ilustrador principal. Folheio tudo com o devido carinho e lá algo a me chamar a atenção: "Em homenagem a todos os Joaquins do Brasil - Um manifesto para não ser lido". Faço exatamente o contrário, leio e me delicio. O nome da livraria veio daí e também por ser esse o primeiro nome, que poucos sabem, de Machado de Assis. Na parede um grafite com um Machado psicodélico, cabelo black power, evidenciando sua negritude.

A conversa não para e na sequência o que desce das prateleiras é outra coleção encadernada, a da revista Nicolau, conhecida nacionalmente, com algo mais da literatura paranaense dos anos 80/90. Tudo fluia muito mais fácil e os nomes ali encontrados são todos de gente que se fez por causa de seus belos escritos. Viajo no tempo e ganho um jornal distribuído nos tempos atuais, o últimos dos moicanos, o Relevo, com um slogan na capa, "periódico literário independente feito em Curitiba-PR desde set/2010". Como é bom tomar conhecimento dos resistentes e em sua primeira página, explicitam em detalhes toda a grana que entra no pequeno negócio e como sai. Poetas são bons em tudo, até nisso. O tempo passa e me alongo mais na conversa, o frio deve ter aumentado lá fora e nem sei se ainda chove.

Antes de descer as escadas, fico de lhe enviar via PAC dos Correios uma edição do meu livro sobre Reginópolis, parceria com Fausto Bergocce. Conto detalhes de como foi feito, os desenhos do artista parceiro, detalhes da pequena cidade e ele me diz que isso será de grande valia junto aos seus, os que vieram de lá, cheios sempre de intermináveis lembranças da pequena cidade de origem. Vontade eu tenho de levar mais do que apenas um mero livro, mas eu e Ana nessa semana abusamos e já estamos com o peso das duas malas no limite permitido para viagens áreas, 23 kl cada, em sua maioria livros. Ela de sua área, comprados nas livrarias montadas na entrada do evento acadêmico e eu, pelas andanças variadas pelos sebos. Num deles, fechando as portas, R$ 3 reais cada e títulos que não poderia deixar de ter. Histórias como a de Marcos muito me apetecem, esqueço do mundo diante delas e ao descer as escadas e voltar para a realidade deste insano mundo, além do choque e do bafo frio das ruas, penso lá com os meus botões de como deve ser salutar viver uma vida enfronhado no meio de tantos livros. Não deve ser fácil, reflito, mas deve também ser pra lá de bom. Marcos talvez o saiba, sofra como todos os demais livreiros de rua, mas vive algo com imenso prazer, o que a maioria dos seres humanos já não mais consegue, unir o negócio de suas vidas com prazer. Pego o uber que me leva pra onde estou com Ana Bia Andrade por esses dias pensando nisso. Como é bom ainda existir lugares como esses nas cidades brasileiras.

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