Último domingo do ano, Sivaldo Camargo, 44 anos, amigo do peito, convida-me para almoçar em sua casa. Aceito prontamente, pois me diz que o convite seria estendido para outro grande amigo, Duílio Duka, 55 anos e teríamos a oportunidade de rever Ocimar Camargo, o Peu, seu irmão quase gêmeo, hoje morando em Santa cruz do Rio Pardo.Todos somos amigos de longa data. Havia outro motivo, Sivaldo possui uma bem cuidada coleção de DVDs musicais, todos de artistas brasileiros, alguns raros e teríamos a oportunidade de assistir alguns deles. Salpicando isso tudo estava a bebericagem que, certamente ocorreria antes, durante e depois das sessões. Sem contar o almoço que, dizem, feito pela mãe deles, é de cair o queixo. E para lá fui, na última (ou seria a penúltima?) experiência etílico-gastronômica do ano de 2007.
Encontro com Duka na Feira do Rolo e por volta das 12h, vamos juntos para aquele sofrimento (sic) todo. A casa fica no bairro Redentor, logo na entrada, ao lado de uma arborizada pracinha. Estaciono diante do portão, com um sol de rachar mamona e dona Angelina, a mãe, sai no portão para me aconselhar: "Coloque na calçada, do outro lado da rua e fique na sombra". Claro sinal de que a visita não seria rápida. Após os rápidos cumprimentos, Sivaldo acomoda todos em seu quarto, um santuário, uma espécie de ilha do tesouro cultural, diante do imenso mar de mediocridades do mundo atual. Medindo aproximadamente 6x3m, somos acomodados ao lado de livros, CDs, DVDs, pôsteres e quadros variados. Sua cama num canto, ao lado de uma imensa TV e diante dela, uma confortável poltrona. No restante do espaço, as preciosidades todas.
Fomos rapidamente acomodados. Sivaldo em sua cama, Duka na poltrona (ninguém reclamou devido ser o mais idoso), eu numa cadeira e Peu num baquinho. Nem tivemos tempo de escolher o primeiro DVD, pois Sivaldo já gesticulava muito, tendo às mãos o dos Doces Bárbaros, numa reapresentação do quarteto de baianos, gravada em 2002, de um show nas areias de Copacabana. Coisa fina foi ir vendo os diálogos nos ensaios, feitos no estúdio da gravadora Biscoito Fino. Nisso fomos apresentados a algumas 'Skol's, todas trincando de geladas e logo a seguir, têm início o sofrimento do levantamento coletivo de copos, o único exercício que o quarteto reunido naquele quarto anda fazendo ultimamente.
O segundo DVD teve aprovação unânime de todos, era o do Chico Buarque, sobre o tema Futebol. Ver Chico cantando e contando causos ligados à bola foi inebriante. Todos ali, admiradores confessos de toda sua obra, encantados permaneceram com a simplicidade de Pagão e do cavalheirismo do Clodoaldo, o Corró, que num jogo, saiu da frente para Chico poder marcar o gol que, mesmo assim, foi perdido. O Hino do Politheana foi saudado por todos como emocionante, verdadeira raridade. Na seqüência, Sivaldo sacou do Acústico do Paulinho da Viola, recém lançado e todos permanecemos boquiabertos e consumindo muito líquido. Samba tocado e cantado com a maestria do famoso príncipe na sua especialidade. Tentávamos descobrir os nomes dos músicos e no coral de vozes, Cristina Buarque era o grande diferencial.
Quando Sivaldo levanta para tirar água do joelho, sua mãe aparece na porta e faz um pedido: "Faz tempo que o almoço está pronto. Se deixarem, o Sivaldo não come. Façam o favor de trazer ele para a mesa". O que só foi feito quando Paulinho encerrou seu musical. Na sala de jantar, a recepção foi feita com uma salada gelada de maionese, frutas e frios. Pedi a receita para dona Angelina, que ficou de pensar. Na evasiva, pedi um pouco para minha mãe. Arroz com uvas passas e um pernil já todo cortado em pedaços foram colocados na mesa. A recomendação vinda da cozinha era clara: "Só saiam da mesa quando o pernil terminar". Como ninguém estava propenso a desobedecer ordens superiores, o tal porco não resistiu por muito tempo.
Barrigas devidamente forradas, todos voltaram aos seus devidos lugares para o início do segundo tempo. Sivaldo queria mesmo provocar a todos. Veio com os dois últimos DVDs da Maria Bethânia e diante do primor da linda voz da baiana, me fez soltar uma preciosidade: "Taí uma que casava de olhos fechados". Foi lindo ver dona Canô cantando alguns sucessos do cancioneiro popular junto dos dois filhos famosos. O silêncio reinava no ambiente enquanto Bethânia abria sua boca. Respeitosamente só os copos se movimentavam. Duka bem que tentou, mas fez aquilo que todos já esperavam dele: dormiu. Uma soneca meio que inevitável. Acordava, ouvia alguns trechos, palpitava e caia novamente nos remanso suave de uma sesta. A vida daqueles quatro ali reunidos estava como no samba do Zeca: a vida levava a todos.