quinta-feira, 2 de junho de 2011

BEIRA DE ESTRADA (15)

O ‘CHAPA’ VIROU MEU CHAPA - Publiquei na Revista de Caminhoneiro (100 mil de tiragem, circulação nacional) durante 14 edições um texto tendo como tema de fundo o caminhoneiro. Foi uma experiência e tanto, interrompida mês passado, quando a revista inicia algo diferente de maio a dezembro desse ano, com um texto escrito pelo próprio protagonista das histórias, o caminhoneiro, numa campanha, onde o melhor texto dará como premiação máxima um caminhão ao vencedor. Como ainda tenho dois textos já escritos, reproduzo aqui o primeiro deles.

Trabalho para uma grande empresa no transporte de mercadorias e na entrada de uma de nossas maiores cidades, por opção da empresa, durante certo período, buscava uma pessoa para me auxiliar a descarregar a carga. Áureos tempos, onde o perigo ainda não rondava com tanta intensidade a beirada de nossas estradas. Perdia muito tempo fazendo tudo sozinho, além do cansaço. Como em toda cidade é muito fácil identificar esses profissionais, denominados de “chapa”, localizados nas entradas da maioria delas, com identificação característica, rabiscos feitos de improviso em precárias placas e debaixo de uma cobertura arrumada em algum descarte. Madrugam nos seus pontos e de lá ao avistarem um caminhão a se aproximar, estendem logo seus braços e acenam em busca do ganha pão do dia. Vida difícil, como a da maioria do trabalhador brasileiro.

Nunca menosprezei esse serviço e poucas vezes me decepcionei. São pessoas simples como eu, talvez com menos sorte da que tive na vida. Estão ali, faça chuva ou sol. Se existe algum a desmerecer a categoria, isso não estraga o todo, pois como toda categoria, sempre tem quem foge à regra e coloca tudo a perder. Tudo na vida é um grande risco e foi ali num ponto de chapa que conheci uma grande pessoa e tenho uma história que transformou a vida de algumas pessoas, inclusive a minha.

Seu Vinagre, esse seu sobrenome e nome de guerra, não era muito moço quando o conheci, mas me inspirou confiança desde que parei o caminhão numa manhã de muito calor e muita coisa por fazer. Estava um tanto perdido naquele dia e sua ajuda, além da força física para descarregar tudo, foi do auxílio em achar com a maior facilidade os endereços. Passava dos 60 anos, ainda um tanto forte, queimado de sol e de pouca conversa, sério e valente no trabalho. Bateu uma identificação logo de cara, tanto que brincava chamando-o de “meu chapa”.

Virou rotina parar sempre ali e levá-lo comigo. Ele já sabia o dia em que estaria de volta na cidade e ficava a minha espera. Falhamos poucas vezes. Os anos foram passando, acho que uns quatro, daí por diante. Falava muito dele na empresa, tanto que os convenci a contratá-lo como ajudante de carga. Estava louco para dar-lhe a alvissareira notícia. Pois justo naquele dia seu Vinagre não estava lá e ninguém sabia do seu paradeiro. “Faz quase uma semana que não aparece. Deve estar doente”, me disseram.

Acabei me virando como pude por algumas vezes e o pessoal da empresa me apertando: “E aí, vamos contratar ou não o tal sujeito?”. Num dia mais tranqüilo, especulei entre os demais chapas até conseguir seu endereço. “Longe demais, escondido do mundo, não vai nem achar”, um me disse. Fui atrás, vasculhei os cafundós de um bairro suburbano e acabei por encontrar a sua residência.

Seu Vinagre estava doente, ruim mesmo e sem auxílio, vivia de favores e com a ajuda do filho, um rapagão de uns 19anos. Aquilo me cortou o coração. Ele me reconheceu, fiquei de voltar e algo novo foi crescendo em mim. Vinagrinho, o filho tinha cacoete para a coisa, apesar da absoluta inexperiência. Perdi muito tempo em treiná-lo, mas ele foi um bravo, igual ao pai e hoje, passados dois anos do falecimento do velho e inesquecível Vinagre, quem está de carteira assinada e dando um duro danado ao meu lado é o filho, meu fiel escudeiro. Conto isso pra todo mundo, pois praticamente adotei o rapaz. É como se fosse mais do que um filho, parceiros absolutos de estrada.

4 comentários:

Anônimo disse...

Henrique,

Vinagre e Vinagrinho?
Seria uma homenagem ao nosso amigo bauruense?
Bom texto.

Regina

Mafuá do HPA disse...

Sim, Regina é uma homenagem para ele mesmo. Espero que ele goste. Conheço poucos Vinagres, quase todos da família dele e somente um outro, esse já falecido, um ex-carregador de malas na antiga estação da NOB Bauru. Fes história e possui histórias mil para contar, todas vividas ali na estação. Esse último teve melhor sorte do que os chapeiros do meu texto, pois tinha carteira assinada e conseguiu se aposentar. Hoje, os chapeiros não possuem garantia nenhuma de que no final do dia levarão para suas casas algo ganho durante o dia. As relações trabalhistas estão pela hora da morte e a informalidade toma conta de tudo.
um abraço do Henrique - dureto do mafuá

ArabeAlli disse...

Caro Henrique, há mt mais coisas entre o vinagre e a maionese do que nossa vã gastronomia. Pense nisso!

Anônimo disse...

Programa quer colocar catadores de materiais recicláveis no mercado formal
Envolverde

2 de junho de 2011 às 15:54h

Um programa latino-americano, lançado na última quinta-feira 26, em Assunção, no Paraguai, vai receber US$ 8,4 milhões (cerca de R$ 13 mi) para desenvolver ações e leis que melhorem a situação sócio-econômica dos catadores de lixo no continente.

A iniciativa, uma parceria entre a Fundação Avina, o Fundo Multilateral de Investimentos (FUMIN) e a The Coca-Cola Company, tem como exemplo projetos ativos da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia e Peru para discutir e elaborar propostas de inclusão desses trabalhadores no mercado formal da reciclagem.

“É crucial apoiar a transformação do mercado e a organização dos catadores informais para melhorar sua inserção econômica e social. Com uma maior coordenação entre os catadores, as empresas e as prefeituras melhorarão a qualidade de vida das pessoas que vivem desta atividade”, afirmou Nancy Lee, gerente geral do FUMIN, órgão do BID que vai investir US$ 4 milhões com o projeto.

HENRIQUE
SE ISSO ESTÁSENDO FEITO COM OS CATADORES DE RECICLÁVEIS, POR QUE NÃO COM ESSES TRABALHADORES DE BEIRA DE ESTRADA?
ANDRÉ RAMOIS