quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

FRASES (179)


PRIMEIRO UM DESABAFO PARA OS QUE RUAM AO CONTRÁRIO E DEPOIS ALGO PARA ENTENDER OS QUE RUAM E LEVAM ISSO MUITO A SÉRIO – EU AMO A RUA

Vocês nunca vão me ver, por exemplo, passar um final de ano em Miami Beach ou mesmo na Disney e adjacências. Nem que me pagassem iria dar com os costados em lugares vazios, sem a consistência do que mais gosto de fazer na vida, ruar por lugares esquisitos, vicinais, quebradas do mundaréu. Esses lugares muito certinhos, templos de consumo e onde a pessoa vai para se mostrar, torrar o que ganhou nem se sabe como, não é pra gente que tem o cerebelo no lugar. Se um avião sai de Sampa e vai rumo pros States, com parada derradeira naqueles lugares onde o Silvio Santos tem casa, o cara da TV Tem, aquele que hoje vive em prisão domiciliar, o J.Ávila tem outra ou mesmo o ex-presidente da CBF, aquele que foi genro do Havelange e a gente esquece até o nome dele também tem a sua (acho quer é Ricardo Teixeira, isso mesmo?), de uma coisa você pode ter toda a certeza do mundo, esse lugar não deve ser nada bom. Vou fazer o que num lugar desses? Eu olho pra essas cidades e vejo tristeza, pois nem andar pelas ruas se pode direito. Ninguém vai lá para andar nas ruas e sim para ver os que não fazem nada e também tentar ser visto por esses. Então falava do avião que sai de Sampa com esse destino, mas se nele estivesse pediria pro piloto se não podia me deixar saltar quando estivesse sobrevoando, por exemplo, Cuba. Teria muito mais o que fazer em Cuba do que nesses antros de consumo e de gastança desenfreada. Melhor, teria muito mais a ruar, andar, gastar sola de sapatos.

Repare bem na fisionomia dos abonados que se bandeiam pra esses ditos templos do consumo e descaradamente ainda tem o desplante de divulgar o feito, como se isso fosse grande coisa. A primeira coisa que faço ao chegar numa cidade é sondar suas possibilidades quebradistas, ou seja, os lugares onde circula a dita pelos graúdos como “gentalha”. É pra lá que eu vou. Quero ser visto e ver tudo nesse entorno, entender dessas coisas, as que me movem e fazem a roda da vida circular com mais gostosura. Eu queria juntar nesse texto algo que estou relendo por esses dias, um manual da andarilhagem brasileira, o livro de cabeceira de todo ruista juramentado, o “A Alma Encantadora das Ruas”, do imortal João do Rio. Trouxe para o Rio, donde me encontro nesse instante, para ver se consigo perambular por lugares onde o cronista do século passado já pisou, circulou e escrevinhou. Tenho pouco tempo, mas ao reiniciar a leitura, dessa edição histórica que tenho em mãos, de 1991, 2ª tiragem, fazendo parte da Biblioteca Carioca, impressão feita pela Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro (hoje esse pessoal lá instalado não imprime mais livro nenhum e se o fizer são religiosos. O livro é do tempo que o secretário de Cultura era nada menos que Carlos Eduardo Novaes), encontro um texto introdutório, o “A Rua”, que sem citação de autoria, creio deva ser do João do Rio e nele uma ODE às ruas, dele extraio algumas frases, dessas que deveriam ser imortalizadas e impressas num guia para tudo e todos rueiros como eu. Até para fazer um contraponto na babosidade que é viajar com gastança e bonança, fazendo uso das futilidades a desonrar seus habituês, descrevo o contrário, o viajar e curtir com olhos, nariz, ouvido e boca o que de melhor existe em cada ruela perdida por esse mundão (no texto, perdidas aqui pelo Rio de Janeiro):

- “Eu amo a rua”.
- “A rua é um fator de vida das cidades, a rua tem alma! (...) A rua é agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. (...) A rua é generosa. A rua é a transformadora das línguas. (...) A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano”.
- “A ruas nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamaça do seu calçamento. (...) ...é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. (...) A rua é a eterna imagem da ingenuidade. (...) A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano”.
- “Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos de flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. É fatigante o exercício. (...) Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alforjas da Saúde, é ver os bonecos pintados à giz nos muros das casas; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja... É vagabundagem? Talvez”.
- “O flâneur é ingênuo quase sempre. (...) ...acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. (...) Oh! Sim, as ruas tem alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem histórias, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue”.
- “Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras; há ruas lúgubres, por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte. (...) A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. (...) Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, o inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas. (...) A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o seu tipo social. (...) ...cada rua tem um estoque especial de expressões, de ideias e de gostos”.
- “Oh! sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão que tenha passado metade da existência da Rua do Pau Ferro não se habitua jamais à Rua Marquês de Abrantes! (...) As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos. (...) O homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisa interessar à rua”.
- “A estética, a ornamentação das ruas, é o resultado do respeito e do medo que lhes temos... (...) É quase sempre na rua que se fala mal do próximo. (...) Na literatura atual é a inspiração dos grandes artistas, desde Victor Hugo, Balzac e Dickens, até as epopeias de Zola, desde o funambulismo de Banville até o humorismo de Mark Twain. Não há um escritor moderno que não tenha cantado a rua. (...) Olhai o mapa das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical! As ruas são perecíveis como os homens. A outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada, pela qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia, a inveja. (...) Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o Universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero – interminável rua da Amargura...”.

Daí, juntei esse asco pelos que viajam para saciar desejos de se mostrarem, de estar nos lugares onde os pomposos vagueiam se se mostram consumindo mais e mais, mostrando serem “melhores” que os demais ao seu lado com esses que flanam, sem eira nem beira, pelos mais inqualificáveis lugares. O primeiro não rua, mas esses últimos ruam e muito, uma vida inteira.

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