quinta-feira, 31 de outubro de 2019

MEMÓRIA ORAL (247)


A FESTA NAS RUAS – Ao lado do bunker de Cristina, as considerações dos festando a vitória de Todos.*

* Texto enviado com exclusividade para publicação site de Carta Capital.

Circulando pelas ruas da capital argentina no dia da eleição é ir trombando a cada instante com fisionomias cheias de esperança. Em todos na festa montada ao lado do Bunker de Cristina, como denominaram por aqui o comitê eleitoral da campanha da coligação “Todos – Argentina de pie”, numa habitação até então desocupada nos altos da avenida Corrientes, altura do bairro de Chacarita, a fisionomia era de alívio e crença num futuro menos duro. Nos gritos sempre ecoavam um “voltemos”, servindo tanto para a volta do peronismo ao poder, como a do povo excluído de qualquer benefício nos quatro anos de um cruel e insano neoliberalismo praticado por Maurício Macri.

Descrever as eleições é algo para abalizados analistas. Minha contribuição vem das ruas, das conversas com as pessoas, os que estiveram nas ruas durante todo o dia e durante boa parte da noite de um domingo mais que especial. Nos relatos muito desse sentimento, todos registrados e junto de cada click uma conversa, um bate papo, uma observação. Começo com o sindicalista Matias Ceballos que, ao me descobrir brasileiro, faz o mesmo questionamento feito por tantos outros. “Por que não fazem o mesmo no Brasil? Por que motivo não saem às ruas, não investem contra os desmandos contra nós?”. Nas ruas junto da esposa e do filho, num carrinho de bebê se misturava com a multidão festando e numa confraternização ocorrida sem nenhum incidente, algo solicitado a todo instante pelo sistema de som montado nas ruas, com muitos telões, dez ao todo, em várias esquinas na avenida Corrientes.

A professora Maria Cespedes abre os braços, faz o gesto da vitória de Cristina, evocado por todos os lados e pede para lhe ensinar o gesto do Lula Livre. “Não imagina o quanto esperávamos por esse momento, uma alegria incontida, pois o país não mais aguentava o que lhe fazia a equipe econômica comandada por Macri e o FMI. Minha categoria perdeu direitos e importância a cada novo ato macrista”, me diz. Enquanto me despedia dela, passa ao lado o próprio papa Bergoglio, envergando sua roupa branca, chegando especialmente para o evento na primeira visita ao seu país desde que foi empossado. “Não podia deixar de vir. Deixei por instantes todas minhas obrigações papais, voltei para meu país só agora, pois antes não tinha como fazê-lo, agora sim”, me diz Alberto Brozzi, investido com a roupa papal e fazendo imenso sucesso no meio da multidão.

Outro fazendo muito sucesso é o barbudo Carlos del Prado, mas com ela encoberta pela máscara facial de Nestor Kirchner. Tirou fotos por todos os lados, solicitado à todo instante. “Essa foi a forma encontrada por mim para dizer o quanto creio na volta dos bons anos que este país viveu sob o Governo de Nestor. Não se trata só de saudade, mas de esperança, da certeza deste ser o caminho mais acertado. A Argentina não é comunista, talvez nem socialista com Nestor e Cristina, agora com Alberto, mas esses são sensíveis para nossas necessidades, olham para todos nós com outros olhos, fazem coisas por nós, o que não ocorreu em nenhum momento com Macri”. Patricia Garcia me vendo tirando fotos se aproxima e pede para ser fotografa com seu marido, mostra tatuagem em seu braço e me diz: “A Pátria Grande está voltando a ser valorizada na Argentina. A eletricidade desse povo nas ruas vai contaminar os demais países, inclusive o seu. Não aguentava mais ter minha voz e desejos reprimidos, a gente precisa de liberdade, cansamos de tanta dependência. Unidos somos mais, só assim sairemos do buraco onde nos enfiaram”.

O aposentado Luiz Bonilla, encostado numa parede, observa tudo sem querer sair pro meio das ruas, onde o empurra-empurra aumenta com a multidão ocupando todos os espaços. Com dois bottons fixados na camisa, deixa claro o seu lado: “O peronismo não morre de jeito nenhum. Representa muito, um respeito e consideração eterno por tudo o que já foi feito por esse país em seu nome e por tudo o que ainda irá fazer. Já tentaram de tudo para substitui-lo, mas não vão conseguir, pois temos isso do povo, sabemos o que o povo precisa e não nos afastamos disso. Eu tinha que sair de casa e estar aqui, mostrar meu lado, minha alegria e contentamento. Represento também minha esposa que não pode sair de casa. Estou aqui em nome de muitos e muitos”.

A alegria é o ponto forte na fisionomia de todos e a cantoria, com seus hinos sendo entoados por todos os lados, desde o do peronismo, como os da atual campanha do Todos. A brasileira Carla Moura, de Ribeirão Preto é casada com o argentino Pedro Gómez e estão nas ruas comemorando e querendo falar, querendo fazer algo pelo qual foram impedidos nos últimos quatro anos: “A nossa voz foi calada, estávamos contidos. Meu marido sofre demais com tudo o que acontece no seu ramo de atividade, a publicidade e eu, sofro mais ainda com o que se passa com o Brasil. Hoje, eu cá estou muito alegre por ele, por saber que a Argentina vai dar a volta por cima. Nada vai ser rápido, a gente sabe disso, mas nada podia continuar sendo feito como até então. Tenho também esperança de que o Brasil consiga superar Bolsonaro, mesmo sabendo parcela significativa dos brasileiros ainda estão cegos, seguindo o cara que está destruindo tudo o que demoramos tanto tempo para assegurar”.

Outra aposentada, moradora da região, Maria Miramón, 64 anos, segura diante do peito e posa para a fotografia com uma bandana comprada ali nas ruas. Nela a foto dos eleitos, que ela me diz colocará num lugar de destaque na sala de sua casa. “A gente sofria calada até agora, mas creio isso vai mudar. Eu vi o que Nestor e Cristina fez por nós, o que Axell Kiciloff quando ministro da Fazendafez pelo país, confio neles, eles não irão nos trair, pois sabem tudo o que depositamos de esperança sob seus ombros. Os aposentados não aguentam mais, eu mesmo me alimento sempre que posso numa Comedoria Popular. Minha renda não mais me permite comprar e pagar minhas necessidades básicas. Hoje dependo de outros, filhos e parentes para suprir tudo, os remédios estão muito caros e os alimentos sobem demais, mesmo a gente sabendo ser a Argentina muito forte na agricultura, aqui dá de tudo, mas não são cultivados para o povo”, me diz.

Carla Utín levanta os braços e canta tudo o que vem pelos microfones e não se segura quando, logo depois das 22h30 é anunciado pelos alto falantes a consumação da vitória de Alberto. Ela chora, grita e solta a voz de uma forma espontânea e quando me aproximo, tiro sua foto, ela com camiseta com as cores azul e branco, consegue me dizer algo muito simples, direto e reto, quase inaudível pelo barulho provocado pela comemoração: “Vamos viver tempos ainda duros, de restauração econômica, mas a história já estava escrita, tínhamos que voltar. Voltamos, triunfamos e aqui estamos, um país grande, forte, mas enfraquecido, quase destruído por gente que não olha para nós. Ninguém quebra nossa força e disposição, ninguém liquida com esse povo e quando chamados estamos sempre presentes. Veja o que se passa aqui, estamos celebrando e prontos para trabalhar, erguer este país novamente, como já o fizemos em outras vezes. E o faremos novamente com a certeza de que lá no poder estarão atudando gente com as mesmas vontades e esperanças que as nossas”.

obs.: as fotos estão publicadas na ordem de citação dentro do texto.
Henrique Perazzi de Aquino – jornalista e professor de História, acompanhou eleição argentina por conta própria e por não mais conseguir observar prostrado o que se passa pela Pátria Grande (www.mafuadohpa.blogspot.com).

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