LER HANNAH ARENDT, “A CONDIÇÃO HUMANA”, FORMA DE NÃO ENLOUQUECER DE VEZ
Quer saber dos motivos do meu deprê nesses dias? Claro, tem a ver com a pandemia, suas consequências e tudo o mais em decorrência do confinamento e das agruras dos que penam nesses dias. Algo mais. Escolhi para reler, depois de mais de trinta anos, o livro “A Condição Humana”, da filósofa e pensadora política Hannah Arendt. Não podia ter momento pior para fazê-lo, pois creio eu, devo ter juntado o que ali ia absorvendo e na comparação com o que vejo acontecendo do lado de fora de minha janela, fico cada vez mais postergado, entregue a um desânimo quase sem volta. Como não se sentir em estado de petição de miséria quando diante de pensamentos como os que aqui os apresento:
- “A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem. As condições variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o homem é parte. Nesse sentido todos os homens são condicionados, até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros tornam-se condicionados pelo próprio movimento de condicionar. Sendo assim, somos condicionados por duas maneiras: Pelos nossos próprios atos, aquilo que pensamos, nossos sentimentos, em suma os aspectos internos do condicionamento e pelo contexto histórico que vivemos, a cultura, os amigos, a família; são os elementos externos do condicionamento”. - “A verdade factual vai prevalecer se houver homens dispostos a dizer o que acontece”.
- “Cem anos depois de Marx, sabemos da falácia do seu raciocínio; o tempo livre do animal laborans (animal trabalhador) nunca é gasto em nada a não ser no consumo e, quanto mais tempo ele adquire, mais gananciosos e vorazes se tornam seus apetites.”
- "Mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na terra".
- “A nossa crença na realidade da vida e na realidade do mundo não são, com efeito, a mesma coisa. A segunda provém basicamente da permanência e da durabilidade do mundo, bem superiores às da vida mortal. Se o homem soubesse que o mundo acabaria quando ele morresse, ou logo depois, esse mundo perderia toda a sua realidade, como a perdeu para os antigos cristãos, na medida em que estes estavam convencidos de que as suas expectativas escatológicas seriam imediatamente realizadas. A confiança na realidade da vida, pelo contrário, depende quase exclusivamente da intensidade com que a vida é experimentada, do impacte com que ela se faz sentir. Esta intensidade é tão grande e a sua força é tão elementar que, onde quer que prevaleça, na alegria ou na dor, oblitera qualquer outra realidade mundana. Já se observou muitas vezes que aquilo que a vida dos ricos perde em vitalidade, em intimidade com as «boas coisas» da natureza, ganha em refinamento, em sensibilidade às coisas belas do mundo. O facto é que a capacidade humana de vida no mundo implica sempre uma capacidade de transcender e alienar-se dos processos da própria vida, enquanto a vitalidade e o vigor só podem ser conservados na medida em que os homens se disponham a arcar com o ônus, as fadigas e as penas da vida”. - “A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e da diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender”.
- “As idéias vêm e vão, duram algum tempo, podem até alcançar certa imortalidade própria, dependendo do seu poder de iluminar e esclarecer, que vive e perdura independentemente do tempo e da história”.
- “Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se, como diríamos, superficial.”
- “[...] tudo que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido.”
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Essas são minhas companhias em tempos de pandemia, os livros, mal termino um, já tenho outros embalados, empilhados ao lado da cama, do computador, do sofá, junto à mesa do jantar, do vaso sanitário, no banco do carro, ou seja, a leitura não me deixa enlouquecer...
Nirlando resistiu e foi em frente até quando deu. Mesmo a doença lhe roendo por dentro seguia produzindo uma das seções mais saborosas da revista Carta Capital, a "QI - Guia da vida contemporânea", sempre com um contundente texto de sua lavra. Não perdi um sequer, todos de elevado quilate, pedras preciosas. A revista o reverencia num texto publicado nesta madrugada e faz aumentar minha emoção, pois o leio logo ao acordar: https://www.cartacapital.com.br/…/nirlando-era-um-sujeito…/…. Ainda no mesmo tom, Mino Carta tem publicado no facebook da revista algo ainda mais contundente, resumido numa frase curta, mas muito significativa décadas de amizade, "amigo generoso que escrevia sinfonias": https://www.cartacapital.com.br/…/nirlando-beirao-amigo-ge…/
Eu o acompanho desde muito tempo. Colecionei a revista Status e quando tentaram relançar com nova roupagem, lá estava Nirlando e seu primoroso texto. Sempre impecável, desses que qualquer admirador das letrinhas bate os olhos e se apaixona assim de cara, amor à primeira vista. Suas colunas no Caderno 2 do Estadão merecem um livro, são daquelas a enfeitar um jornal. Cheguei a trocar alguns afagos com ele, via e-mail, nunca pessoais. O vi algumas vezes pela capital pauslista e na última, bem me recordo, estava junto do amigo cartunista Fausto Bergocce, na Livraria Cultura, ali na Paulista, isso deve ter no máximo uns dois anos, talvez pouco mais. Eu e Fausto circulávamos pelo lugar, vasculhando prateleiras, quando lhe aponto o Nirlando, com livros debaixo do braço. Comento com o amigo e ele que também o conhecia de antigas redações me diz para irmos cumprimentá-lo. Disse que não, não o iria amolar, pois nada teria além do cumprimento e da bajulação pelos textos propiciados. Perdemos a oportunidade do afago.
Gente como Nirlando merece mais do que um afago, mero escrito, pois são as tais perdas, onde não mais existem peças de reposição no mercado para substituí-las. Me arrisco e o farei pessoalmente para a revista, até para a própria Manuela Carta, quando lhe darei a singela sugestão de não encerrar com a QI na revista. Existe alguém já colaborador da revista com competência e cabedal para assumir o papel de tocar o barco adiante: Alberto Villas. Da mesma verve generosa, suave, escrita primorosa, pode dar sequência ao que Nirlando vinha fazendo. Encerro com a lapidar frase de Mino, no seu texto aqui lincado e dizendo tudo de gente como Nirlando: "De gente como Nirlando Beirão, é preciso ficar perto o máximo que se puder". Eu o fazia lendo, relendo, indicando e o passando adiante toda semana.