Tentando um novo contato comigo, Gabriela Nogueira se comunica pelo Facebook. A respondo assim: “É aquele senhor que ficava na esquina da Primeiro de Agosto com Gustavo? Entregava para uma dentista. É ele? Que chato saber que não está bem de saúde”. Ela responde: “Ele mesmo, está entubado no hospital”. Respondi: “Me lembra o nome dele completo. Vou localizar e te aviso. E me mantenha informado da saúde dele. Muitos, assim como eu, passávamos por lá e sempre rendia boas conversas”. Ela: “JOSÉ MARIA DE JESUS”.
Algo assim vai além da tristeza. Eu fui um registrador de fotos e histórias das ruas de Bauru e possuo aqui guardados registros de quase duas décadas, registros quase únicos de infinitos personagens marcantes da aldeia bauruense. A imagem dele é para mim muito marcante e com o nome fui pesquisar no blog Mafuá do HPA, encontrando este texto, publicado em 23.09.2015:
“AOS 87 ANOS JOSÉ MARIA DISTRIBUI “COMPRO OURO” POR SETE HORAS DIÁRIAS - Vejo esse senhor toda vez que vou ao centro bauruense. Sempre ali no mesmo lugar e distribuindo o mesmo folheto. Ele repete com todos o mesmo procedimento, estende a mão e oferece o papel. Eu, mesmo já sabendo do que se trata nunca recusei de pegar e fingir guarda-lo. Não me atreveria a jogar na lixeira e sob os olhos de um senhor tão idoso. A cena se repete e sempre me perguntei: “Quem será ele?”. Fui conhece-lo e do que ouvi, aprendi a admirá-lo mais e mais. Vejam se não tenho razão.
JOSÉ MARIA DE JESUS, 87 anos (01/01/1928), mora lá no Alto Paraíso, depois do Hospital Manoel de Abreu e de segunda a sábado, sai de sua casa às 8h e volta depois das 16h30. Permanece o dia quase todo, faça sol ou chuva ali defronte um bar no cruzamento das ruas Primeiro de Agosto com Gustavo Maciel, bem no centro da cidade. Em pé, só saindo dali para almoçar, ir ao banheiro ou beber água, distribui cartões com os dizeres “Compro Ouro”, ganhando por dia R$ 20 reais. São dez anos ali na lida, nove para o mesmo comprador de ouro. Seu José foi taxista por 28 anos, tendo começado a trabalhar na Zona do Meretrício e seu último ponto foi o do terminal rodoviário. Quando aposentou recebia um salário mais três quartos e hoje, me diz, recebe somente um salário mínimo, daí a necessidade de complementar sua renda. Almoça por ali mesmo, quase sempre no Tempero Manero, por R$ 5 reais e quando sente sede ou precisa ir ao banheiro, uma dentista ali do lado é seu ponto de apoio e referência. Com quatro filhos, oito netos e um casal de bisnetos, casado pela segunda vez, há quatro anos teve um enfarte, o que o obriga a tomar diariamente sete comprimidos. Questionado sobre o permanecer em pé ali durante tanto tempo foi direto: “Não tenho problema nenhum em permanecer em pé”. Muitos param e puxam conversa (“outro dia me levaram lá na cozinha do Banco do Brasil e até bolo comi”), outros pegam o folheto e o descartam no chão ou na lixeira defronte o banco, mas alguns guardam e pela constância e seriedade com que executa sua função, segue por ali o mais famoso distribuidor de folhetos do centro bauruense”.
Diante dele hoje doente, tentando se recuperar, resgato não só as fotos, como outros tantos que comigo comentaram dos registros feitos naquela oportunidade. A questiono para ver se me envia algo mais, para construir um texto em sua homenagem: “Gabriela fale mais do seu avô. Quero resgatar as fotos que tirei dele e republicar amanhã com esse algo a mais. Era tão saudável as conversas com ele lá na esquina do centro. Queria que me contasse mais do que fazia, onde morava, onde trabalhou, como era seu dia a dia. Pode ser até num áudio gravado. Vamos relembrar algo mais dele e assim dar força pra ele se reerguer...”. Ela me responde ainda no domingo: “Oii! Falei com minha mãe, e pedi para ela como filha gravar um áudio falando de como era ele como pai, mais novo até todo esse momento, ela disse que amanha vai mandar o áudio aí eu te encaminho pode ser?”. Respondi: “Faça sim, conte algo mais e me diga também como ele vai. Quando postarmos muita gente vai se lembrar dele e mentalizar positivo”. No final do domingo ainda me posta: “Estamos falando com meus tios também gravarem algo. Aí amanhã já mandamos tudo. Pq meu tio mais velho que lembra muita coisa, aí estamos esperando ele gravar até amanhã. E meu vô infelizmente se encontra na UTI, sedado...”.
Hoje, logo pela manhã me chegam vários áudios. No primeiro, a filha o descreve: “O pai é nascido em primeiro de janeiro de 1929. É o caçula de sete e quando nasceu o pai dele havia falecido e a mãe registrou só como Jesus. Todos os irmãos tem sobrenome Veloso, ali em Santo Antonio da Estiva, perto de Pirajuí. Todos o chamavam de Zé Veloso e só descobriram que, na verdade não tinha Veloso e sim Jesus quando ele foi casar. Mesmo assim, todos continuaram chamando ele pela forma antiga. Casou aos 27 anos e na época diziam que ele roubou a mãe. Tempos diferentes, ele pegou minha mãe, levou pra casa da mãe dele, conversaram com o avô e a levou pro altar. Gostava muito de jogar futebol, de dançar, de forró e tinha um cavaquinho. Lembro dele tocando chorando num canto do seu quarto, lembrando com saudade de sua mãe. Teve quatro filhos, trabalhou muito na região de Pirajuí, nas fazendas como administrador. Moramos em Iacanga, depois Bauru, onde foi motorista do Quaggio, de caminhão tanque e de táxi, também tivemos um bar. Morou no Redentor, jardim Carolina, antigo Fura Bucho, depois Geisel, jardim Olímpico, Mary Dota e por fim vila Industrial. Aposentou aos 65 anos e nunca parou de trabalhar. Trabalhou até aos 90 e só parou porque as pernas já não correspondiam. Era pessoa de só no olhar a gente já sabia que tinha que ficar quieto. Família humilde, nunca deixou faltar nada, teve oito netas, três bisnetas e agora final deste mês chega a quarta bisneta. Os filhos são (por ordem): 1 Ademir, 2 Hamilton, 3 Amarildo e 4 Arlete”.
Eu dou uma parada, respiro fundo e continuo transcrevendo o que ela me postou: “Agora depois de velho, quando começou a entregar os papeizinhos, ele já estava viúvo, havia sofrido um assalto com um táxi, onde bateram muito nele, até com pontapés na cabeça. Ele não queria parar, foi quando vi o anúncio no jornal. Ele foi, não parou mais e de um foi outros, trabalhava de segunda a sábado como se batesse cartão. Não gostava de feriado prolongado, pois gostava de estar na rua, vendo pessoas, conversando, se sentir útil. Com 80 anos, quando infartou foi a primeira vez que foi para um hospital. O médico pediu para ele ficar um mês em casa, ele ficou quinze. Quando ele teve que parar mesmo começou um processo de não aceitação. Debilitado começou aparecer outros problemas de saúde. Estudou pouco, escrevia mais ou menos, mas Matemática era o forte. Na época do bar, somava as cadernetas numa rapidez impressionante. Era de uma geração que não era de muita carícia, de colocar no colo, mas de muito respeito. O carinho da forma dele, eu por ser a única mulher era a ‘fia’. Sem abraços, sem afagos, sempre no canto dele, cuidando de todos a distância. Sempre preocupado com todos e hoje ele nessa situação, a gente pedindo a deus para que faça o melhor por ele. Já com 91 anos, dá pra falar que em 90 anos ele viveu bem, muito bem. Adorava o Clube da Vovó, eu levava e depois ia busca-lo. Voltava sempre alegre, me dizendo que havia dançado a noite inteira, camisa suada, todo feliz. Vaidoso, sempre de roupa social, camisa, calça, sapato, gostava de não demonstrar a idade que tinha. Vaidoso, mas sem luxo. Nunca usou um jeans, sempre do mesmo jeitinho, de bigode, a mesma aparência. Uma neta lhe perguntou como conseguia manter a aparência e ele lhe disse: ‘Como muita banana e alface’. Não sei o que vai ser agora, aguardando notícias, todo dia ansiosos, mas com a certeza de que a missão dada a ele foi muito bem cumprida”.
Num outro depoimento, um irmão conta: “Trabalhou muito tempo na serraria Brasil, depois foi também trabalhar na Ibitinguense, quando morou um ano em Iacanga. Na volta para Bauru trabalhou por três anos na ECCB. Depois trabalhou muito tempo também como taxista na zona do meretrício, onde o apelido dele era Zé do Boné. Sempre gostava de suar um bonezinho branco”. Ou seja, reuniram a família, pegaram depoimentos de vários deles, vozes intercaladas, tudo para tentar descrever quem foi de fato esse senhor que, a mim me despertou quando passava ali pela Primeiro de Agosto, ele sempre tão educado na entrega das propagandas, sem deixar nada cair no chão, um saquinho a tiracolo. Impossível passar batido, escrevi e publiquei aquele texto. Muitos vieram me contar outras histórias e também de paradas só para bater papo. Hoje, ao ouvir e transcrever os relatos a mim enviados, vejo que foi muito mais, fez muito, devia ter muita história para contar em todos os lugares por onde passou. Esse o encanto da vida, poder receber histórias como essa e ter o prazer de passar para a frente. Não deixar elas aqui mofando em minhas gavetas. Busco tempo para isso, a transcrição e leva-las adiante. Neste momento, entristecido pelo fato de sabe-lo enfermo e na torcida por dias melhores, quando ainda espero poder gravar suas histórias como taxista, chofer do Quaggio e mesmo as dos seus tempos ali na esquina do centro.
OUTRA COISA
FOTO A ME EMPAPAR DE SAUDADE - QUANDO VOLTAREI PRA RUAS?O jornalista Aurélio e o advogado Marcos, companheiros de inesquecíveis e memoráveis jornadas etílicas, degustativas e com muita prosopopéia falatista, imaginativa e resolvitista, me fazem se retorcer aqui de onde me encontro, no reduto do lar, ainda aguardando dias melhores para poder voltar pras ruas. Eles já o fizeram, com os cuidados necessários, alguns descuidos também, mas não mais aguentando a reclusão botaram o bloco na rua e já estão fazendo e acontecendo pela aí. Eu ainda não consegui. Penso duas, três, quatro vezes e depois da quinta, já com a chave na mãos, penduro a dita cuja novamente aqui na parede e nem abro a porta. Não está sendo fácil para ninguém. Perdemos muitos conhecidos, colegas e baita amigos (as) nesses quase oito meses de reclusão e isso tudo eu coloco na balança quando fico me retorcendo, quase sendo necessário uma camisa de força para me segurar aqui dentre quatro paredes, mas resisto, insisto e persisto, ainda bravamente. Não fico desdizendo e criticando que já capitilou, nada disso, não sou desses a espezinhar quem já circula - com os devidos cuidados -, mas prefiro continuar recluso, pelo menos agora, depois de tanto tempo tentando me safar de pegar a coisa, não será e nem poderá ser agora, quando acredito o jogo já esteja na sua prorrogação que vá eu me danar por causa de manter entre sete chaves por mais um pouco. Muita saudade do Bar do Barba, nosso encontro dominicial lá na encruzilhada, boca de entrada da Feira do Rolo e depois a convivência com tudo aquilo que acontecia - e voltou a acontecer - lá na Banca do Carioca, reduto de infindável prazer, pois lá é um daqueles lugares onde consigo ter orgasmo sem o uso das mãos. Ele flui naturalmente só com a força do pensamento, algo muito difícil na minha idade. Eu vejo essas pessoas todas conhecidas, diletos companheiros de copo e de conversa - muita fiada, outras mais do que sérias -, sofro internamente e externamente, torço por elas todas, ainda confiante que meu dia chegará. Abdiquei de bares, manifestações, trabalho, festas, passeios, diversões, convescotes, campanha política, visitas e tudo o mais onde possa comparecer pessoalmente. Faço a maioria das coisas aqui do reduito do meu lar e assim devo prosseguir mais um bocadinho, esperando a tal da vacina, para daí, não só voltar pras ruas, mas ver o que ainda podemos fazer coletivamente para, numa organização realmente popular, em primeiro lugar, botar pra correr esses vendilhões hoje lá nos governando sob o comando do Senhor Inominável. Depois, tudo o mais, a vida em si e as ruas. Não imaginam o quanto sinto saudade dessa convivência das e com as ruas. Me aguardem, creio eu, meu dia chegará...
JOSÉ MARIA DE JESUS, 87 anos (01/01/1928), mora lá no Alto Paraíso, depois do Hospital Manoel de Abreu e de segunda a sábado, sai de sua casa às 8h e volta depois das 16h30. Permanece o dia quase todo, faça sol ou chuva ali defronte um bar no cruzamento das ruas Primeiro de Agosto com Gustavo Maciel, bem no centro da cidade. Em pé, só saindo dali para almoçar, ir ao banheiro ou beber água, distribui cartões com os dizeres “Compro Ouro”, ganhando por dia R$ 20 reais. São dez anos ali na lida, nove para o mesmo comprador de ouro. Seu José foi taxista por 28 anos, tendo começado a trabalhar na Zona do Meretrício e seu último ponto foi o do terminal rodoviário. Quando aposentou recebia um salário mais três quartos e hoje, me diz, recebe somente um salário mínimo, daí a necessidade de complementar sua renda. Almoça por ali mesmo, quase sempre no Tempero Manero, por R$ 5 reais e quando sente sede ou precisa ir ao banheiro, uma dentista ali do lado é seu ponto de apoio e referência. Com quatro filhos, oito netos e um casal de bisnetos, casado pela segunda vez, há quatro anos teve um enfarte, o que o obriga a tomar diariamente sete comprimidos. Questionado sobre o permanecer em pé ali durante tanto tempo foi direto: “Não tenho problema nenhum em permanecer em pé”. Muitos param e puxam conversa (“outro dia me levaram lá na cozinha do Banco do Brasil e até bolo comi”), outros pegam o folheto e o descartam no chão ou na lixeira defronte o banco, mas alguns guardam e pela constância e seriedade com que executa sua função, segue por ali o mais famoso distribuidor de folhetos do centro bauruense”.
Diante dele hoje doente, tentando se recuperar, resgato não só as fotos, como outros tantos que comigo comentaram dos registros feitos naquela oportunidade. A questiono para ver se me envia algo mais, para construir um texto em sua homenagem: “Gabriela fale mais do seu avô. Quero resgatar as fotos que tirei dele e republicar amanhã com esse algo a mais. Era tão saudável as conversas com ele lá na esquina do centro. Queria que me contasse mais do que fazia, onde morava, onde trabalhou, como era seu dia a dia. Pode ser até num áudio gravado. Vamos relembrar algo mais dele e assim dar força pra ele se reerguer...”. Ela me responde ainda no domingo: “Oii! Falei com minha mãe, e pedi para ela como filha gravar um áudio falando de como era ele como pai, mais novo até todo esse momento, ela disse que amanha vai mandar o áudio aí eu te encaminho pode ser?”. Respondi: “Faça sim, conte algo mais e me diga também como ele vai. Quando postarmos muita gente vai se lembrar dele e mentalizar positivo”. No final do domingo ainda me posta: “Estamos falando com meus tios também gravarem algo. Aí amanhã já mandamos tudo. Pq meu tio mais velho que lembra muita coisa, aí estamos esperando ele gravar até amanhã. E meu vô infelizmente se encontra na UTI, sedado...”.
Hoje, logo pela manhã me chegam vários áudios. No primeiro, a filha o descreve: “O pai é nascido em primeiro de janeiro de 1929. É o caçula de sete e quando nasceu o pai dele havia falecido e a mãe registrou só como Jesus. Todos os irmãos tem sobrenome Veloso, ali em Santo Antonio da Estiva, perto de Pirajuí. Todos o chamavam de Zé Veloso e só descobriram que, na verdade não tinha Veloso e sim Jesus quando ele foi casar. Mesmo assim, todos continuaram chamando ele pela forma antiga. Casou aos 27 anos e na época diziam que ele roubou a mãe. Tempos diferentes, ele pegou minha mãe, levou pra casa da mãe dele, conversaram com o avô e a levou pro altar. Gostava muito de jogar futebol, de dançar, de forró e tinha um cavaquinho. Lembro dele tocando chorando num canto do seu quarto, lembrando com saudade de sua mãe. Teve quatro filhos, trabalhou muito na região de Pirajuí, nas fazendas como administrador. Moramos em Iacanga, depois Bauru, onde foi motorista do Quaggio, de caminhão tanque e de táxi, também tivemos um bar. Morou no Redentor, jardim Carolina, antigo Fura Bucho, depois Geisel, jardim Olímpico, Mary Dota e por fim vila Industrial. Aposentou aos 65 anos e nunca parou de trabalhar. Trabalhou até aos 90 e só parou porque as pernas já não correspondiam. Era pessoa de só no olhar a gente já sabia que tinha que ficar quieto. Família humilde, nunca deixou faltar nada, teve oito netas, três bisnetas e agora final deste mês chega a quarta bisneta. Os filhos são (por ordem): 1 Ademir, 2 Hamilton, 3 Amarildo e 4 Arlete”.
Eu dou uma parada, respiro fundo e continuo transcrevendo o que ela me postou: “Agora depois de velho, quando começou a entregar os papeizinhos, ele já estava viúvo, havia sofrido um assalto com um táxi, onde bateram muito nele, até com pontapés na cabeça. Ele não queria parar, foi quando vi o anúncio no jornal. Ele foi, não parou mais e de um foi outros, trabalhava de segunda a sábado como se batesse cartão. Não gostava de feriado prolongado, pois gostava de estar na rua, vendo pessoas, conversando, se sentir útil. Com 80 anos, quando infartou foi a primeira vez que foi para um hospital. O médico pediu para ele ficar um mês em casa, ele ficou quinze. Quando ele teve que parar mesmo começou um processo de não aceitação. Debilitado começou aparecer outros problemas de saúde. Estudou pouco, escrevia mais ou menos, mas Matemática era o forte. Na época do bar, somava as cadernetas numa rapidez impressionante. Era de uma geração que não era de muita carícia, de colocar no colo, mas de muito respeito. O carinho da forma dele, eu por ser a única mulher era a ‘fia’. Sem abraços, sem afagos, sempre no canto dele, cuidando de todos a distância. Sempre preocupado com todos e hoje ele nessa situação, a gente pedindo a deus para que faça o melhor por ele. Já com 91 anos, dá pra falar que em 90 anos ele viveu bem, muito bem. Adorava o Clube da Vovó, eu levava e depois ia busca-lo. Voltava sempre alegre, me dizendo que havia dançado a noite inteira, camisa suada, todo feliz. Vaidoso, sempre de roupa social, camisa, calça, sapato, gostava de não demonstrar a idade que tinha. Vaidoso, mas sem luxo. Nunca usou um jeans, sempre do mesmo jeitinho, de bigode, a mesma aparência. Uma neta lhe perguntou como conseguia manter a aparência e ele lhe disse: ‘Como muita banana e alface’. Não sei o que vai ser agora, aguardando notícias, todo dia ansiosos, mas com a certeza de que a missão dada a ele foi muito bem cumprida”.
Num outro depoimento, um irmão conta: “Trabalhou muito tempo na serraria Brasil, depois foi também trabalhar na Ibitinguense, quando morou um ano em Iacanga. Na volta para Bauru trabalhou por três anos na ECCB. Depois trabalhou muito tempo também como taxista na zona do meretrício, onde o apelido dele era Zé do Boné. Sempre gostava de suar um bonezinho branco”. Ou seja, reuniram a família, pegaram depoimentos de vários deles, vozes intercaladas, tudo para tentar descrever quem foi de fato esse senhor que, a mim me despertou quando passava ali pela Primeiro de Agosto, ele sempre tão educado na entrega das propagandas, sem deixar nada cair no chão, um saquinho a tiracolo. Impossível passar batido, escrevi e publiquei aquele texto. Muitos vieram me contar outras histórias e também de paradas só para bater papo. Hoje, ao ouvir e transcrever os relatos a mim enviados, vejo que foi muito mais, fez muito, devia ter muita história para contar em todos os lugares por onde passou. Esse o encanto da vida, poder receber histórias como essa e ter o prazer de passar para a frente. Não deixar elas aqui mofando em minhas gavetas. Busco tempo para isso, a transcrição e leva-las adiante. Neste momento, entristecido pelo fato de sabe-lo enfermo e na torcida por dias melhores, quando ainda espero poder gravar suas histórias como taxista, chofer do Quaggio e mesmo as dos seus tempos ali na esquina do centro.
OUTRA COISA
FOTO A ME EMPAPAR DE SAUDADE - QUANDO VOLTAREI PRA RUAS?O jornalista Aurélio e o advogado Marcos, companheiros de inesquecíveis e memoráveis jornadas etílicas, degustativas e com muita prosopopéia falatista, imaginativa e resolvitista, me fazem se retorcer aqui de onde me encontro, no reduto do lar, ainda aguardando dias melhores para poder voltar pras ruas. Eles já o fizeram, com os cuidados necessários, alguns descuidos também, mas não mais aguentando a reclusão botaram o bloco na rua e já estão fazendo e acontecendo pela aí. Eu ainda não consegui. Penso duas, três, quatro vezes e depois da quinta, já com a chave na mãos, penduro a dita cuja novamente aqui na parede e nem abro a porta. Não está sendo fácil para ninguém. Perdemos muitos conhecidos, colegas e baita amigos (as) nesses quase oito meses de reclusão e isso tudo eu coloco na balança quando fico me retorcendo, quase sendo necessário uma camisa de força para me segurar aqui dentre quatro paredes, mas resisto, insisto e persisto, ainda bravamente. Não fico desdizendo e criticando que já capitilou, nada disso, não sou desses a espezinhar quem já circula - com os devidos cuidados -, mas prefiro continuar recluso, pelo menos agora, depois de tanto tempo tentando me safar de pegar a coisa, não será e nem poderá ser agora, quando acredito o jogo já esteja na sua prorrogação que vá eu me danar por causa de manter entre sete chaves por mais um pouco. Muita saudade do Bar do Barba, nosso encontro dominicial lá na encruzilhada, boca de entrada da Feira do Rolo e depois a convivência com tudo aquilo que acontecia - e voltou a acontecer - lá na Banca do Carioca, reduto de infindável prazer, pois lá é um daqueles lugares onde consigo ter orgasmo sem o uso das mãos. Ele flui naturalmente só com a força do pensamento, algo muito difícil na minha idade. Eu vejo essas pessoas todas conhecidas, diletos companheiros de copo e de conversa - muita fiada, outras mais do que sérias -, sofro internamente e externamente, torço por elas todas, ainda confiante que meu dia chegará. Abdiquei de bares, manifestações, trabalho, festas, passeios, diversões, convescotes, campanha política, visitas e tudo o mais onde possa comparecer pessoalmente. Faço a maioria das coisas aqui do reduito do meu lar e assim devo prosseguir mais um bocadinho, esperando a tal da vacina, para daí, não só voltar pras ruas, mas ver o que ainda podemos fazer coletivamente para, numa organização realmente popular, em primeiro lugar, botar pra correr esses vendilhões hoje lá nos governando sob o comando do Senhor Inominável. Depois, tudo o mais, a vida em si e as ruas. Não imaginam o quanto sinto saudade dessa convivência das e com as ruas. Me aguardem, creio eu, meu dia chegará...
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