terça-feira, 7 de dezembro de 2010

BEIRA DE ESTRADA (10)

REMINICÊNCIAS DE UM CAMINHÃO NA BEIRA DA ESTRADA ou RECORDAÇÕES DE UM CAMINHÃO
(Publicado na Revista do Caminhoneiro, tiragem de 100 mil exemplares, edição 273, outubro de 2010) *
Já fui muito ativo, rodei anos a fio e termino meus dias confinado num ferro-velho às margens da Belém-Brasília, vendo esse Brazilzão novo passar diante dos meus faróis, sem nada pode fazer. No começo batia uma angústia, por não mais circular, justamente quando as maiores transformações estão a ocorrer, porém sinto-me bem, um negócio aqui por dentro de dever cumprido, pois para chegar à situação atual, tudo ocorreu com a minha participação. Trabalhei por décadas, mais de cinqüenta anos.

Não vivo aqui nessa beira de estrada só de lembranças do passado. Delas não me separo, mas sei que tudo é uma continuidade de algo iniciado muito lá atrás. Se quiserem saber, conto um bocadinho de minha história. Ela é cheia de aventuras e de inusitados acontecimentos. Parece um thriller de um filme, ou melhor, daria mesmo um belo filme. O fusca já mereceu o seu e por que a minha saga não mereceria a mesma honraria?

Nasci numa fábrica paulista. De lá vim para uma revenda em Goiânia, conhecendo meu primeiro dono. Acabei nos confins da nova capital, na época de sua construção. Enfrentei estradas ruins, esburacadas e labutava diariamente, indo e vindo com cargas e gente. Trouxe para essa imensidão antes vazia um mundo de gente. Muitos deles fincaram raízes, tanto que um neto dos pioneiros, hoje aqui me abriga. É o dono do ferro velho.

Não reclamo daqui, muito já fiz. Meu tempo demorou a passar. Fiz a minha parte e bem feita. Imagina o vai-e-vem, num leva e traz de pessoas e materiais. Um desgaste danado, comi muita poeira. Suei a cântaros. Já fui uma espécie de ônibus, com lona e bancos sob a carroceria. Hoje, vejo cada baita ônibus e caminhão na estrada, nem te conto. Por sorte ou sensibilidade, sei lá, me posicionaram com os faróis voltados para a pista. Observo tudo, meio embaçado, comparo e constato a importância do caminhão para isso tudo que o Brasil é hoje.

Foi um tempo mágico, rodava sem parar. Se me perguntarem o nome dos que estiveram no volante junto a mim, não lembrarei todos. Foram muitos, cada um de uma região desse país continente. Por uns fui tratado com carinho danado, outros nem tanto, mas de todos guardo boas lembranças. Esticaram-me a vida o quanto puderam. Rendi a todos bons negócios, fui valente e hoje vendo a estrada que vi nascer, alquebrado pela quantidade de quilômetros rodados, reconheço ter parado no meu limite.

O tempo passou e ao me dar conta, perdi o aspecto da mocidade, sendo negociado com esse último. Retiraram tudo o que tinha de aproveitável. Sim, você caminhoneiro passando aqui diante de mim, não me olhe com desprezo ou piedade. Tô aqui debaixo de sol e chuva, como sempre fiz, mas saiba de antemão, assim como esse aí, guiado por ti, esse aqui que vos fala foi um dos que facilitou a sua vida, fertilizou o caminho para que pudesse desfrutar dessa vida atual nas estradas. Não reclame, olhe para trás e levante os olhos diante do futuro. Muito a ser feito e agora é com vocês. Passando diante de outros na minha situação, faça um breve aceno em sinal de reconhecimento. E toque em frente.
* As fotos publicadas do lado direito foram todas tiradas por mim, servindo de fonte inspiradora para essa crônica. Voltava de Jaú em outubro e no trevo de Pederneiras, vi esse cemitério de carros, ônibus e caminhões antigos. Daí veio a idéia para o escrevinhamento acima.

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