1.) O CASAL JOÃO E MARIA SÃO CATADORES DE RECICLADOS E VENDEDORES DE MIUDEZAS NA FEIRA DO ROLO Eu adoro ir na Feira do Rolo bauruense, a versão da aldeia onde resido do Mercado das Pulgas, algo existente mundo afora. Bato cartão todo domingo e não me canso de repetir: "Hoje o espaço mais democrático desta inusitada e desorientada cidade". Estar por ali nas manhãs de cada novo domingo é para mim a renovação do oxigênio, tão necessário para conseguir sobreviver nos restantes seis dias da semana. Quando por alguma cargas d'água deixo de lá comparecer, sinto me faltar algo. Nas idas e vindas, algo me envaidece e enche de orgulho este que aqui batuca essas mal traçadas: o fato de ser reconhecido e chamado para conversas ao pé do ouvido. Não existe nada igual de você estar perambulando debaixo daquele escaldante sol e uma voz te chamar: "Ei, você não é o professor, aquele que a gente estacionava o carro defronte sua casa e nos dava água todo dia, além de puxar conversa?". Sim, sou eu.
JOÃO E MARIA não gostam muito de dizer seus nomes, nem de ficar dizendo o bairro onde moram. Gente das camadas mais simples não estão acostumados a terem seus nomes escritos e reproduzidos pela aí e ficam tomados de desconfiância diante de alguém querendo saber seus nomes, idade, lugar onde moram. Minha intenção é a de enaltecer o que fazem, enchendo as ruas bauruenses de vida. Respeito a ambos, muito mais do que os barões desta vil cidade. Na feira dominical paro para comprar uns livros espalhados num plástico esticado no chão e eles me reconhecem. Tinham uma velha Brasília e estacionavam durante o dia num terreno defronte minha casa. De lá, tinham fixado com uma corrente com cadeado, um carrinho de reciclados e com eles circulavam pela cidade o dia todo em busca de material servível. No final do dia apareciam com o carrinho cheio, tomavam água, conversávamos e saiam com ele atrelado como uma carretinha até o ponto de venda. Um dia roubaram o carrinho e o acharam dias depois nas mãos de uns nóias. O recuperaram, mas perderam a confiança de deixá-lo no local de antes, junto aos trilhos e beirada do rio Bauru. Sumiram do pedaço. Fui revê-lo tempos atrás com outro carrinho cheio numa esquina desta aldeia e me contaram continuarem fazendo o mesmo de sempre, mas agora com uma espécie de autêntica carretinha, comprada com muito custo. Neste último domingo, os reencontro na feira. Foi uma gostosura o papo e o convite para passarem lá por onde moro, compro uns livros e até uma moldura de quadro. Como recolhem muita coisa pelas ruas, resolveram vender algo que consideram úteis para outros e assim ampliar a renda. Sempre juntos, queimadíssimos de sol, sorridentes e cheios de ricas histórias dessas ruas e seus entornos, algumas alegres, outras nem tanto, mas todas recheadas de muito calor humano. Pessoas como eles me revigoram para tudo o mais.
2.) SORVETEIRO JOSÉ PRATICAMENTE RESIDE DEFRONTE O SESC BAURU Ontem escrevi aqui de um casal vivendo com o que recolhe pela cidade de sucatas e da desconfiança desses em ver seus nomes citados em publicações. Temem que qualquer tipo de mera citação lhes cause problemas, perseguições e admoestações gratuitas. Vivem na defensiva, praticamente desconhecendo qualquer tipo de legislação que possa lhes defender. São tantos na mesma situação. Vivem precariamente, inventando seus ofícios, o trabalho na calçada, na beira da sarjeta e deles fazendo sua sobrevivência. As histórias se repetem e em muitas o mesmo sentimento, o de desconfiança diante de uma aproximação, de querer saber algo mais de suas vidas. Ela já é tão dura e, por fim,quem seria esse se interessando por ela? Coisa boa não deve ser.
O sorveteiro defronte o SESC todos que frequentam o lugar conhecem. Se está ali tempos depois da abertura e inauguração do prédio é algo que poucos sabem avaliam com exatidão, pois são décadas de calçada. Começou com um simples carrinho de sorvete e hoje, para tentar ampliar os ganhos, anexou algumas ciaxinhas com doces variados, desde chicletes, paçocas e afins. Seu José é figura por demais conhecida no lugar. Quem o acompanha ali na calçada sabe avaliar o que venha a ser as agruras de um incessante trabalho sob os efeitos do sol, chuva e frio. A sua fisionomia é de cansaço, mas ele resiste, bravamente e em todos os dias ali se apresenta, imponente e oferecendo calado seus produtos. Não é dado a ofererer nada, chega, coloca seu carrinho embaixo de uma árvore (ainda bem que ela ali está), senta num banquinho e fica esperando seus prováveis clientes, com aquele olhar distante, vagando para não se sabe aonde. E se ali continua, o motivo é um só, eles existem, voltam. Poucos param para puxar uma conversa, talvez até por causa de seu jeito introspectivo. É mais que um mero personagem desta cidade, um digno trabalhador, um que ao se ver sem possibilidades de encontrar algo mais rentável, como um emprego fixo, encontrou esse ponto, até então livre e nele se fixou, fincou raízes e tem receio de que o tirem dali. Estar num lugar nas ruas nem sempre é algo resolvido no sistema de "paz e amor".Virou uma marca do SESC Bauru, daquele lugar, mas existente por todos os lugares, ocupadas por gente com a mesma disposição do seu José. Impossível passar pelo local e não notá-lo e se sensibilizar com sua insólita presença.
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