sexta-feira, 2 de agosto de 2019
MEMÓRIA ORAL (243)
DOIS ATOS NA PRAÇA DE MAYO, CAPITAL ARGENTINA – COM AS MADRES E POR GUSTAVO MALDONADO
Na tarde da última quinta-feira, 01/agosto, dentre as tantas manifestações de rua marcadas para ocorrer em Buenos Aires (por aqui, algo ainda insipiente no Brasil: tem várias manifestações, todos os dias da semana), participei de duas e as relato, esmiuçando como essa ocorre essa particularidade da vida cotidiana do portenho.
Duas quase ao mesmo tempo e no mesmo local, a Praça de Mayo, tendo ao fundo a Casa Rosada, ponto nevrálgico e central da capital. Nas tardes de quinta, algo já ocorrendo há mais de décadas é o ato das Mães da Praça de Mayo, hoje já todas avós, mas com algo ainda inconcluso na história argentina. O sumiço de muitas pessoas no período ditatorial, muito mais sangrento e violento que o brasileiro não foi de todo concluso e muitos ainda permanecem desaparecidos. As corajosas mães dos desses enfrentaram corajosamente o regime militar exigindo na praça, bem defronte o palácio governamental a devolução dos seus filhos. Desde então o ato nunca deixou de ocorrer, sempre nas quintas, na parte da tarde, tudo funcionando como um reloginho. Elas inicialmente se reuniam silenciosamente e se punham a dar voltas no centro das praça, conseguindo a visualização de todo o país para suas dores. O ato acabou por se transformar num símbolo de resistência, hoje uma denúncia que nunca deve ser esquecida para algo pelo qual ninguém quer de volta no país, a ditadura militar.
Os argentinos sabem pelo aparato montado para recepcioná-las, tudo montado com a devida antecipação. Barracas são levantadas e no entorno, são fixados cartazes com denúncias de várias atrocidades ocorrendo no país e simultaneamente espalhadas pela América Latina. Várias reverenciam Lula e pedem por sua libertação, assim como outras tantas denunciam as atrocidades do atual desGoverno de Bolsonaro. Elas, as madres, chegam numa van e são deslocadas cuidadosamente para uma barraca, onde sentam e aguardam o início do ato. Ele se dá da mesma forma de sempre, pontual, começando as 15h30 de dando voltas na praça, com cantorias variadas, repetidas por todos. Muitos trazem cartazes e esses são levantados na marcha. Na fisionomia dos presentes, a maioria de meia idade, seguida de muitos jovens, entoa sem medo, sob os olhares sempre presentes da polícia de Macri, uma um tanto insensível com o que se passou com o país num passado não tão distante. Infelizmente as polícias atuam por todos os lugares para defender o status quo vigente. Se o governante é de direita e conservador, praticam descaradamente a truculência como forma de trabalho, mas quando os governantes são democráticos são contidos e deixam de lado a violência. No ato presenciado se mantiveram a distância, mas fazendo questão de expor o aparato que possuem.
As madres são tratadas com um carinho e atenção bem peculiar aqui na Argentina. Estar ao lado delas e poder observar algo desse carinho, uma espécie de reconhecimento pela luta empreendida é algo para tocar os corações humanos, sensíveis e também em constante luta, pois essa não cessa nunca. Tudo nesse primeiro ato do dia é tratado como um reloginho a funcionar perfeitamente, com começo, meio e fim. Elas assim o repetem desde muito tempo. Chegam, se mostram, se revezam nessa vinda á praça e promovem o ato, repetitivo e constante, lindo como uma dessas peças de teatro que não devem nunca sair de cartaz, até porque, com o desGoverno de Maurício Macri, em quatro anos, a percepção de um país muito pior do que o deixado por Cristina Kirchner. A pobreza está cada vez mais marcante nas ruas e a violência, principalmente a policial uma constante contra o povo mais pobre. Assim sendo, essa e outra forma de resistência são mais do que necessárias e elas sabem disto, não se furtando a não só pedir pelos seus desaparecidos, mas por tudo o mais de injustiças a ocorrer no país.
Nesse momento pedem também por Santiago Maldonado, o jovem tatuador, anarquista que atuava junto aos mapuches, índios locais, num momento de muito conflito, quando as forças policiais de Macri se voltavam contra eles, restringindo seu território e calando suas vozes. Jovens como Maldonado se juntavam aos índios e resistiam como podiam. Num exato dia de dois anos atrás esses estavam impedindo a circulação de automóveis numa rodovia perto da aldeia e mesmo com o ato já encerrado, a Gendarmeria, polícia especial argentina, chega e promove uma violência desmedida, culminando com a arbitrária prisão deste jovem, que resiste e desta forma é levado de forma violenta, não mais aparecendo com vida. A partir deste sumiço o país se mobiliza e clama contra seu desaparecimento, dado como certo feito pelos agentes policiais. Foram meses de intensa cobrança junto ao Governo, até que numa manhã seu corpo é encontrado, meses depois, depositado num rio da região. Onde esteve? Até hoje ninguém sabe. O fato é que esteve por meses, ou encarcerado ou já morto, congelado num departamento policial e devolvido com uma armação ilimitada de desencontros, repudiada pela população. A responsabilidade governamental é evidente, mas até hoje ignorada por Macri, daí, além de toda movimentação por Santiago, a eles se juntam também as madres. Na Praça de Mayo na quinta passada, quando terminava um ato e a van saia da praça levando as madres de volta para seus lares, suas barracas eram todas desmontadas, tinha início a montagem de outro aparato, um palco para abrigar o ato seguinte, esse clamando por justiça para ocorrido com Gustavo. Tudo ia sendo levantado em tempo record, com espaço isolado e em menos de uma hora, tudo pronto. De um lado da praça, tudo desmontado e dou outro, tudo sendo levantado e o povo não arredando pé.
O povo, escrevo do que vi desta movimentação. Não se tratam de participações distintas, mas sequenciais, com objetivos em comum. Se já tinha achado a participação popular vital para o ato das madres, no de Gustavo, ocorrendo em grande parte do país no mesmo dia, esse me surpreende, pois nas avenidas laterais, muitas concentrações populares se aglomeravam em separado, com seus batuques e bandeiras, esperando o momento certo de adentrar o espaço da praça. Uma organização bem definida. Circulei por todos os espaços e me surpreendi com o que vi. Em pelo menos três grandes avenidas laterais, muita gente, principalmente pela fisionomia, gente mais simples, agremiações populares de bairros, cada uma com organização própria. Cada um sabia onde estavam os seus e ali se posicionavam, entoando seus cantos, preparados para adentrarem a praça. Vejo na fisionomia de muitos o sangue latino, indígena, traços bem definidos de uma classe oprimida por séculos e a exigir direitos, tratamento digno. Em bloco, grupo consistente e vibrante, ali por estarem cientes de que, gritando nas ruas a favor de Gustavo, estavam também o fazendo em favor dos seus objetivos. Isso me encantou e os fotografei com todo o carinho e atenção.
Mais e mais pessoas se aglomeravam na praça e num sinal vindo de algum lugar, os grupos começaram a se dirigir para a praça. Ocuparam todos os espaços, cada um, me parece, já delimitados. Algo muito bem organizado, planejado e quando colocado em prática, perfeitos, precisos. No horário previamente marcado, 17h, tem início a esse segundo ato e realizado sem muitas delongas. Com somente um locutor, esse relatou todas as entidades envolvidas com a realização, citadas uma a uma, com uma fala bem definida. Somente ele falou, depois a família de Santiago, uma irmã e por fim, o irmão Sergio Maldonado. A praça parou, prendeu a respiração com sua fala, feita ao seu jeito, voz um tanto baixa, porém preciso, reto e direto, texto curto, dizendo ao público o necessário, o que real motivo de ali estarem e da continuidade da luta por esclarecimentos sobre o desaparecimento de Santiago. Ou seja, um país clamando por Justiça, exigindo explicações e reconhecimento de culpa governamental. Mais não houve vindo do palco.
O ato termina e a multidão começa a se dispersar. Eu no meio da multidão, circulando pela praça observei cada detalhe, onde meus olhos puderam estar e me encantei com tudo o que vi. Conversei com muitas pessoas, principalmente brasileiros, que me vendo inicialmente empunhando um cartaz tendo Lula e os bottons na lapela, se aproximavam e puxavam conversa. Gente de Goiânia, Curitiba e gaúchos. Professoras brasileiras em Buenos Aires para participarem de congresso acadêmico em outra cidade, passavam pela cidade e fizeram questão de ali estarem. Não as identifico, pois atuando em entidades públicas, cientes da perseguição em curso, estão mais do que cientes do baú de maldades contra seus costados, estão em vigília, porém retraídas, receio estampado em seus rostos. “Não podemos ter neuras, viver sob essa mania de perseguição, mas ela existe, é presente e na exposição, nossos empregos podem estar em risco”, me disseram.
Algo me chamando muito a atenção foi a atuação dos que colavam cartazes em paredes próximas. Com uma técnica própria, rápidos escolhiam os locais, um passava cola nos locais, depois com uma escova, tipo vassoura a espalhavam na parede, depois fixavam o papel e com a mesma escova, fixavam o papel. Converso com dois deles, me apresento como brasileiro e me contam ricos detalhes de como se dá essa forma de resistência. Todos atuam em entidades, grupos organizados nas periferias e se apresentam em todos os atos. “Sabemos que no dia seguinte, pessoas ligadas aos locais onde colamos os cartazes tentam retirá-los, mas permanecem por alguns dias, visto por milhares. Nós colamos, eles retiram e assim seguimos, sem trégua”, me conta. São muitos, cada um com cartazes e frases diferentes, porém com o mesmo objetivo. Na praça, muitas bancas de livros usados, bottons, bandanas, imãs, bolsas e camisetas (trago uma com a fisionomia de Gustavo e no fundo a cor azul clara, da bandeira argentina). Muita gente tenta sobreviver com a venda desses produtos. Espalhados por todos os cantos gente vendendo algo para comer. Muitos chegam e montam uma simples banca, vendendo pão, doces, lanches, com cartazes feitos à mão. Nas rebarbas do evento, as churrasqueiras de rua, um pouco diferente das nossas, com o jeito argentino de assar. Vi gente fritando ovos nesses lugares e montando lanches ao estilo popular, num modo não muito diferente do que também acontece no Brasil.
Bom observador e registrador, fotografei quase tudo. Montei mais um álbum a demonstrar como se dá algo mais da resistência popular. Tenho uma predileção toda especial por estar em lugares como esse, onde me misturo com tudo o mais, me apresento com os mesmos interesses de luta de todos. Não consigo estar num país sem estar nas ruas, assim como o faço em meu país, pois a luta de todos os povos são muito parecidas, a exploração é idêntica, similar e contínua, cruel e insana. Observar como se dá a resistência em lugares distintos é uma forma de assimilar algo desta luta e tentar incorporá-la no meu próprio campo de luta. Faço isso por onde passe. Seria muito triste estar aqui nesse rico momento, uma semana antes da “primeira volta” da eleição presidencial, quando serão definidos os dois nomes para a disputa de outubro, muito próxima de ocorrer entre Macri e Alberto Fernandez/Cristina Kirchner. A mesma resistência observada aqui ocorre no meu país. Guardadas todas a devida diferenças entre os povos, estamos vivenciando um cruel tempo de transformações, onde as elites de nossos países jogam muito pesado contra os interesses da maioria do povo e esses lutam, estão nas ruas, se posicionam e ao marcar presença na Praça de Mayo para os dois atos aqui citados, vi com meus próprios olhos algo pelo qual nunca mais esquecerei. Assim se dá a transformação interna de uma pessoa, vivenciando pessoalmente nos campos de luta como o processo ocorre. Fiz e faço isso, pois quero estar intensamente plugado e atuando pelas necessárias transformações em favor desses pelos quais escrevo.
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