Uma das leituras que mais tem me dado prazer nesses tempos de confinamento é da socióloga, professora da USP Esther Solano. A descobri como colunista quinzenal na revista Carta Capital. Ela produz pesquisas com pessoas da periferia e tempos atrás “começou a investigar as mentes dos apoiadores de Jair Bolsonaro, suas motivações, seu modo de compreender a realidade”. Ela tem uma tese a comprova em cada novo escrito: “Os bolonaristas toscos, violentos, acríticos e antidemocráticos, o ‘gado’, são uma parte relevante dessa base, mas não formam a maioria daqueles que depositaram ‘esperança’ no ex-capitão ou votaram nele para extravasar as frustrações”. Ela num dos últimos textos demonstra que hoje, dentre esses, muita desilusão com o voto dado, mas algo preocupante pela frente, um VAZIO. Como preenche-lo, sem que esses voltem a votar e acreditar em alguém com o discurso de um fanático tresloucado? No seu último artigo para a revista ela demonstra através de um diálogo travado com um senhor da região periférica paulistana, quando este lhe disse: “Vou votar no Bolsonaro porque é o único candidato que entendo”. Isso merece não só uma reflexão, mas uma nova postura no trato para com essa camada da população.
“Acho muito importante nossa posição como antifascistas, mas...se quisermos que a frente antiBolsonaro chegue com força nas classes populares não podemos ficar restritos a este termo. Nossas pesquisas são claras sobre isso, o conceito fascismo não dialoga com a maior parte das pessoas de menor renda. Essas pessoas que estão morrendo pelo Coronavirus, ficando desempregadas e desesperadas. Nesse contexto dizer a elas que devemos tirar Bolsonaro do poder porque ele é fascista não faz sentido. Falemos sobre saúde, sobre SUS, sobre auxílio emergencial, planos de emprego. Para quem tem medo de não poder alimentar seus filhos o fascismo está longe demais e a fome perto demais”, texto dela retirado de sua página no facebook.
Fui fazer minha pesquisa ao meu modo e jeito, com quem está por perto nestes dias, uma senhora de 65 anos, moradora no Jaraguá, servente do prédio onde moro, evangélica, dois ônibus para vir e dois para voltar, trabalhando num lugar onde muitos não lhe dizem nem bom dia, quanto mais param para uma conversinha. Eu tenho quilometragem de conversa com ela, mais do que com todos os demais moradores daqui. Revelo algumas, sem ordem cronológica, lembranças de papos ao longo dos últimos meses.
- Tudo bem com o senhor, alguma coisa a reclamar? – esse sempre o seu cumprimento matinal. Para ela, existe só o trabalho e da continuidade dele, a possibilidade de ter a vida que tem, o ganho que possui, daí não reclama de nada, nem quando a fazem descer do elevador, pois segundo me disse outro dia, a ordem é para descer e subir somente pessoas do mesmo apartamento. Ela é retirada seguidas vezes, em andares diversos e ao ser reconduzida e questionada, continua dizendo “nada a reclamar e o senhor?”. Para ela, o que a conduz é a crença religiosa, sempre em primeiro lugar. Querer confrontar com isso é já criar uma barreira, daí com ela, mais ouço do que falo, só a provoco.
- Sim, dona Josefa, ter fé é tudo de bom, mas não podemos esperar tudo dele, temos que também lhe ajudar e fazer a coisa certa, votar certo, pois de um erro desses, a coisa piora sempre pro nosso lado – lhe disse dia desses. Ela me olha de soslaio e dependendo do que disser na sequência, perco a sua confiança. Dialogar assim é um eterno pisar em ovos. Eu quero me aproximar, me esforço, quero entender, ver se algo pode ser mudado, mas sei das dificuldades e ainda não encontrei o método mais adequado.
- Meu filho, sou escovada, tenho um casco de décadas. Não existe outra saída, cabeça baixa, ouvir e nada responder. Rezo por mim e também por todos. Não me meto com política, quero e preciso manter meu salário - me diz. Ela dificulta a aproximação, mas ouve alguém, provavelmente o pastor de sua crença religiosa. Não desisto nunca de dona Josefa, uma pessoa boníssima, por quem nutro muito simpatia e carinho. Ela nunca cruzou comigo sem me cumprimentar e perguntar por Ana, a esposa. Já dos outros moradores, muitos não me dão nem bom dia. Diante disso, prefiro continuar insistindo em buscar um diálogo com ela e cada vez menos com os “peitos estufados” (não seriam emplumados?).
Solano me dá as dicas em seus textos e tento segui-los à risca. Para pessoas como dona Josefa, certamente, “a imprensa mente. Os políticos mentem. Os professores falam complicado. Em quem posso confiar? Em ninguém”. Eles estão tão ou mais perdidos que nós, pois também estamos e afirmo isso, pois nem ao menos sabemos como tratar com esses semelhantes, clamando por novos caminhos. Não tenho como chegar numa pessoa assim e discursar falando de fascismo, esquerda-direita, feminicídio, etc, enfim, “palavras tão comuns para nós e tão invisíveis para muitos”, repete Solano. Ela continua: “desqualificando ao invés de tentar dialogar humildemente, em vez de tentar entender que ela simboliza milhões de brasileiros, consequências de uma educação precária, deseducadora, despolitizadora”.
Dona Josefa e todos os demais servidores aqui do prédio onde moro querem e gostam muito de conversar, o zelador, os porteiros, o jardineiro, quem vem prestar serviço, o eletricista, o encanador e cada um destes possui um jeito de encarar isso tudo que estamos passando e sei, bem diferente do que vivencio. Eles já se aproximam com um pé atrás, desconfiados, prontos para tudo. Quando sentem confiança (minha também neles), nos abrimos, mas ainda pecamos, pois creio estamos distantes de entendê-los de fato. Solano me abre portas, afirma que o campo progressista tem papel imprescindível no que virá pela frente. Por fim ela conclui e me acende o alerta máximo do que tenho pela frente como missão, tarefa para o resto dos meus dias: “Se a oposição não encontrar uma maneira de se reconectar com os mais pobres, são enormes as chances de os arrependidos voltarem ao colo do Bolsonaro por falta de opção”. Ou seja, muito trabalho pela frente. Mas como mesmo, hem???
E COMO SAIR DA SITUAÇÃO ONDE NOS ENCONTRAMOS?
*Frente ampla* - O abismo está aí, texto de Luis Fernando Veríssimo, 11.06.2020
Foi bom ver a Marina Silva, o Fernando Henrique e o Ciro Gomes, entrevistados pela Míriam Leitão, falando na TV sobre uma frente ampla para enfrentar o caos, que é como estão chamando o governo do Brasil lá fora. Também foi bom ver manifestantes na rua desfilando pela democracia e contra a ameaça fascista — uma ameaça que aumentou alguns pontos depois que o último general de fatiota moderado, o Mourão, deixou cair a máscara, ou pelo menos deixou de ser moderado.
Não se sabe bem o que representam hoje, em matéria de poder de mobilização, os entrevistados da Míriam. Se não representam muito, politicamente, pelo menos representam a resistência que muita gente já julgava natimorta, e que mostrou que não apenas existe como se manifesta, ou começa a se manifestar.
“Frentes amplas” não têm uma história muito inspiradora, no Brasil. A última a que prestei atenção reuniria, veja só, o Juscelino, o Lacerda e outros descontentes com os rumos da “Revolução” de 64, alguns frustrados por terem ficado de fora, outros por sincero desencanto com o golpe. A frente, se me lembro bem, não chegou a se criar e terminou com a morte do Juscelino num acidente de carro. Até hoje tem gente que diz que o acidente não foi tão acidental assim.
A Marina, o Fernando Henrique e o Ciro Gomes merecem todos os elogios por se recusarem a aceitar o abismo para o qual estão querendo nos arrastar, esperneando, e por darem o exemplo, atraindo mais manifestantes para uma frente ampla e viável. Não querendo ser chato: lembremo-nos de que na eleição do Bolsonaro & Filhos, gente que sabia o que viria preferiu se omitir a resistir. Não faria muita diferença, o impensável aconteceria de qualquer maneira, mas quem se omitiu deveria ter pensado melhor na sua própria biografia. Pode-se dizer tudo de Bolsonaro & Filhos, menos que alguma vez esconderam o que pensam e o que pretendem.
Uma frente ampla, unida por uma indignação comum pelo que estão fazendo com a terra da gente, é possível. O abismo está aí.
A diferença são os séculos que as separam, nada mais. |
Não se sabe bem o que representam hoje, em matéria de poder de mobilização, os entrevistados da Míriam. Se não representam muito, politicamente, pelo menos representam a resistência que muita gente já julgava natimorta, e que mostrou que não apenas existe como se manifesta, ou começa a se manifestar.
“Frentes amplas” não têm uma história muito inspiradora, no Brasil. A última a que prestei atenção reuniria, veja só, o Juscelino, o Lacerda e outros descontentes com os rumos da “Revolução” de 64, alguns frustrados por terem ficado de fora, outros por sincero desencanto com o golpe. A frente, se me lembro bem, não chegou a se criar e terminou com a morte do Juscelino num acidente de carro. Até hoje tem gente que diz que o acidente não foi tão acidental assim.
A Marina, o Fernando Henrique e o Ciro Gomes merecem todos os elogios por se recusarem a aceitar o abismo para o qual estão querendo nos arrastar, esperneando, e por darem o exemplo, atraindo mais manifestantes para uma frente ampla e viável. Não querendo ser chato: lembremo-nos de que na eleição do Bolsonaro & Filhos, gente que sabia o que viria preferiu se omitir a resistir. Não faria muita diferença, o impensável aconteceria de qualquer maneira, mas quem se omitiu deveria ter pensado melhor na sua própria biografia. Pode-se dizer tudo de Bolsonaro & Filhos, menos que alguma vez esconderam o que pensam e o que pretendem.
Uma frente ampla, unida por uma indignação comum pelo que estão fazendo com a terra da gente, é possível. O abismo está aí.
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