Sentamos inicialmente no mesmo bar de oito anos atrás, o tradicional Leite Maltado, funcionando num largo desde 1928, quando o balão Zepellin circulou pela cidade. Ela nos explica do significado da iguaria, muito famosa nos carnavais, quando ao final da festa, dia clareando, os foliões passam por ali para servetear da bebida, espécie de tranquilizador e reparador intestinal ou como queira, não deixar ninguém cair no sono. Ficamos na cevada e ouvindo as histórias do lugar e muito das vivenciadas pelo casal, 18 anos juntos, com intensa motivação intelectual e ruística, pois segundo eles, muito da construção do que somos sai dos olhares e andanças com os próprios pés pelos caminhos e descaminhos de uma localidade.
Visitamos juntos, ali do lado o Museu do Frevo, onde revivemos parte da história musical do Recife, grandiosa do começo até hoje. Entre risos nos conta a do Bloco do Cachorro do Homem do Miúdo. Este era venddor de miúdos de boi e vivia com sua carrocinha pelo bairro, mas não conseguia se conter durante o carnaval e caia na folia. Num destes dias, se perdeu, dormiu num canto e seu cão, fiel escudeiro, não deixou ninguém se aproximar ou tentar afanar os miúdos. Daí, como nos diz, "aqui se aproveitam de tudo para dar nomes nas coisas, foi um pulo para ele e seus miúdos se transformarem em mais um bloco carnavalesco". Carmen é isso, pulsa sua aldeia, filha devota de São Francisco, juntamente com São Francisco de Paula, portanto, franciscana e com pitadas definidas também pelo educador Paulo Freire. Ele sintetiza tudo numa frase curta e direta: "Foi Paulo Freire quem amarrou tudo".
Estamos amarrados, eu e Ana em gente dessa laia e quilate. Ela nos arrebatou e assim caminhamos pelas ruas, primeiro do Recife Antigo, parando em cada esquina, tudo lento, sem leço e documento, depois atravessando as pontes saindo do lugar e indo de encontro para outra Recife. No caminho nos contou de sua cidade natal, Bom Jesus da Lapa, quando ali cresceu, com cinco mil habitantes, lugar pobre, muita miséria, mendigos e resquícios de Canudos. Ali cresceu e com o pai telegrafista, conhecia o mundo, sentada ao seu colo, batucando as teclinhas e lendo O Cruzeiro e jornais de várias capitais. Misturou tudo isso e ao conhecer a obra do educador, teve sua vida transformada. Ganhou o mundo e nunca mais se afastou de Paulo, modelando seus atos profissionais desde então, quando hoje, arquitetando projetos comunitários e para bibliotecas populares, segue seus passos como guia e referência.
Suas histórias são arrebatadoras, como a contada em detalhes, do fagote de Airton Barbosa, também de Bom Jesus, terra de músicos. Tudo começou quando ela se encantou com o fagote que ouvia na canção "Preciso me encontrar", do Candeias e na voz do Cartola. Urian lhe disse de quem era e falou de morte trágica pela ditadura militar. Ela foi pesquisar e chegou até a esposa deste, antes contida, mas depois, justamente por causa da música, hoje grandes amigas. Descobriu tudo do Airton, do seu período carioca, tendo ali chegado aos 16 anos, após concurso em Pernambuco, quando depois veio a tocar com muitos dos grandões. Fez parte do naipe dos fagodistas da Sinfônica do Rio e permaneceu bom tempo preso pelas atividades polítricas, mas morreu em casa, pneumonia. Por causa da sonoridade em particular de uma música foi atrás e desvendou algo dando sentido à sua vida. Ela é do time das que vão atrás. Ouvi-la um deleite. Esquecemos da vida e de tudo mais no entorno, assim caminhamos pelas ruas.
Hoje Carmen faz o que mais gosta na vida, promove leituras pelas comunidades carentes do Recife, fazendo parte de ONG ligada ao setor. Sua proposta está ligada na memória afetiva e formação de novos leitores pelas periferias. "Levo a literatura para eles, através dos jogos de roda, traço projetos, atuo de forma prática", conta. Sua especialidade é a Gerência de Bibliotecas e a formação de leitores, ou seja, dinamizar bibliotecas escolares. E vai nos mostrando a cidade enquanto fala, o Palácio do Governo, de onde Miguel Arraes era governador, foi destituído, exilado e voltou 20 anos depois numa festa popular para governar novamente o estado. Passamos por uma feira popular do MST, com muita música na rua, depois o cine São Luiz, quando pegamos um uber e na sequência quer nos apresentar a casa da francesa Dominique (contada num outro texto). No caminho nos faz viajar falando sobre a beleza do Hino da Independência Baiana, comemorado em 2 de julho e segundo ela, um dos mais bonitos hinos brasileiros. Essa a arrebatadora Carmen, que conosco esteve até as forças se desmuilinguirem no maior da noite e nos despedirmos, já agendando próximo reencontro, desta feita em Bauru.
Em tempo: Ela me lê pelas redes sociais e diz ter chorado muito no dia em que Roque Ferreira morreu, pois mesmo não o conhecendo, pelos meus relatos, já se mostrava amiga dele.
Ela gosta do seu canto e do modo encontrado para viver por essas bandas do mundo. Conta que, morava num confortável apartamento, até se encantar exatamente com essa casa, semi abandonada. Foi difícil convencer seu proprietário a alugar e quando conseguiu, ganhou quatro meses sem pagar aluguel. Neste tempo pegou no pesado e a recuperou, hoje point entre os descolados da região. Foi exatamente neste lugar que fomos aportar hoje nas andanças com Carmen Lucia Bezerra Bandeira, nossa cicerone recifense. A senha para adentrar o local é encontrar o portão aberto. Quando fechado, sua residência. Hoje estava escancarado e a espera de nós. Foi uma tarde e tanto. Fes crepes maravilhosos e um em especial, o famoso Sussete, receita francesa com Contreau. Ela apresenta o exemplo europeu de quem, mesmo diante de todas as possibilidades de continuar sendo moída pela vida dentro das grandes corporações, opta por algo mais simples, mas onde poderá viver intensamente.
Dominique encanta quem por lá passe e hoje isso ocorreu comigo, e Ana Bia, levados por Carmem, sua velha conhecida. Algo do lá encontrado esté resumido no texto de apresentação de sua exposição, rolando na entrada da casa/bar/restaurante: "que fazer para fugir do imibilismo e angústia da pandemia? Fotografe, fotografo, fotografia!". Deslumbrado com o lugar, digo a ela do bairro onde mora, meio rural e urbano, mas no meio da cidade, ruas todas com impecáveis pisos de paralelepípedos. Ele me responde da mesma forma que Gilberto Freyre o faz quando explica essa cidade: "Recife é rurbano". Entendi isso também circulando pelo local, quando no largo do Poço da Panela me deparo com a Bodega do Vital, modesto bar a reunir no local um dos melhores econtros musicais da cidade, nas sextas, tudo no entorno de duas portas verdes, casario antigo e gente arrebatadora.
Recife me mostra das possibilidades do bem viver, integração do ser humano com sua localidade, um dando sua contribuição para tocar vidas pra frente, sem admoestações e intervenções doentias. É o que todo ser humano precisa para ser feliz e assim, defender mais e mais sua cidade. A casa de Dominique é só um exemplo do que sinto pulsar por aqui e do qual terei apenas mais quatro dias pela frente, mas se possível estenderia por tempo indeterminado. Tenho a possibilidade de vivenciar algo que, ao voltar para a minha Bauru, talvez me doa profundamento, pois sei as relações do homem para com sua cidade, principalmente a do administrador para com sua cidade são outras. Ela me dá o tom do entendimento que possui dessa relação: "Aqui na região do largo ninguém pode mais promover alterações em suas casas, como andar superior, pois as casas estão todas tombadas. Entendemos e vivemos aqui para ajudar na preservação, pois do contrário apagaremos todos os laços com nosso passado". Penso: ah, como seria bom se tudo fluísse assim como sinto agora a vida girando sem sobressaltos dos jardins da casa da francesa Dominique?". Curto meu momento, vivendo e deixando viver. Seria tudo isso pedir muito?
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