domingo, 18 de maio de 2025

MEMÓRIA ORAL (318)


DOMINGO, 10H, EU E AURÉLIO ALONSO EM SANTA CRUZ DO RIO PARDO, SANTACRUZENSE E TUPÃ, CLÁSSICO REGIONAL DA BEZINHA (5° DIVISÃO) DO FUTEBOL PAULISTA

A ideia foi minha, logo encampada pelo amigo, o jornalista Aurélio Fernandes Alonso. Assistir futebol é uma coisa, mas verificar in loco o que acontece pela aí é bem outra coisa. Trabalhei anos atrás num vai e vem com Santa Cruz do Rio Pardo, 100 km de Bauru e de lá guardo boas recordações. Poder voltar pra lá vez ou outra, um luxo e sempre bom ir revirando as lembranças dentro da cachola. Fui uma última vez assistir um jogo de futebol por lá, no Estádio Municipal Leônidas Camarinha com o ex-presidente noroestino Cláudio Amantini, depois só saudade. Agora, vendo o time de futebol de lá, a Esportiva Santacruzense a disputar a Bezinha, a quinta divisão do estadual de futebol paulista e ciente de tudo o que é possibilitado neste lugar num jogo às 10h da manhã de um domingo, acordamos cedo e pra lá nos dirigimos.
Além do Aurélio, que por lá morou e aceitou imediatamente o convite, outros três o foram. Creio eu, todos gostariam, mas como somos sempre cheios de compromissos, declinaram. Perderam a festa. No horário marcado, 8h da manhã, diante da banca da Ilda, ali na Brisola, partimos em direção a mais essa aventura. Delícia também a viagem e as conversas, todas versando de nossas lembranças dessa cidade, sua gente e acontecimentos do passado. Passa um filme na cabeça e assim, os 100k voaram e quando nos demos conta já estávamos estacionando o carro lá perto do lugar da contenda.

Bem na esquina, um bar. Quase sempre existe um bar defronte um estádio de futebol no interior paulista - em Bauru isso, infelizmente não ocorre, identificação com o time. Neste, o Sport Bar, todo decorado com coisas relacionadas ao futebol, ali um dos points da cidade, devendo ser também uma de suas atarações turísticas. Em dias de jogos, o local fervilha e a cidade passa praticamente quase inteira pelo seu balcão. Um acontecimento, num local onde as recordações estão todas expostas em suas paredes. Ali é contada a história de amor e ódio com o time de futebol da aldeia onde vivem. Aurélio reencontra muitos conhecidos e o papo se prolonga. Sou apresentado a muitos destes, tiramos muitas fotos e quase impossível sair sem provar um dos salgados do estabelecimento.

Provamos e vamos pra porta da estádio. Aposentados e idosos pagam meia, R$ 10 reaia e fixado ao lado dos guichês, as fotos de quem vai apitar o jogo. Ouço dizer exigência nova da FPF, a Federação Paulista de Futebol. Quase tudo que tem num grande estádio tem ali, guardadas todas as proporções. Até segurança nos apalpando na entrada e essa baboseira de não mais ser permitido a entrada de radinhos de pilha. Dizem podem ser aremessados no campo. Eu, amante de ouvir um jogo pelo rádio, sem o deley, nunca faria isso, mesmo meu time do coração não jogando nada e o árbitro nos lesando na cara dura.

Me encanto pelo presenciado no hall de entrada. Três carrinhos de pipoca perfilados, lado a lado e ao fundo, o bar, onde como se sabe, proibido vender cerveja - outra bobagem brasileira -, mas tem o tradicional churrasquinho. A PM fixou uma placa num dos cantos, "Ponto de Encontro", ou seja, mesmo num local não tão grande, impossível se perder. O banheiro, muito visitado por mim, é algo parecido dos de outros lugares, antigo, limpo, honesto e sem cheiros adicionais, ou seja, perfeito para ser utilizado sem constrangimentos. Bem na frente do elevado onde fica as cabines de transmissão, três andares, algo inusitado, um senhor no meio da galera e ladeado por duas caixas de som. Ele é o digno porta voz do estádio, o que deixa rolar uma música nos horários determinados, fala algo e coloca o hino nacional, hoje obrigatório antes de cada partida oficial. O povo conhece bem o locutor e só faltou ver sendo relatados anúncios como de, por exemplo, objetos perdidos nas arquibancadas.

Tem duas arquibancadas ao lado deste hall, as mais procuradas e atrás de um dos gols, uma alta, com parte ainda interdidata, com outra também aguardando liberação, do outro lado do gramado. Atrás do outro gol, os camarotes abrigando as equipes. Dali saem os jogadores para os apupos adentrando o gramado. Fiquei observando o presidente do clube, um rapaz novo, ouço dizer comerciante local, num vai e vem entre este local e o público. Precisam ver seus gestos quando o time perde os gols, os que poderiam ter dado a vitória para o time da casa. São gestos de quem trabalha arduamente pela sobrevivência e continuidade do futebol pelo interior paulista, creio eu a duras penas e sabe perfeitamente o valor de cada vitória.

A casa não está cheia, mas parte significativa da cidade está ali presente. Aurélio me relata dos presentes e de sua significância para o time e o mundo político e social da cidade. Futebol é isso, algo onde estão lado a lado, pelo menos neste momento, personagens de todas as camadas sociais e, algo grandioso, conversando como amigos fossem. Depois o pau come, mas neste momento, o futebol fala mais alto e estão juntos, coração batendo mais forte pela vitória do time a representar a cidade. Me encanta os gestos de cada um e os fotografo, registrando muito disso, a reação das pessoas diante da bola rolando.

E a bola rola garbosamente pelo belo gramado mantido pelo município. O jogo é pegado, bom de se assistir, bem disputado. Em campo duas forças regionais, o Santacruzense x Tupã. Ambos já ocuparam melhor lugar de destaque dentro do cenário do futebol paulista. Essa Bezinha e outro torneio, o B4, representam o futebol de cidades médias e pequenas em sua exatidão. Este torneio em especial tem regras estabelecidas e dele só participam jogadores com idade até 23 anos, ou seja, é para formação mesmo. No campo o pau come e todos querem mostrar a que vieram. O time da casa começa bem, parte pra cima e quase marca, mas no final do primeiro tempo perde por 1 x 0, falha glamourosa de seu goleiro. Foi o bastante para se tornar o alvo principal da "turma do amendoim", aqueles não perdendo chance para narrar o jogo, conhece todos pelo nomes e espezinha/aplaude os atuando ali no grande teatro da vida que é o futebol. Iguais em todos os lugares.

Aurélio bate mais papo que vê futebol, pois reconhecido por muitos, conversa adoidado e assim coloca as conversas em dia. Filtro algumas de suas conversas e em muitas delas, o assunto vai muito além do futebol. Evidentemente, a política, que por ali sempre foi motivo de pau puro, ou seja, jogo duro e pesado, esteve presente. A Santacruzense empata o jogo com um garoto, este entrando no 2º Tempo e assim o jogo termina em 1 x 1. Observei muitos acontecimentos durante a contenda, como o fato de algumas torcedoras mulheres, essas gritando muito mais que os homens, num certo momento sumiram ali do lado, reaparecendo bem atrás do gol do adversário, infernizando a vida do goleiro. Não pararam um só instante, ao lado da banda, que batucou quase o tempo todo. Casais de idosos, mãos dadas e pais com suas crianças é sempre muito belo vê-los neste lugar.

Na saída, voltamos para o Sport Bar e ali, mais um bocadinho deste verdadeiro e original congraçamento humano. Ver uma cidade assim reunida e envergando a camisa de seu time de futebol, com muito amor e carinho é para fazer pensar. Vi crianças, jovens e é claro, os mais velhos, num conversê sem fim, enfim, local onde a cidade converge e se entende. Nas muitas rodas, que devem ter perdurado até o final do dia, algo de como a vida é tocada neste lugares e propiciadas pelo evento futebol. Isso mesmo, o futebol sempre movimentou muito as cidades interior afora e presenciar isso é algo grandioso. Vir de outras paragens e ficar ao lado dos de um local, vivenciando aquele momento junto deles é algo dos mais contagiantes. Gosto muiuto de futebol, mais ainda quando ocorrendo desta forma e jeito, pelas "quebradas do mundaréu", como apregaoava Plínio Marcos em suas crônicas. No meu caso, gosto muito mais de estar em lugares assim, do que nessas novas arenas construídas como templos consumistas e, para não dizer, esfriando muito as relações humanas.

Voltamos eu e Aurélio com o sentimento do dever cumprido. Tivemos todas nossas expectativas preenchidas, mais que correspondidas. Foi um manhã de domingo e tanto. Não poderia ter sido melhor. Isso também nos ajuda a viver mais e melhor. Na volta, falávamos disso, dessa possibilidade real de recarregamento de energias. E assim, com nossas baterias devidamente carregadas, por volta da 13h10 voltávamos ao ponto de partida, a Banca da Ilda. Ele ainda faz mais um pit stop por lá, eu não, pois com álvara mais que vencido, corri para meus aposentos, pois tinha um almoço pela frente ao lado da dona do estabelecimento. Queria muito lhe contar das experiências propiciadas na manhã, mas chego e o assunto em casa era outro. Ou seja, estava em casa novamente. Se pudesse, voltaria pra lá em breve ou iria refazer outros roteiros, outros locais e acontecimentos. O importante, como se sabe, é poder continuar "botando o bloco na rua", como dizia Sérgio Sampaio em seu famoso samba. Poder continuar botando o bloco na rua é mais que bom, diria mesmo, ótimo. Eu e o Aurélio que o diga.





DONA LÊDA

Quem aqui em Bauru conheceu dona Lêda Wilma? Poucos. Muito poucos. Certa feita, ela vinha nos visitar, a Ana Bia e a mim. Fomos esperá-la no aeroporto e antes havíamos a presenteado com uma camisa do Noroeste. Para nos fazer surpresa ela, do seu modo e jeito, tendo um senhor japonês ao seu lado, lá pelos seus 70 e lá vai fumaça anos, tira sua blusa no meio do avião sob o olhar deste passageiro ao lado, fica só de sutiã e veste a camisa do Noroeste. E, depois nos conta, perguntou para o japonês: "O senhor conhece o Noroeste, não?". Essa foi a dona Lêda, que hoje se foi. Desceu linda e impávida a escada do avião, trajando a veste noroestina.

Eu a conheci por intermédio de Ana Bia. Ambas cariocas. Lêda era uma das melhores amigas de minha sogra, dona Darcy. Sua história é dessas que um dia disse a ela, gostaria que tivesse gravado e até feito um livro. Ela trabalhou nos primórdios da televisão brasileira, com nada menos que Virginia Lane. Morou no Leblon, junto do marido, um famoso jóquei brasileiro. De lá, quando se separou foi para o Andaraí e ali viveu a maior parte de sua vida. Era uma delícia estar com ela. Dos tempos quando conheci Ana, nas idas e vindas ao Rio, era impossível passar incólume por dona Lêda. Não era somente divertida, era autêntica, original, única. Alguém por quem me recordarei a vida inteira.

Adorava contar suas histórias e sempre a cutucava, pois queria ir ouvindo, mais e mais. Contou até quando deu e algumas delas ainda guardo aqui dentro de minha memória, hoje meio que preenchidas por névoas, pois com o passar dos anos a gente, infelizmente, esquece de muitas coisas. Eu posso ter esquecido de muita coisa que ela me contou, mas nunca me esquecerei dela. Foi uma senhora de fino trato, estatura mediana e cheia de amor pra dar. Me hospedei em seu apartamanto algumas vezes. De lá saímos para andar pela região do Grajaú, Andaraí e Tijuca. Certa feita Ana me fez a levar lá pra Lapa, na rua Mem de Sá, comer cabrito, no mais famoso restaurante dessa especialidade. Comemos e nos divertimos muito. Voltamos todos lambuzados e contentes.

Queria ter podido reviver suas histórias teatrais pelo mundo das artes cariocas, mas o tempo foi passando, ela acabou não podendo mais morar sózinha, vindo a morar com o filho, o querido Jeff Baffica, em Barueri/São Paulo. Foi sempre muito bem cuidada por ele, talvez o único que ela reconhecia nos últimos anos de vida, devido ao alzheimer, essa doença que nos faz perder a memória. Hoje Jeff publica de sua partida e passa um filme pela minha cabeça.

Certa feita ela veio passar um tempo em Bauru e ficou hospedada lá no Mafuá da Gustavo Maciel. Meu pai era vivo e foi divertido demais a convivência com ela, com toda sua irreverência, ao lado de meu pai mais sisudo. Ela remodelou a casa ao seu modo e jeito, alterou toda sua rotina e circulou garbosamente pela região. Ficou muito conhecida nas cercanias da Casa do Arroz, ali na rua Araújo Leite. E a levamos para todos os lugares, possíveis e imagináveis por aqui. Até na Cachoeira Babalim, em Arealva ela foi e adentrou o pequeno riacho, água fria advinda do meio do mato, deslizando seu encanto pelo lugar. Fez questão de conhecer a sede da torcida uniformizada do Noroeste, a Sangue Rubro e tirar fotos por lá. Fez e aconteceu por aqui. Por pouco não ficou em Bauru, o que, com toda certeza, seria motivo para revolucionar e alegrar bocadinho mais essa sisuda cidade.
Certa vez estava no Rio, na casa onde morou dona Darcy, rua Uberaba, lá no Andaraí, tendo morros e muitas comunidades ao lado. Ela morava quarteirões adiante, num condomínio. Chegou sem muito se alterar e me disse ter sido assaltada. Os moleques chegaram e lhe puxaram do pescoço seus cordões. Alguns segurou com firmeza, outros se foram. A chegada da idade, quando teve que se conter, principalmente com as andanças, muito a entristeceu, sei disso, mas foi inevitável se recolher mais e mais. A região já estava perigosa para ela e como não tinham como segurar essa fera indomável, ela acabou aceitando vir morar com o filho em Sampa, com o forte argumento de ajudar nos cuidados com os três netos gêmeos. Eles, com certeza, deram uma sobrevida para ela.
Teria muito mais coisa pra lembrar dela, mas já é tarde e o sono me chama. Deito e com certeza, sei disso, hoje sonharei com ela. Ela sentadinha na minha frente e me relatando suas histórias. Algumas ela me dizia: "Quer saber demais, não?". Pelas fotos aqui reproduzidas e publicadas hoje pelo seu filho, dá para se ter pequena noção da grandeza dessa baixinha em estatura, mas enorme de coração. Guardo algo dela com enorme carinho. Sei de saber assim do nada, o do quanto ela gostava de mim. E eu dela. Isso é o que vale. Certa feita, estávamos de carro no Rio e ela precisava fazer uma cirurgia. A deixei na porta do hospital, aos cuidados da filha que ali trabalhava e relembro sua carinha, adentrando o portão, eu do lado de fora. "Vá pra casa, eu volto logo", me disse. E voltou mesmo, permanecendo até hoje pela manhã. Jeff queria muito trazê-la para Bauru, ficar uns dias conosco. Não deu tempo. Hoje sonho com ela, tomara que nos seus tempos de teatro, juntando no sonho algo das histórias que me contou.

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