ZÉ DA VIOLA, UM VIOLEIRO AO SABOR DO VENTO
Existe na cidade de Bauru, interior de São Paulo alguns baluartes quando o assunto é a música, ainda mais quando se fala de algo mais específico, como o bem tocar um violão de sete cordas, uma viola caipira ou um cavaco. Adentrando essa seara é impossível não tocar no nome de José Domingos Mucheroni, 72 anos, professor autodidata e uma excelência com o instrumento nas mãos. Zé da Viola, como prefere ser chamado, está em atividade há décadas e sua história é dessas a merecer ser passada adiante, pois além da singularidade, das idas e vindas, dos erros e acertos, demonstra mesmo na adversidade ser uma pessoa de bem com a vida, acreditando ser possível reverter tudo na próxima curva ali na esquina.
Existe na cidade de Bauru, interior de São Paulo alguns baluartes quando o assunto é a música, ainda mais quando se fala de algo mais específico, como o bem tocar um violão de sete cordas, uma viola caipira ou um cavaco. Adentrando essa seara é impossível não tocar no nome de José Domingos Mucheroni, 72 anos, professor autodidata e uma excelência com o instrumento nas mãos. Zé da Viola, como prefere ser chamado, está em atividade há décadas e sua história é dessas a merecer ser passada adiante, pois além da singularidade, das idas e vindas, dos erros e acertos, demonstra mesmo na adversidade ser uma pessoa de bem com a vida, acreditando ser possível reverter tudo na próxima curva ali na esquina.
A excelência musical é fruto de um início enfronhado no meio musical. O pai, Ernestinho Mucheroni foi dos precursores da viola na cidade e o menino pegou gosto pela coisa logo cedo. “Meu pai era catireiro. Naquela época as festas nos sítios eram com fartura, não existia o dinheiro, mas muita comida e bebida, principalmente a cachaça e um pouco de vinho. O frango era feito com farofa e servido numa bacia, com a catira comendo solta a noite inteira. Os velhos ficavam ouvindo aquelas demoradas modas de viola, com até 25 versos, tudo com princípio, meio e fim, histórias contadas no ponto da viola. A catira era formada de 12 pares, 24 homens batendo os pés e mãos entre aquelas histórias. Vivi isso desde muito cedo na minha vida”, conta um alegre e despojado contador de histórias.
Nesse tempo já fazia suas estripulias, nunca abandonadas. “Eu pegava o violão de meu pai escondido e acabava quebrando as cordas. O velho ia pegar o instrumento na hora de ir tocar, guardado num saco tipo de farinha e via o estrago. Percebia meu interesse. Dava um trabalhão para ele, pois as cordas eram envolvidas em carretéis. Era sofrível. A viola desafinava, precisava tirar o craveiro de madeira, raspar numa pedra rústica para tocar. Fui aprendendo e depois vim a consertar violas. Ele até gostava, pois ao invés de estar na rua, seguia seu gosto”, continua. Sua lembrança vai mais longe e começa a lembrar dos melhores violeiros de Bauru. “Entre 1945 e 1950, por aí, o campeão era o Zico Martelinho, um vendedor de doce, vivia disso, depois vinham outros como o Zé Carvoeiro, que vendia carvão, o cabo Antoninho, da Força Pública, o Zé Oréfice, tio dos famosos Falsetis e meu pai, que era pedreiro e nas horas de folga violeiro.
Lembra também nunca ter freqüentado uma escola musical. “O único a me ensinar algo foi Carmelo Grillo, hoje com 94 anos e ainda dando aulas de violão. O resto aprendi tudo na convivência. Aos 14 anos meu pai comprou o meu primeiro violão, um Gianinni e comecei a tocar em casa, festinha de aniversário. Minha primeira dupla foi com minha irmã, a Aparecida. Nesse tempo fui para a capital e lá meu primeiro emprego, na SP Light, por volta dos 16 anos. Conheci amigos nas rádios, lembro bem do Grêmio Juvenil Tupi. Voltei para Bauru com 32 anos, casado e já com filho. Daí revi a turma que tocava por aqui, o Lali, Zé Vieira, Tiãozinho, Mário Carvalho e o Edivardo Viotto, mais conhecido como maestro Badê”, continua seu relato.
Zé da Viola é um inveterado contador de histórias, algumas muito engraçadas envolvendo os muitos personagens, todos musicais que atravessaram sua trajetória. “Uma vez fui tocar em Campo Grande, viagem longa, chegamos quase na hora e fui procurar o endereço, rua Cândido Mariano. Nada, um sufoco e momentos antes do baile começar conseguimos chegar e fui falar que havia perguntado por tudo quanto é lugar a rua, foi quando me disseram que estava nela fazia tempo, tava lá Marechal Rondon. Fomos a piada da noite. E outra, essa um causo, de um sujeito que ensaiou durante anos uma atração circense com um porco e um galo como violinista e cantor. Ofereceu em vários lugares e nada. Passado um tempo, situação difícil, quando um dono de circo foi comprar o número, foi obrigado a dizer que não podia mais, pois não tinha mais os dois, sendo obrigado a comer a atração, primeiro o cantor depois o violinista”, conta entre risos. Uma das melhores é a vivida com o maestro Brasil Loureiro, que contratou ele e um amigo para um conserto chique, onde teriam que ler as partituras e nem ele, nem o amigo sabiam: “Tocamos da nossa forma e no final, ele nos chamou, pagou R$ 70 para cada músico e para mim e o colega R$ 100 cada, mas disse que fomos diferentes, colocamos arranjos que não estavam previstos, afirmou ter gostado muito, percebeu tudo e nos mandou pra ‘pqp’, pediu para aprendermos música, pois não sabíamos nada da coisa escrita. E nunca aprendi. Não tenho mais jeito”, conclui.
Das pessoas que já tocou, lembra com saudade de Nelson Gonçalves, que acompanhou em várias apresentações. Mais recentemente o acordeonista Toninho Ferragutti é outro, personagem de histórias variadas. “Por volta dos anos 80, o Toninho, que era de Botucatu tinha uma namorada aqui e quando vinha vê-la arrumávamos bailes para ele tocar conosco. A gente pegava uma sanfona de 80 baixos e dava pra ele, grandão, acostumado a uma de 120, a mão escapava, voltava pra cima, mas sempre muito habilidoso, não fugia do pau. Doutra feita fui com ele num estúdio e Toninho deixou todos de boca aberta, pois improvisou o Panela Velha só de olhar a partitura, com os pés nas costas. Três sanfoneiros não tinham conseguido e ele matou a pau. Pudera, treinava o dia inteiro. Ele é vegetariano e uma vez fomos almoçar na avenida Paulista, comemos e quando foi embora, entrei numa padaria e pedi um churrasquinho. É desses que ouve uma música um única vez e já sabe tudo o que tem que ser feito. Aqui em Bauru, o Sebastião Lima, chefe jurídico do Expresso de Prata, um colecionador de acordeons é seu seguidor maior, sabe de todos os festivais de sanfona e por onde o Toninho está no momento”, relata sobre Ferragutti, com quem esteve por duas vezes ano passado, a primeira no Templo Bar e depois no SESC Bauru.
Se deixar, ele fica a dedilhar o vilão durante o tempo todo e a relembrar histórias. “Caburé é o pai do Eraldo Bernardes, um outro que seguiu o viés artístico familiar. Ele chegava para o violinista e pedia, ajeita aí um tom para mim e aprontávamos com ele. No fim ele falava que agitamos mal, que tom era aquele e eu lhe dizia, nada disso, esse é o famoso Tom & Jerry. Tenho uma outra história, essa com o velho Carmelo e meu pai, pedreiro, que enrolou durante um bom tempo de fazer uma obra na casa dele. Certo dia o Carmelo o pegou de jeito e arrumou um ajudante ali mesmo, que ficou fazendo um buraco na rua, enquanto ele foi comprar o material. Nisso passou um bravo fiscal de Prefeitura e queria multar. Quem mandou fazer isso? O ajudante meio sem graça disse que tinha sido o seu Ernesto. O fiscal abaixou a crista e saiu de fininho. Carmelo conta essa até hoje, é que na época o prefeito da cidade era o Ernesto Monte e o tal fiscal achou que a ordem era do prefeito e não do seu Ernesto, meu pai”.
Diz ter muita saudade dos velhos tempos e dos amigos que se foram e também que “a vida do músico é cheia de percalços, uma correria de um lugar para outro, quando em ascensão não se tem qualidade de vida, é duro manter todos os compromissos de forma muito séria". Dos tropeços nem gosta de falar, preferindo sim, tocar em alguns dos outros. “Estudei comportamentos musicais e a deusa grega dos teclados é Euterpe e a dita cuja mexe com a cabeça de alguns músicos, deixando eles muito loucos. Os meio bestas, que tem um comportamento meio estranho nós falamos que são Namorados de Euterpe, a Feiticeira. Hoje o João Gilberto, o Yamandu Costa e o velho Hermeto são todos Namorados de Euterpe”, diz sorrindo. “Mas eu também aprontei algumas, veja o caso do Bagaço que gostava de algo diferente e cantava pra ele um verso modificado de Cartola, o “volto ao jardim/ na certeza que devo cheirar” e até um “até quem é de cheirar, cheirou...”, continua todo entusiasmado.
A verve de humor o persegue e até os cabelos compridos, amarrados num laço, marca registrada dos últimos tempos é motivo para piadas. “Num baile, um senhor meio cego, chegou perto e veio com graça, me chamando de senhorita e pedindo para dançar com ele. Num outro momento, esse mais recente, eu vendendo meus iogurtes pela rua, sou chamado de longe, por um ô dona, dona, nem olhei, pois percebi que estavam me confundindo com uma mulher”, diz. Esse negócio da venda de iogurtes em saquinho pelas ruas é algo do seu atual momento, difícil, mas uma simples questão de sobrevivência tirada de letra quando perguntado sobre o assunto. “Muitos me vêem pelas ruas e se espantam. Vejo por outro lado, ganho meus R$ 40 a R$ 50 reais todo dia, uns mil por mês e digo que tudo foi recomendação do meu médico, que pediu para fazer longas caminhadas todo dia. É isso que faço, rodo uns 15 km por dia, das 10 às 18h ou das 14 às 20h, a empresa é boa, me dá até carro para trabalhar, esse de duas rodas que empurro pelas ruas. A caminhada 0800 é a gratuita, gastando sola de sapato e não ganhando nada, na minha ganho meus trocos. Prefiro levar tudo na brincadeira e digo que isso aqui não é um emprego, é um pesadelo”, conta com certo humor.
Essa sua vida atual, tentando continuar com suas aulas de violão e viola, que acredita terão reinício após o Carnaval, em dois endereços, ministradas em qualquer local e horário é o grande motivador de tudo. Não desiste e diz estar entrosado com alguns da nova geração, tendo já tocado com Binha, Sargento Pedro, Sebastião José Tomás, Marli da Escaleta, Guilherme e outros. “Minhas últimas apresentações foram no chorinho do Bar Aeroporto e na Praça Luiz Zuiani, no Projeto do JC. O que eu ganhei, gastei, foi assim a vida inteira. Se correr atrás ainda dá para viver de música, tanto que continuo compondo. Lembro de uma que fiz para o centenário de Bauru, o “Há gosto pra tudo”, juntando o mês do aniversário da cidade com a planta cujo chá serve para quase tudo. Quer ouvir? Os tempos são outros, mas eu resisto e se convidarem toco a noite toda”, continua um relato que, pela entonação de voz e animação, pode prosseguir também por tempo indeterminado. Zé da Viola é um resistente, procura rir de tudo e assim vai virando as páginas de uma atribulada e conturbada forma de tocar a vida.
Para finalizar ouçam essa, com Caburé e Zé da Viola: http://il.youtube.com/watch?v=qq-xJj-PW3w