sábado, 16 de janeiro de 2016

DOCUMENTOS DO FUNDO DO BAÚ (87)


O DESAPEGO E AS ENCHENTES

Ontem, com barro até as tampas, circulando pela casa dos vizinhos constatei algo notado por todos aqui na região ribeirinha, barranca do rio Bauru, um que transbordou e invadiu com sua água barrenta e bostenta tudo à sua volta. A casa onde mora meu pai e está localizado o Mafuá do HPA é uma das mais atingidas, não pelo nível das águas, pois uma delas teve dois veículos totalmente encobertos e seus prejuízos foram quase totais. Os de minha casa nem tanto, mas perto disso. Para quase todos os demais, não existiam nas casas motivos de atravancamentos, ou seja, coisas e objetos além do normal a ocupar espaço. Na minha ocorre exatamente o contrário. O que mais impede a limpeza é o acumulo desses objetos, para a maioria das pessoas normais, vista como anormalidade.

Mas, o que seria essa anormalidade? Papéis e de toda natureza. Juntei ao longo de minhas décadas de existência uma variação imensa deles, de toda natureza e fonte. Revistas aos borbotões e coleções quase completas. Desde o tempo do velho Pasquim, a algo mais recente, como a Bundas, Nossa História, Revista de História, Caros Amigos, Piauí, Brasileiros, Pasquim 21 e Carta Capital. Além de recortes de jornais, em bolsas e mais bolsas, pastas e afins. Uma infinidade de papéis que lá no meu inconsciente achava que um dia poderia voltar a ter tempo e iria revê-los, olhar com o devido carinho. Ia juntando, um voraz colecionador. Amadja, a secretária do lar, também cuidadora do meu pai olhava para aquilo tudo com o devido desdém e sempre me dizia: “Seu Henrique, não tem como dar um jeito de se desfazer de parte disso? Está difícil circular em sua casa? Como faço para limpar isso tudo?”.


Sim, devia ser difícil. Sofria muito a cada ataque dela de limpeza, principalmente quando de minhas viagens e na volta ao ver tudo arrumadinho já me batia o desespero, pois sabia que tudo foi revirado, tirado do lugar e de uma ordem que só eu sabia entender. Era e sempre foi uma loucura recolocar tudo no seu devido lugar. Acrescido a isso, minha coleção de LPs, uns dois mil e mais os CDs, perto de uns três mil. Pensam que o negócio parava aí? Não. Tinha também os livros. Muitos e espalhados pela casa toda, estantes improvisadas e precárias. Eles sempre permearam minha vida e nunca consegui me desfazer deles, meus bibelôs. Sempre volto, por exemplo, da banca do Carioca, na Feira do Rolo, com um ou mais e nem sempre os leio, vão para o ajuntamento mafuento de meu segundo lar. E meu pai no meio disso tudo.

Ele tinha seu espaço preservado, seu quarto também com suas revistas. Até coisa de um ano atrás tinha todas as Família Cristã. Para se desfazer daquilo, assim como no meu caso, foi um parto. Ele me passou algo disso de ter papéis aos borbotões dentro de casa. Somos o paraíso dos cupins, traças, percevejos e afins. Por aqui, quando não é a água da enchente são esses pequeninos devoradores que levam tudo. Muito se perdeu já por essas bandas, mas em nenhum momento se pensou em parar com a entrada de papéis. O ciclo continua e pelo que sei de mim, não sei se terá fim, pois isso faz parte de minha vida. Com essa enchente, acredito que, uns 60% de tudo foi para o beleléu, ou seja, para a calçada e daí para os recicladores da vida. Teve um que, ao ver o volume que saia de casa montou plantão diante do meu portão e levou tudo e ainda se ofereceu para auxiliar em pequenos serviços como forma de retribuição.

De tudo isso, relembro aqui três fatos. O primeiro foi anos atrás quando vi o professor Paulo Neves se desfazendo via anúncio no JC de sua coleção completa do Pasquim. Aquilo me doeu e sabia o se passava com ele ao ser praticamente obrigado a tomar aquela decisão. Perdi a minha para os cupins e me doeu mais por não ter doado para instituições pela aí. Depois foi o anúncio via facebook do professor Almir Ribeiro se desfazendo de velhas coleções, tipo a Piauí e dando como exemplo essa necessidade de desocupar espaços, ocupar por novos e desapegar. Refleti muito, mas fiquei na encolha, quieto e continuei juntando coisas. Por fim, minha orientadora de mestrado, Maria Cristina Gobbi, num papo pessoal me dizia da necessidade que temos de desapegar dessas coisas. Cheguei a dizer a ela que compro hoje algumas publicações que, sei não terei tempo de ler, mas continuo comprando, pois achava que um dia iria lê-las ou simplesmente para manter a coleção completa. Ela tentou me alertar da ineficiência disso e de algo pelo qual precisava fazer de forma urgente: colocar em prática o desapego. Não foi daquela vez.

Tudo veio agora e da forma mais trágica do mundo. A enchente veio forte e doída levando boa parte disso tudo. Desapeguei a força, mas amanhã, domingo sai mais uma edição de minha revista semanal, a Carta Capital e fico como questionamento: Compro ou não? Vou ter tempo de ler? A da semana passada, com tudo isso que ocorreu nessa, se li 30% do seu conteúdo foi muito. Aliás, nessa semana, nem um dos livros do mestrado consegui pegar, pois estou às voltas com as tentativas de deixar o lar de meu pai e o que restou do mafuá com ares de normalidade. Impossível isso sem água na torneira. Isso de se desapegar das coisas que se gosta não é tarefa fácil. E como resultado isso que vejo aqui pelo quarteirão. Todas as demais casas já voltando à normalidade e a minha ainda cheia de barro e com muita coisa ainda com sobrevida, entre o recuperar e ir para a calçada.
Diante disso, a limpeza se torna muito mais complicada. 


Esse um resumo de meus últimos dias.
Abracitos a tudo, todas e todos do HPA

OBS.: Todas as fotos ilustrativas desse texto são do Aldir Blanc, meu guru e em todas, ao fundo o que também permeava o mafuá, livros e papéis variados e múltiplos, de todas as formas, jeitos e maneiras, alguns em ordem, outros em total desordem. A diferença é que ele mora num prédio (quase tudo tomado) e e eu na beira de um rio, que demora alguns anos, mas vez ou outra transborda e invade tudo à sua volta. Aldir, pelo que sei, não foi obrigado a de desfazer de nada e nem sei se é adepto do desapego. Eu, a partir de agora, tentarei, mas ao meu modo e jeito. Reiniciando o processo agora pela manhã, pois tem muito ainda para ser colocado na calçada. Lembram-se da frase: "Sabe qual o pior inimigo de um colecionador? Chama-se viuva, pois no dia seguinte do falecimento do gajo coloca tudo na calçada". No meu caso é a enchente.

4 comentários:

Mafuá do HPA disse...

COMENTÁRIOS VIA FACEBOOK 1:

Reynaldo Grillo Sinto muito Henrique.

Bruno Emmanuel Sanches Henrique, doeu muito ler o seu texto. Para quem gosta de livros, discos e afins, sabe que este é o nosso maior patrimônio. Carro, casa e demais bens materiais são passageiros, mas estes outros bens são inestimáveis. Na adolescência passei por uma situação chata, que até hoje me lembro: assaltaram minha casa, levaram vídeo game, televisão e um aparelho de som que recém havia ganhado em uma promoção. Mas o que me deixou muito chateado foi terem levado uma coleção de cds que eu tinha (em torno de uns 50) que eu comprava um a um, mês a mês. Enfim, sinto muito pelas suas perdas, se precisar de algo avise, e o que resta mesmo é essa cabeça boa que você tem pra escrever excelentes textos, como este - apesar de tudo. Abraços

Helena Aquino Perfeito Bruno ..... o mano é assim .... transparente

Bruno Emmanuel Sanches Helena Aquino sim, e nessa cabeça arejada que ele tem, há vários livros lá devidamente guardados e catalogados! Hehehehe

Oscar Fernandes da Cunha Desfazer-se daquilo, que você guardou com muito carinho, por uma decisão de desocupar espaços, já é difícil, agora perder um patrimônio cultural desses para uma enchente dessa natureza. A coisa foi séria e muito séria.

Almir Ribeiro Não se trata de desapego caro Henrique. Esse é muitas vezes necessário e sempre consciente. Sua narrativa é sobre PERDA. Essa é dolorida e irreparável, Nosso abraço e, novamente, nossa solidariedade.


Wellington Leite Poxa, Henrique, sinto por você! Também passo por isso. Tento manter o controle, guardo tudo organizadinho pra ninguém me torrar a paciência, mas sempre há comentários sobre a necessidade de desapegar. Se precisar de ajuda, me avise. Abração!

Marcelo Guereschi Muito triste esse material todos ser destruído, lamentável

Dora Faria Nossa! Encontrei alguém que sofreu no mesmo dilaceramento meu! Apesar de ainda estar arrebentada por dentro, entendi que temos que praticar o desapego. Aconteceu na minha última mudança de casa. Minha filha disse: Vou levar seus CD´s e os livros também. Como assim? São meus, minhas memórias, minha história... Nada disso mãe, isso tudo vai ser meu mesmo, vou levar já... até hoje estou remoendo...


Adib Axcar Jr. Passei por isso tb.... não conseguia abrir mão da coleçao de Lps e livros... aí alguem me falou: pq deixar cultura parada na prateleira? Poe isso pra andar que está empoeirando ai e muitas pessoas poderão ter acesso...... um dia vão andar mesmo..... isso me convenceu a doar e me sentir menos doído.... abraços meu amigo

Fausto Bergocce Lamento muito o ocorrido caro Henrique...também sou um colecionador com muito apego. A diferença é que moro em um lugar onde não há o menor risco de enchente...mas, tenho muito medo do fogo.

Luiz Francisco M. Campos Que Pena Henrique, sabemos o quanto gostava de tudo isso!

Helena Aquino Belo texto mano .... tbém sou apaixonada por livros ...até que me desapeguei de mtos já , mas os que preservo, daqui não saem enqto eu viver .... Filhos falam pq td isso mãe ?? Vc já leu ou se não leu nãto vai ler mais .... Não penso assim .... amo os livros ...os que não gostei mto ao lê-los, simplesmente troco por outros .... Sei que qdo eu morrer eles vão se desfazer de td , mas por enqto nãooooooooooooooo

Gaspar Moreira Lamento ,conte comigo !!!

Anônimo disse...

Meus pêsames em relação a você como cidadão, assim como muitos de Bauru que pagam seu impostos e são surpreendidos com essas catástrofes e o pouco caso de muitos gestores públicos (pagos pelo contribuinte muitas vezes afetado e desolado). Sem querer ironizar (mas já ironizando) principalmente pela situação em que você está passando (e muitos bauruenses), mas em relação a perdas acho que o PT e o socialismo só serão esquecidos dessa maneira: com uma enchente de cidadões inconformados que leve de uma vez por todas essa canalhada de comunismo para o esgoto.

Mafuá do HPA disse...

CARO ANÔNIMO:
Pessoas com pensamento iguais aos teu são a escória da sociedade, ainda mais porque são fracos, nem assumem o que escrevem. O mundo convive maravilhosamente com o comunismo desde sua existência, já os bestiais pregam algo com tu faz. pregadores de um pensamento único danificam o planeta em tudo e são os provocadores de tudo o que vemos de ruim acontecendo à nossa volta.

Vá se roçar nas ostras.

Henrique - direto do mafuá

Mafuá do HPA disse...

MAIS COMENTÁRIOS VIA FACEBOOK:


Patricia Karst Caminha Chorei, Henrique...
Entendo o que vocês estão passando e me preocupo mais com seu pai, pela perda, que com você.
Cultivar o desapego é muito bom. Comecei depois de uma longa viagem onde vivemos com muito pouco. Retornando, mandei embora, doei, reparti. Hoje sou ZERO acumuladora. E a família nessa também.
Chorei porque as coisas que vc cita em seu belíssimo artigo ( as Henriquessências) são, realmente, tesouros.
O que puder, digitalize e mande pra nuvem. E torça para que não falte energia...
Abç

Helena Aquino Querida .... ñ se preocupe tanto com meu pai , se preocupe mais com meu mano Patricia Karst Caminha, pois papai tem o seu mundo , nem sabe mto o que se passa , mas o mano sim , se faz de forte , ama livros , seus cd's, seus achados .....

Patricia Karst Caminha Putz...



Maria Cristina Gobbi Henrique Perazzi de Aquino lamento pelo ocorrido. O desapego é uma prática que deve ser exercitada com o tempo. Entendo esse sentimento. Mas não fique triste. Devemos ver sempre um lado bom em todo e qualquer acontecimento. O material que não deu para recuperar não está perdido, pois você registrou quando leu, foleou e guardou. O desapego, embora muitas vezes deixa um sentimento de perda, é necessário. Quando retiramos algumas coisas que não mexemos faz tempo, abrimos espaço para novas coisas e essas que estavam guardadas vão permear o repertório de outras pessoas. Veja que legal. Outra coisa, sentimos sua falta na reunião de segunda, mas entendemos suas razões. Fique bem.