quinta-feira, 24 de novembro de 2016
FRASES DE UM LIVRO LIDO (109)
VOCÊ JÁ PENSOU EM ESCREVER SUAS PRÓPRIAS MEMÓRIAS? VAI DESCREVER A “COTÊ PODRÊRA”? ENTENDA DISSO LENDO ESSE TEXTO
Escrever de si mesmo requer contar tudo, eis aí a grande dificuldade de quem decide escrever um livro de memórias. Se fazer isso de si mesmo é uma grande dificuldade, imagina ao fazê-lo dos outros. Os problemas são imensos, alguns incomensuráveis. De que vale uma biografia pela metade? Já que é para contar, por que não tudo? Paulo Coelho, com tudo o que existe de contraditório em seus escritos foi corajoso e quando autorizou Fernando Morais a escrever sobre si, deixou o campo livre e determinou ao famoso escritor encarregado da missão: conte tudo. E isso foi feito, inclusive com os relatos de um período quando teve vários parceiros do mesmo sexo. Abriu a “caixa preta”. Isso dá credibilidade a coisa e o livro fez o maior sucesso.
Escrever de si mesmo e já com certa idade tem outro problema, o da memória da pessoa. Essa pode falhar e nos lapsos nem tudo é relatado. Um livro digno de sempre ser lembrado quando se fala disso é o “Confesso que vivi”, do chileno Pablo Neruda. Na abertura ele abre o jogo: “Essas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evoca-las, viraram pó coo um cristal irremediavelmente ferido. As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época. Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros. Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre – como nos arvoredos de outono e como nos tempos das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas do poeta”.
Na mesma linha e com uma escrita bem mais ousada, irreverente e audaz está Rita Lee, essa com uma autobiografia recém lançada na praça, a “Rita Lee – Uma Autobiografia” (Globo Livros, 296 páginas, R$ 44,90). Vejam o que ela mesmo escreve sobre a propositura dela mesmo escrevinhar tudo: “Numa autobiografia que se preze, contar o côté podrêra de próprio punho é coisa de quem, como eu, não se importa em perder o que resta de sua reputação. Se eu quisesse babação de ovo, bastava contratar um ghost-writer para escrever uma autorizada”. Recheada de muita ironia ela coloca os devidos pingos nos iis. Dizer cobras e lagartos de si mesmo é para os fortes. Rita o é e ponto, sempre foi, porém poucos possuem coragem para tanto. Adorei isso de relatar o “cotê podrêra”. Quem se habilita a fazer o mesmo relatando de si mesmo tudo o que já fez em uma vida inteira de cagadas, mijadas e excrementos fora do penico e do vaso sanitário? Vamos, quem? Não vejo ninguém aí levantando a mão, nem mesmo esse aqui nos escrevinhamentos de minha lavra.
Nirlando Beirão, um jornalista que admiro muito escreveu num belo texto sobre o assunto, o “Vida sem Filtro”, para o Caderno QI, da revista Carta Capital (edição 927, 16/11/2016) o seguinte: “Autobiografias tendem a ser momentos de extática autocontemplação, de exaltação escarrada de suas próprias façanhas, sejam elas verdadeiras ou fictícias, um esforço considerável em ascender – quase sempre no outono de uma vida eventualmente opaca – a algum degrau da posteridade. Por isso tendem a ser – mesmo que os ghost-writer tenha alguma competência – mortalmente chatas”. Dai, vale o escrito: “Não se faz uma omelete sem quebrar alguns ovos”. Aos 69 anos, Rita Lee se renova e corajosamente mostra o caminho das pedras, ser verdadeira em tudo o que se faz é mesmo a melhor saída. Enfim, se você fez isso tudo em vida, pelo menos assuma, uai! Contar tudo é mesmo algo pra tirar o sono de qualquer um.
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