sábado, 4 de julho de 2020

COMENTÁRIO QUALQUER (204)


DECLARAÇÃO DE INUTILIDADE PÚBLICA - NÃO QUERO MAIS VOLTAR À NORMALIDADE

Simples assim, me acostumei às novas condições. Essas facilidades todas de não mais sair de casa possuem predicados além da imaginação e dos riscos das ruas. A patroa agora toma conta deste velhote nas 24h do dia e da noite. Viver sob cuidados é auspicioso, algo inimaginável. Tive sorte na vida, tenho quem cuide de mim e ao chegar aos 60 anos, não me deixam mais nem ver a luz do sol, além do que possibilita as poucas frestas da janela do bunker onde me encontro.

De início achei a coisa interessante, achava que seria por pouco tempo e teria tempo para o lar, minhas coisas um tanto abandonadas e assim as cuidaria com outros olhos. Depois, achei ruim, pois a coisa não mais acabava e agora já me conforme, sei não mais acabará e assim sendo, capitulei e confesso, "não quero outra vida pescando no rio de Jereré, lá tem peixe bom, tem siri patola de dar com o pé...", ou seja, nada como permanecer confinando ad eternum.

Estou maravilhosamente adaptado e conformado com as novas condição e situação. Aceitando tudo numa boa, tudo ficou mais fácil. Veja bem o lado bom da coisa. Participava de intermináveis reuniões presenciais e hoje, todas on-line e delas me levanto quando quero, vou cagar ou mesmo abrir a geladeira, algo impensável no calor dos acontecimentos das de outrora. Já não trombo mais com os indesejáveis que, no ocasional encontro nas esquinas da vida perguntava como vai e o sujeito se punha a dizer em detalhes como ia. Isso teve fim. São tantas coisas, que no frigir dos ovos - tenho também aprendido a cozinhar que é uma beleza -, fui convencido.


Por que mesmo queria voltar pras ruas? A gente já não conseguia reunir gente suficiente e a contento para derrubar o canastrão de plantão, daí hoje me reservo em manifestações sem contato físico, expelindo fogo, mas sem sangue, suor e lágrimas. Comodidade em tudo no novo formato. Vida a dois na máxima temperatura, levada aos píncaros do possível e dela usufruindo o suprassumo no esfrega de 24h ininterruptas horas em conluio. Já não sonho mais com o retorno. Deixei de gastar com tanta coisa. Bares, por exemplo. Como gastava em bares e arruaças e hoje, sou assumido convertido aos ditames do lar. Não me convidem para nada - Ana não vai deixar - e nem eu quero, pois aprendi a gostar da vida de ermitão. Daqui por diante, só me encontram pelo telefone, computador e quando muito, por cartas. Presencialmente estou afastado de tudo o mais, aceitando as novas condições como indissolúveis e incontornáveis. Melhor aceitar do que espernear e da mesma forma, nada conseguir. Aceitei, já interiorizei ser isto o possível e daí dou prosseguimento à minha modorrenta vida entre quatro paredes. É o que temos para daqui por diante.

Eu já era um sujeito de pouca serventia, daí pouca coisa se altera com minha retirada em definitivo da cena do crime, poucos irão notar e assim sendo, a cada dia que passa menos irão falando de mim, sendo que daqui curto espaço de tempo ninguém mais se lembrará. Talvez eu até continue por aqui, mas sem ser pedra no sapato de ninguém, sem causar nenhuma reação quando se lembrarem de meu nome. Diante de tão fortes argumentos, peço o prolongamento da pandemia ad eternum, sem possibilidade de revisão ou alteração no atual quadro dos acontecimentos. Já estou me dando por vencido, enfim de que vai adiantar eu ficar contestando e esperneando se não mudarei um milímetro nos acontecimentos? Sendo abastecido com leituras, conversas e algum alimento, seguirei como bom cordeiro, aceitando tudo pacificamente, sempre resoluto e cordato. Melhor assim, né!

OS QUE FREQUENTAM MINHA CAMA...
Minha cama por estes dias é amontoado de papéis, livros e revistas espalhados e todos sendo lidos ao mesmo tempo, bocadinho de cada vez. Comecei vários ao mesmo tempo e vou sugando-os aos poucos, em drops, demorando dias na meticulosa degustação. Essa Piauí, a edição de julho ainda não chegou às bancas de Bauru - e quando chega, a Ilda lá da resistente e persistente banca do Aeroporto me liga e avisa -, mas já a saboreio tomando conhecimento da capa. Já li muitas outras revistas e jornais, mas a maioria fechou as portas e muitas quero e prefiro manter distância. Em cima de minha cama hoje, só a Piauí, mensal e a Carta Capital, semanal. Elas e os livros acalentam essa modorrenta vida entre quatro paredes. Quando tomo conhecimento da capa, dos títulos do que encontrarei tão logo chegue na cidade, já me preparo, coloco um babador novo, compro caneta marca texto, carga completa e já fico na expectativa do telefone tocar e ser a Ilda. Ler é o melhor negócio nestes tempos, algo sob medida para espantar qualquer tipo de distúrbios provocados pelo distanciamento social. Quando sem sono, em quem me socorro? Acendo a luz do quarto e escolho um dos tantos espalhados e sigo com eles até o sono retornar e se não ocorrer num curto espaço de tempo, que seja longo, sozinho não estarei.
 

Ana dorme e eu a traio descaradamente lendo, lendo, lendo e em muitas oportunidades chegando ao orgasmo sem que ela tome conhecimento. Ao acordar, providencio para que tudo já esteja devidamente limpo e sem que ela perceba nenhuma alteração no meu semblante, tento organizar a bagunça do meu lado da cama, mas as olheiras sempre me denunciam. A chegada de uma nova Piauí é certeza de noites de olhos bem abertos, cravados nas tais letrinhas miúdas. Devoro tudo sem dó e piedade.


REFLEXÕES DE QUEM ESTÁ APARTADO E BEM GUARDADO – EU E SABORINO JUNTANDO IDEIAS SOBRE A VIDA EM CONFINAMENTO
Só para encerrar o dia e concluir em cima de algumas considerações já feitas por aqui em outros dois posts. Vou juntando algo mais que passa pela cabeça de muitos neste momento.

“Passo meus dias numa espécie de mini comunidade organizada com um contrato social interno muito bem definido, com regras e normas. Sigo e creio, me dou bem em fazê-lo, sem pestanejar e reclamar. Na minha posição, estou mais para ajudar alguém do que para me vitimar. Quando você tem outras coisas a que se apegar, basta não se deixar enlouquecer. Como qualquer pessoa, posso passar por um momento de angústia por ter uma vida que não é a habitual, mas sou privilegiado, sei disso e assim navego, ciente de que a maioria não pode e não consegue estar na mesma situação. Um luxo é um questionamento existencial. Quando você para, vê a vida porque pode se colocar de lado. É como quando alguém é hospitalizado ou como a lucidez da vigília. Você pode ver a vida de outro lugar.


A pandemia é como um chicote dividido entre operações presenciais e não presenciais. Entre o psicólogo que pode atender pelo Zoom e o traumatologista que não pode. Entre o cara que pode lhe enviar um item por correio e o cabeleireiro que não consegue cortar sua cabeça com pelo Zoom. Algo que não achamos que poderia ser dividido de alguma maneira. Mesmo na indústria de alimentos: há sorveterias que estão indo muito bem porque as pessoas geralmente não conseguem fazer sorvete. A quarentena dividiu o mundo em "coisas que podem ser feitas pelo Zoom" de "coisas que não podem ser feitas pelo Zoom". Se você tiver dor de dente amanhã, não irá ao dentista tão rápido. Com certeza, você vai se encher de analgésicos. Outros medos aparecem. Medo de entrar em lugares. Você sabe que entrar em um caixa eletrônico é um perigo hoje. Mas você ainda precisa ir ao supermercado. Você está armado com um fantasma o tempo todo. Você desce a rua e sente a coreografia de esquivas.

Consigo abstrair-me, sabendo que é muito difícil. Não apenas você não pode sair de casa, como também não pode deixar de falar sobre quarentena. De vez em quando você volta ao passado, como as coisas eram. Temos medo de que isso continue assim para sempre. A rua é um museu de como se vivia: você passa por um bar e é algo que foi usado antes. Você vai a uma mercearia e não pode inserir quatro pessoas lá dentro ao mesmo tempo. E como será que estamos vendo isso. Eu aprendi a usar as redes um pouco. Eu devo ter tentado em torno de sete formas de Jitsi, Zoom, Google Meets. Eu quase falei conectado. A conversa por telefone teve um rito de muitos anos atrás, que consistia em ficar sentado em um lugar amarrado a um cabo que caía na parede. Na quarentena, incorporei os fones de ouvido no celular. Eu ando e faço outras coisas enquanto falo ao telefone. A casa parece um grupo de pessoas do call center. O serviço não estava preparado para ser usado o tempo todo. Tivemos que mudar isso. O tecnológico teve uma erupção violenta na pandemia. Uso mais dados da mesma maneira que não estou em um carro, ônibus ou trem há três meses. De alguma forma eu tenho que mudar. Eu passo pelo cabo. Em vez de ir de carro, vou de cabo.
Este é o roteirista Pedro Saborino.


Todos nós fazemos mini programas de televisão em nossas casas. Seu entretenimento pode ser Netflix, rádio, mídia tradicional e também o que seu primo programou algo que apareceu em um show ao vivo ou fez um meme e o compartilhou. Assistimos muito televisão, sendo natural entendermos algo deste entretenimento. Não é natural para nós realizar operações para remover pedras nos rins. Estamos o tempo todo assistindo besteira. Agora todos são um pouco especializados. São habilidades que estamos adquirindo. Numa palestra ou reunião pelo aplicativo “X”, eram 100 e vi todas as intimidades: este tem uma pintura de Matisse, o outro um relógio de Cuba, o outro uma biblioteca com livros importados, o outro uma filha ... é um comércio privado ao vivo. Antes costumávamos dizer "eu comi um hambúrguer", "olha o sifão que eu comprei". Agora é ao vivo. Eles reivindicam você. Vamos lá, eu apareci. Tenho certeza de que algo vai mudar. Não tenho certeza do que ou quando o veremos. Não sei se será forte o suficiente para termos comunismo em 20 minutos. Os relacionamentos mudarão, algumas coisas serão melhores, outras terão que ser vigilantes. Vai haver uma mudança. Não será automático ou tão previsível”.

Explico as aspas colocadas na maior parte deste texto – depois do caso do ex-ministro da Educação, Decotelli, O Breve - 8 dias no currículo - tudo tem que ser muito bem explicado. Li hoje uma entrevista no diário argentino Página 12, com Pedro Saborido, roteirista e escritor de humor (link: https://www.pagina12.com.ar/276399-pedro-saborido-el-humor-no-soluciona-nada-es-un-analgesico) e não só gostei muito, como percebi que muito do que dizia é exatamente o que penso e como estou agindo. Compilei, traduzi ao meu jeito e misturei um pouco a minha prática com a dele. Por fim, saiu este texto, meio que misturado, apanhando interessante de algumas de nossas ações por estes tempos. Vale para completar meus escritos anteriores e dar por encerrado este sábado.

2 comentários:

Henrique disse...

COMENTÁRIO VIA FACEBOOK INUTILIDADE 1:

Silvio Rodrigues - Daqui a pouco, o nosso HPA volta às ruas de Bauru. Está no DNA dele.

Henrique Perazzi de Aquino - Será que um dia o faremos do mesmo jeito e maneira que até fevereiro deste ano? Quanto tempo demorará para esse retorno? Estarei vivo até lá? Quanto reencontrarei?

Silvio Rodrigues - Henrique, obrigado pelo retorno. Muita calma nessa hora. Comportamento ético é imutável.

Mauro Landolffi - E aquela saída pra ir ao mercado, tá rolando ou nem isso?

Henrique Perazzi de Aquino - às escondidas e com roupa de astronauta

Mauro Landolffi - Henrique kk..Também faço isso, mas o melhor mesmo é ficar em casa e da última vez eu comprovei isso. A gente é muito distraído...Eu tava lá no supermercado, na secão de hortifruti -cheio de cuidados e desconfiança das coisas- e percebi que estava sem meus óculos. Pensei que tivesse deixado no carro. Aí ouvi uma conversa atrás de mim. Um senhor estava perguntando pro funcionário onde deixar alguma coisa, O funcionário orientou ele, pra deixar lá na recepção. Aí eu olhei pra trás e vi um senhor com meus óculos na mão. Disse que eram meus. Aí o senhor, muito gentil, me deu os óculos e me disse que estavam no chão e até tinham travado a roda do carrinho dele. Eu agradeci, peguei meus óculos da mão do senhor e... pus direto na cara... Só percebi o que eu tinha feito quando estava em casa, como sempre passando álcool em tudo que tinha vindo da rua, inclusive minha carteira, meu celular e meus óculos... Ainda bem que Deus protege (...), mas de repente uma distração dessas põe a perder todo o esforço, os cuidados, o isolamento...E o pior, não só pra você...

Henrique Perazzi de Aquino - Mauro Landolffi, ontem fui levar um dos valores arrecadados na Live e na casa de uma pessoa. Chego lá, ele não se conteve e veio na minha direção para me abraçar. Foi constrangedor, pois gosto muito dele e de sua esposa. Não sabia o que fazer e não tive como conter o contato. E depois, fiquei naquele dilema do que deveria ou não ter feito. E ao chegar em casa, um banho imediato, roupa pra lavar e uma culpa dentro de mim que não me abandona: desconfiando de um velho amigo? Todos agora são prováveis transmissores. Daí para não passar por esses constrangimentos, prefiro permanecer no meu canto. No banco na praça Rui Barbosa, ainda ontem vi de longe numa turma velho conhecidos, muitos que já tinha entrevistado, todos moradores de rua e fiquei com medo deles me verem e virem conversar bem de perto. Tentei sair sem sem percebido e isso tudo me faz escrever o que acabei despejando no papel.

Mauro Landolffi - Henrique É bem isso mesmo. E aí vem a dúvida, a pergunta que não quer calar: Estaríamos já infectados?

Fatima Brasilia Faria - Me engana que eu gosto, vc capitulando?

Henrique Perazzi de Aquino - Você bem sabe, entristecido e acabrunhado, contido na nova situação, tento me situar o que ainda vai ser possível daqui por diante e quanto tempo resistiremos mais enfurnados nessa nova situação. Tudo o que faço hoje é paliativo diante do que fazíamos nas ruas...

Fatima Brasilia Faria - Henrique, digamos que estamos em stand-by, quando tudo isso passar, voltaremos a bater pernas e nos reunir.

Henrique disse...

COMENTÁRIOS VIA FACEBOOK INUTILIDADES 2:
Eric Schmitt - Gostei... Achei alguns trechos representando muito o que eu sinto desde bastante tempo como :
"A gente já não conseguia reunir gente suficiente e a contento para derrubar o canastrão de plantão .../... que vai adiantar eu ficar contestando e esperneando se não mudarei um milímetro nos acontecimentos?"
Até que eu gosto também dessa situação de dever me adaptar a essa nova "anormalidade".
A unica coisa que me da raiva ainda é que por causa de tudo isso, e da atitude de bastante acefálicos, nos estamos condenados a deixar de visitar amigos da região, de outros estados e até de outros países, enquanto a gente respeitou ao pé da letra todas as recomendações serias que deram bons resultados na escala planetária.

Mariza Basso Basso Estamos mais protegidos em casa, em todos os sentidos, longe dia olhos maldosos e julgadores de nosso comportamento vezes rebelde apesar da idade, me sinto melhor assim e aqui na minha clausura, sem máscaras, sem modos, presa na minha liberdade de ser sem se preocupar com outrem, abração ao casal querido

Helena Aquino - Mano , gosto de ficar em casa, mas não ao ponto de pensar em continuar assim presa, para sempre, nunca.
Sou livre, espírito livre.
Às vezes me dá uma tristeza mto gde, pois faço td certinho, mas mtos não o fazem . E daí, como saberemos o que será o amanhã ?

Henrique Perazzi de Aquino - O chato é a gente ir pedindo PACIÊNCIA para as pessoas, quando após mais de cem dias trancado, o que se tem menos é paciência. Mas é pegar ou largar. Se correr o bicho pega, se ficar ele mata. Vamos crer que um dia voltaremos para nossas vidas e retomaremos tudo o que estávamos fazendo. Eu ainda creio ser isso possível e para isso me preservo, brinco dizendo que já estou conformado, mas a impaciência já está tomando conta de tudo à minha volta. Se Ana não me acorrentasse por aqui, não sei o que seria de mim...