segunda-feira, 28 de novembro de 2022

RETRATOS DE BAURU (270)


DARCY, O BARDO, E O DIA DA BANDEIRA*
* Texto de Jorge Carlos Rodrigues de Freitas, filho do imortal militante Darcy Rodrigues. Este texto foi escrito dia 19/11 e só hoje sai aqui publicado. Prometi ao Jorge que o faria e hoje cumpro o prometido. Um texto dele sobre seu pai, desses escritos tirados do fundo da alma. Como hoje, dia de jogo da Copa, Brasil 1 x 0 Suiça, bebi, comi e dormi, Não estou com saco, nem condições para escrever nada. Lembrei do texto do Jorge para seu pai. Achei, o li novamente e aqui ele sai como peça principal de minhas postagens no dia de hoje. O velho bardo - como o chamava - Darcy Rodrigues é desses tantos inesquecíveis, fazendo falta mais do que danada. Era uma espécie de bússola para tantos, dentre os quais me incluo. Em alguns momentos, me sinto meio desorientado e quando isso ocorre, sempre busco auxílio, amparo em amigos diletos, desses onde confiamos de olhos fechados, a experiência dos anos vividos, quilometragem rodada. Darcy era um destes. Hoje, infelizmente, o círculo se fecha e as peças de reposição estão cada vez mais raras. Este texto é dos mais pertinentes nos dias de hoje, pois estamos diante de patridiotas defronte quartéis, ao passo que, o verdeiro patriota foi e é gente como Darcy. Vamos, sem mais delongas, ao texto homenagem do Jorge:

Darcy, o Bardo, e o Dia da Bandeira
Hoje é aniversário do meu pai, Darcy Rodrigues. Hoje ele faria 81 anos, amanhã farão seis meses que ele partiu.

Ele estaria feliz, com boa dose de motivos a comemorar: O grande ano do Palmeiras, as eleições, os netos para mimar com presente no Natal. E, apaixonado por futebol que era, já estaria se preparando para mais uma copa.

"De fato, teria completado mais um ano no dia primeiro, mas por causa de uma dessas confusões que aconteciam nas pequenas cidades, foi registrado no dia dezenove. Nasceu na zona rural de Avaí, meu avô só conseguiu ir para a cidade registrá-lo no dia dezenove, e a data acabou ficando como o nascimento.

Confusão essa que ele nunca fez questão de corrigir, por dois motivos. O primeiro é porque hoje é também o dia da Bandeira. Como Brasileiro orgulhoso do país, ficava envaidecido de comemorar natalício no dia do “Pendão da esperança”.

Isso me remete a uma das histórias que ele sempre contava: quando preso na OBAN pela ditadura, em 1970, sob tortura comandada pelo tal Albernaz, provocam-lhe:
– Aqui a gente quebra vermelhos, alaranjados e rosados. Qual o seu tom?
– Verde e Amarelo – responde, Darcy, e segue: Você pode encontrar militar tão nacionalista quanto eu, mais do que eu, não existe um. O torturador ficou constrangido, nesse dia ele não apanhou mais.

Verdade que o patriotismo do meu pai não era apenas estético, para desfile ou superficial. Nem ufanista. Reconhecendo as mazelas de um país que amou a vida inteira, o seu amor à Pátria se compadecia do povo mais sofrido. Foi esse patriotismo que ele nos ensinou. De que vale um patriotismo que não se compadece do pobre, do fraco, do povo?

É óbvio, quem conheceu meu pai não tem dúvidas, a cor da ideologia dele era vermelha, cor de sangue derramado, do povo, do trabalho. Vermelha sempre foi a bandeira ideológica que meu pai carregou. Bem traduzida no subtítulo da sua biografia escrita pelo saudoso amigo Antônio Pedroso “Uma vida dedicada a busca do socialismo” (Título: “Darcy Rodrigues, Lugar Tenente de Lamarca”)

Mas Verde e Amarela não é a cor de um partido, nem pode ser sequestrada por corrente ideológica nenhuma, é a cor da Bandeira do País que meu pai tanto amou, e que sonhou tantas vezes vê-lo mais justo, mais igual, mais democrático.

“Salve símbolo augusto da Paz” sem se esquecer da mensagem da carta de Tiago, livro bíblico que meu pai mais citava: de que adianta encontrar um irmão faminto, sem bens e lhe dizer “Vai em Paz” e não lhe dar nenhuma ajuda concreta? O que adianta saudar a bandeira num simbolismo abstrato e vazio e não amar o povo que essa Bandeira representa? Não lutar pela liberdade desse povo em todos os sentidos?

O segundo motivo que meu pai tinha para comemorar seu aniversário sempre no dia de hoje, é que dia um de novembro é o dia do falecimento de minha avó materna, quando minha mãe ainda era muito criança. Para ele comemorar este dia deixaria minha mãe triste, assim fez questão de ‘esquecer’ do dia primeiro e adotar de vez o dezenove.

Isso me lembra também o tipo de socialista que meu pai era, um homem complexo, quase sempre duro, mas capaz de gestos concretos pelo outro, mesmo que parecessem pequenos, como comprar um bolo para que um amigo que estava ‘duro’ pudesse cantar parabéns para o filho.

Outros gestos, para a maioria das pessoas, pareciam apenas intransigência, como muitas atitudes que ele tomou durante os anos que serviu à administração pública de Bauru.

Certa vez, época de Natal, a gente vivia nos apertos do final dos anos oitenta. Recebemos uma cesta farta de Natal. O presente vinha de um amigo pessoal dele, mas que era advogado de uma certa empresa de ônibus, e meu pai era diretor do conselho de usuários de transporte coletivo de Bauru. Para ele era claro o conflito de interesses. Ficaria devendo um favor? Colocou-me no carro com a cesta e disse “Vou te ensinar o que é honra”. Dirigiu até a casa do amigo e tocou, não sendo atendido, arremessou a cesta por cima do muro. Estourou o espumante antes da noite feliz. Eu não tinha dez anos, confesso que na hora não entendi bem.

Ou da vez que foi exonerado da diretoria de merende escolar porque se negou a receber uma carne fora do padrão, mesmo a pedido de um prefeito para agradar um importante fornecedor. Se negou a servir carne ruim às crianças da cidade.

Ele era inflexível com suas convicções. Arrisco dizer que foi a pessoa comprometida com sua ideologia que conheci. Mesmo com bom salário, já com anos avançados, se negava a ter um carro caro. Como ele, socialista, teria um “carrão” se a maioria da população brasileira sequer se alimentava corretamente? Para ele, um ‘carro popular’ era suficiente ao que precisava. Comprou um carro automático a contragosto, já nos últimos anos, quando por problema de saúde, seu joelho esquerdo perdeu as forças e não conseguia mais usar a embreagem. Assim mesmo, comprou o mais simples e menor que tinha a tecnologia.

Sei que essa sua intransigência conquistou muitos desafetos pelo caminho. Por outro lado muitos outros foram amigos fiéis, ombrearam lutas homéricas. E fizeram a luta valer. Aproveito então, para agradecer a todos esses, que meu agradecimento chegue a todos que merecem, mas citarei alguns de memória que estiveram mais próximos a nós nos últimos anos.

A todos que ajudaram nossa família quando retornamos do exílio, sob uma lei de anistia que protegeu torturadores e oficiais mantendo seus prêmios e soldos e mal permitiu que exilados que lutaram pela democracia voltassem pra casa, sem nada. Voltamos, os cursos que meus pais fizeram em Cuba não foram reconhecidos, meus pai não foi reintegrado nas forças armadas, contamos apenas com a caridades de amigos socialistas, comunistas e vermelhos.

Aos saudosos amigos, professor Isaias Daiben, e Antônio Pedroso Junior, já citado biógrafo das histórias contadas pelo bardo Darcy. E também advogado da família que conseguiu que a justiça brasileira reconhecesse, não sem décadas de atraso, os direitos dos meus pais.

Ao querido amigo Henrique Perazzi de Aquino, de quem emprestei o título que ele deu ao meu pai na sua carta à tribuna do leitor “Darcy, mais um bardo que se vai”, do dia vinte e dois de maio, último, dias depois da partida do meu pai.

Ao amigo Milton Dota, palmeirense como meu pai e eu, companheiro de tantos anos dele. A quem meu pai primeiro ligava para comentar resultado das partidas.

À amiga Inês Ferreira, que estava do meu lado quando recebi a notícia mais difícil que já ouvi. E que tantas vezes foi ombro e ouvidos para meu pai. E até apoio tecnológico nas “lives” dos últimos anos.

À todos, muito obrigado. A todos que não citei, mas merecem demais, muito obrigado. À nossa Bandeira: dias melhores virão".
Darcy afirmava e eu o contestava, da ainda existência de militares verdadeiramente  nacionalistas, os de verdade, como ele. Ele se foi repetindo isso para mim. Eu desacreditando e tentando encontrá-los, enfim, como ele mesmo repetia, a massa militar é oriunda do povão e lá no fundo não defendem cegamente o que os lá de cima professam. Fico com a purerza do contido nessa sua conclusão.

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