domingo, 20 de julho de 2008

MEMÓRIA ORAL (41)
TENDLER E DARCY ENTRE A UTOPIA E BARBÁRIE
Fui convidado para presenciar uma entrevista entre um cineasta (ou seria documentarista?), Sílvio Tendler e um ex-guerrilheiro urbano, Darcy Rodrigues, dentro do projeto do seu mais novo documentário, "Utopia e Barbárie", em fase final de conclusão. Ouvindo o nome do cineasta, viajei de imediato no tempo e no espaço, sendo conduzido para os anos 80, quando cursava História na USC – Universidade do Sagrado Coração. Lá, uma professora carioca, Lydia Possas, passava regularmente um filme para todos entenderem melhor o que havia sido de fato o Golpe de 64. O filme era "Jango" (Direção do Tendler, de 1984) e passou a fazer parte de algo marcante para mim, sendo utilizado em aulas variadas ao longo dos anos em minha vida. Lydia, da mesma forma, introduziu-me na obra do cineasta, sendo marcante na vida desse historiador, contribuindo para ser o que sou hoje. O convite foi aceito de imediato.

Logo a seguir fico sabendo dos detalhes. Tendler estaria na noite de quinta, 17/07, em Votorantin, distante uns 300 km de Bauru, ministrando uma palestra e logo a seguir exibindo seu último filme sobre o geógrafo Milton Santos, "Encontro com MS, ou o mundo global visto do lado de cá". Viajamos eu, Darcy e seu filho Jorge, de 28 anos. O local da entrevista seria na casa de sua filha, Dora, 40 anos, em Sorocaba, cidade vizinha de onde ele estaria. "Há uns seis meses Tendler me ligou, falou do novo filme e disse que queria me entrevistar. Topei. Faltava o local. Agora, quando me disse que estaria no interior de São Paulo, justamente onde mora minha filha, disse que poderia ir até lá. Marcamos para a tarde de quinta", diz Darcy, com reconhecido passado na luta armada brasileira, no pós-64, como braço direito do capitão Carlos Lamarca.

Às 14h, Tendler chega de táxi, vindo diretamente do aeroporto de Congonhas. Junto com ele, Fabiana Ferreira, produtora da Caliban Produções Cinematográficas, inseparáveis nessa nova produção. Ambos muito simpáticos, adentram a casa e após os cumprimentos acalorados, a imediata empatia, pois entrevistador e entrevistado professam uma paixão pelo lado mais a esquerda dos acontecimentos. Na escolha do local da entrevista, a sala, mesmo com janelas abertas, apresentava pouca luminosidade e todos fomos para a área externa, junto à calçada da rua. Estúdio improvisado, Tendler conta sobre o filme: "Eu hoje com 56 anos, faço dessa vez algo sobre minha visão de mundo desde o final da Segunda Guerra, por alguém que tinha 18 anos em 68, até hoje, com a aposentadoria de Fidel. É uma longa história e Darcy tem muito o que contar. Queria conhecê-lo já faz um bom tempo. Muitos me falam dele e estava ansioso poresse encontro".

A entrevista dura aproximadamente umas duas horas, sendo interrompida somente para alguns poucos ajustes técnicos e para um breque, quando o som da rua aumenta além do suportável. Logo no começo, lhe mostro a última edição de Carta Capital (nº 504, 16/07), com uma matéria "Caça aos torturadores", onde o Capitão Homero (Homero César Machado) foi identificado por Darcy como um dos que lhe torturou na OBAN. Tendler grava um depoimento onde Darcy confirma a tortura. "Ele foi um dos muitos que me torturaram naquele período, desde minha prisão no Vale da Ribeira, depois na OBAN em São Paulo e, por fim, no Galeão, no Rio", conta Darcy. A partir daí, Darcy faz um relato de sua formação, como ingressou no movimento político e acabou caindo na luta armada. Tendler deixa o entrevistado falar à vontade, interrompe-o em poucas vezes e obtém um depoimento grandioso, de valor histórico inestimável.

Darcy conta as passagens de sua vida com bastante nitidez e riqueza de detalhes. "Não havia espaço para outro tipo de atividade naquele momento no país. O responsável pela resistência armada foi a própria ditadura. O preço foi muito caro, pois muitos dos que morreram poderiam estar hoje ocupando cargos importantes no cenário político atual. A postura do Judiciário da época foi lamentável, visto a passividade diante do AI-5. A resistência foi heróica, não existindo arrependimento de ninguém. Alguma coisa teria que ser feita e se não houvesse aqueles ousados jovens, talvez não desfrutássemos da liberdade atual. A única forma de contestar foi a assumida pela minha geração", relatou Darcy. Na seqüência, Tendler lhe indaga sobre quem tinha mais lucidez naquele momento e ele não pensa duas vezes: "Dilma (a ministra Dilma Roussef), sem sombra de dúvidas, sendo que a pessoa mais importante da minha vida foi Lamarca. Ele, mesmo diante da derrota iminente, havia avaliado comigo que já havia saído do Exército e não poderia sair do país". "Ele sabia que iria morrer?", pergunta Tendler. "Sabia. Conversamos sobre isso e disso ele não abria mão. Nunca quiz sair do país, mesmo tendo a oportunidade", finaliza Darcy, bastante emocionado, quase as lágrimas, concluindo que "as marcas daquela época seguirão comigo até o final da vida".

"Desculpe a tortura", diz o cineasta ao final da entrevista, percebendo que havia conseguido algo valioso. A entrevista não se encerra aí, pois momentos depois novos fatos são lembrados e Fabiana é chamada às pressas para novas gravações, dessa vez sem o tripé. Acompanhando tudo com um grande interesse, a neta de Darcy, Letícia, 14 anos, curiosa pela vida pregressa do avô, ficou um bom tempo encostada numa parede, olhos arregalados e calada. "Me orgulho muito dele e de tudo isso, que vou conhecendo um pouco mais com o passar dos anos", diz a garota. Por fim, duas últimas lembranças, o assalto ao cofre da amante do Adhemar (governador de SP, Adhemar de Barros) e o famoso Congresso Mundial da Juventude e dos Estudantes, em Varsóvia, na Polônia, realizado em 1953, contado em detalhes a ele pelo comandante Pinheiro (ministro do governo cubano), quando estiveram juntos em 1978. "Gorbachev, Letelier, Raul Castro, Lech Wallesa e muitos outros do mundo todo ali estiveram. Lá foi gestado todas as transformações do Leste Europeu. Muitos ficaram acomodados em instalações da igreja, cedidas pelo cardeal Woytilla", relata Darcy. Desse encontro, Tendler concorda e conclui: "Dou uma importância imensa para esse encontro. Ele precisa ser melhor explicado e entendido".
Já eram perto das 17h, quando Tendler teve que ir embora. Um veículo da cidade de Votorantin veio buscá-lo para o compromisso seguinte. Deixou um convite para a ida até a exibição noturna. Não foi possível, pois tínhamos um longo caminho de volta. Antes da volta, ao ler o jornal diário Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, na capa do caderno Mais Cruzeiro, um pouco mais do que está sendo rodado no novo filme e do que ficou daquele período: "Tanta coisa! Ficou o espírito rebelde, o ideal libertário, a crítica à sociedade de consumo, a liberdade sexual. Os da minha geração foram filhos de 68. Todos, indistintamente, quiseram romper as barreiras do conservadorismo, da caretice. É isso que eu procuro retratar no filme e que quero compartilhar com o público. O projeto deve estar concluído até o final do ano". Por fim, diz que adoraria ir até Bauru lançar o filme, rever Darcy novamente, debater cinema e o mundo globalizado. A professora Lydia bem que poderia ser a madrinha disso tudo. Desde já, tem a minha torcida.

Henrique Perazzi de Aquino, escrito em 18/07/2008

4 comentários:

Anônimo disse...

O Sílvio é um dos mestres nesse negócio de documentário, fez coisas belíssimas, junto com um paranaense, que me esueço o nome agora. Assisti Jango várias vezes e também faço questão de repassar para meus alunos nas aulas de História.
Samuel D. - professor de História Ourinhos

Anônimo disse...

Meu amigo Henrique, ex-aluno , muito querido

Suas palavras refrescam a minha memória de professora naquele final dos dos anos 80, quando fui admitida na USC para ministrar as aulas de História do Brasil.
Creio que a reciprocidade de sentimentos e , principalmente das responsabilidades inerentes à relação Professor-Aluno, com todas as suas vicissitudes, sempre aguçou a minha atenção e o compromisso com a qualidade da formação acadêmica de uma geração de jovens que aspiravam ser historiadores e professores de História.
Com isso estava sempre preocupada com o conteúdo de minhas aulas, com as as atividades didático pedagógicas em classe que incluíam filmes e documentários e, experiências extra classe, como as Viagens de Estudo que organizávamos.
A discussão de " Documentários" em sala de aula é um relevante recurso didático de análise da história e da historiografia, pois oferece um rico campo de exercício interpretativo. Trata-se de um "texto", uma construção ilustrada e portanto passível de critica, uma vez que seu autor, assim como o historiador está situado em um tempo e propõe a sua interpretação.
O debate sobre o Golpe de 64 com seus desdobramentos, na minha opinião ainda não recebeu por parte dos historiadores a atenção merecida , respeitada a distância temporal, histórica do que conhecemos por testemunho ocular do fato.
Novas e distintas abordagens históricas com certeza ampliariam as visões militantes ainda polarizadas pela Guerra Fria. A " nova" história política, e mesmo a Econômica e Social, e mais ainda , a mais recente, a História Cultural,incluindo a abordagem de gênero com certeza trariam perspectivas outras para a compreensão desse período recente confinado no fato denominado " Ditadura Militar"( 1964-1984). Foram mais de 20 anos e muitas histórias precisam ser recuperadas.
O papel da memória nesse caso é impar, para recuperar as falas de homens e mulheres, que viveram experiências em espaços diferenciados em distintos cotidianos, mais todos relevantes .
O trabalho de cineasta como Sylvio Tendler, com seu faro sensível para desvelar os silêncios é uma importante ferramenta e uma estratégia relevante contra o esquecimento. Sempre admirei sua preocupação com o resgate da memória escrita e iconográfica da história recente do pais.
Caro Henrique fico lisonjeada diante de sua lembrança e gratificada pelo seu reconhecimento.
Com carinho
Lidia Possas

Anônimo disse...

Henrique:
Desculpe a demora na resposta masw entre muitas viagens sua Mensagem se perdeu num mar de e-mails e s[o consegui recuperar agora. Organizemos a viagem. Irei com o maior prazert. Lerei seu texto e no próximo comento. Abraços grande em você e no Darcy e obrigado pela tarde memorável que passamos juntos em Sorocaba. Abraços
Silvio Tendler
P.S Linda sua crônica. Não agüentei e li. Vou comentar com a Lerida – participamos do mesmo grupo de discussão

Jorge C Rodrigues de Freitas disse...

Henrique...

Tem dias que entro no seu blog, pesquiso "Darcy" e fico relendo tudo.
Tem dias que a saudade é mais difícil do que eu esperava.
Obrigado por manter no seu blog tantos textos , tanto material com meu pai.

Forte Abraço
Jorge