TRÊS "DONAS"
Como lembrança dela, algo de pouco mais de vinte anos. Ouvia diariamente à noite a rádio JB AM e num dos dias ouvi o ator Paulo Betti num programa onde descrevia as Dez mais, músicas que lhe marcaram a vida, lembrando de suas andanças pelo interior paulista, ele de Sorocaba, mas façando tambémsobre Bauru e aqui lembrava justamente de quem, dela, a mulher que tanto fazia pelo teatro e teve por ele carinho e atenção, quando passou por aqui ainda pouco conhecido. Tanto ele falou, criei coragem e liguei para ela. Hoje a imagino, sentada numa poltrona ao lado do telefone, ainda fixo, tendo um rádio ao lado, objeto inseparável em sua vida, até para ajudar a afastar a solidão e tudo o mais. Conto do ocorrido no programa da JB, ela me ouve sem interrupções e depois me diz do amor pelo Paulo, já grande ator, mas ocupamos bom espaço para falar sobre outra coisa, o rádio. Ela me disse, ouvia muito rádio e nas noites mal dormidas, insônia ou algo parecido, quando não se refugiava em alguma leitura, o fazia ligando o rádio. Descobri ali que ela ouvia uma mesmo que também ouvia, quando com o mesmo problema madrugada adentro, a sintonia na rádio Gaúcha, num programa onde o locutor, que não me lembro o nome, mas me recordo da voz, inesquecível mesmo com o passar dos anos, ele abria o microfone, permitia o desabafo do ouvinte, algumas vezes com tema específico, noutros não e depois comentava, algum diálogo. Não havia admoestações, vozes alteradas, mas conversações altivas varando a madrugada. Ela me disse que ligava sempre e em muitas foi ao ar, fazendo o mesmo que o Paulo, falando sobre o interior paulista, o teatro e Bauru. Depois, prestando mais a atenção, cheguei a ouvi-la falando pelas ondas da rádio numa madrugada.
Dona Celina, não tive muito contato com ela, mas a admirava por ter conseguido, dando muitos murros em ponta de faca, ir impondo em forma de drops, aos poucos a cultura teatral numa cidade onde os olhos sempre estiveram voltados para outros quesitos. Ela fez parte dos persistentes, insistentes e dos que nunca desistiram, tendo algum reconhecimento, a maioria após seu falecimento. Essa conversa sobre o rádio, me faz dar o salto e ver o que tínhamos neste quesito em Bauru e o que temos. Ela, com toda sua sapiência, fleuma, com certeza não teria mínimo de paciência para escutar essa bazófia dessa tal de Jovem Pan, ops, desculpe, digo Velha Klan, uma que só permite opiniões favoráveis ao que pensam e do lado onde atuam, na defesa do Senhor Inominável. Vinte anos se passaram, nem rádios decentes temos mais, o teatro segue na cidade caminhos iniciados lá atrás, ela está lá com seu nome eternizado no Teatro Municipal e ao lembra-la, impossível não associar das perdas, não só a dela, mas tantas outras, hoje reduzidas em encurtadas cabeças, mentecaptos no comando do país, propondo fechar tudo, taxar livros para diminuir e estancar todo e qualquer tipo de leitura, boicotar a Cinemateca e dar cabo na história de filmes brasileiros, como o farão também para com os amantes das artes, todas elas, teatro, cinema, música...
São associações que minha mente faz em noites mal dormidas, quando a mente efervesce e nem rádio à moda antiga existe mais para sintonizar e nas poucas que resistem, a maioria foi seduzida pelo canto da sereia conservadora e lhe bancando a sobrevivência. Só de pensar nela, nas agruras do rádio atualmente, país destroçado, pelo menos revejo o passado, viajo por caminhos e descaminhos saudáveis, louváveis e salutares. Juntando isso tudo, busco força para prosseguir...
Ao ver qualquer um pela frente, mesmo aqueles que lhe viram a cara e não cumprimentam ninguém, sempre de mal com a vida, ela estampa o melhor dos seus sorrisos e diz do prazer divino de continuar vivendo. Não regateio, nos cumprimentamos e conversamos, esse nosso elo de ligação, contato estreito. Aqui, como em qualquer outro lugar, a cobrança do condomínio se faz num valor considerável, hoje com serviço de síndico profissional, destes que não moram no lugar, pouco conhecem do prédio, mas dizem entender de administração, principalmente das feitas à distância. É pago por um serviço de incorporadora, essa repassa mensalidade ao síndico e os funcionários, poucos, ficam com o que sobra. Aqui, dois porteiros diários e dois noturnos, um zelador e ela, nada mais. Ela faz o serviço andar por andar, limpa o hall, canta seus hinos, prestativa e sempre com algo aprendido ao longo de tantos anos nessa lida do lado de fora de apartamento de ditos importantes: mantem-se de boca fechada, pois assim, evita problemas e percalços.
Sapiente e audaz, faz o que lhe compete e deixa a coisa rolar. Tudo tem a crença divina como pano de fundo e se nada até o momento lhe aconteceu, foi porque deus não quis e assim continuará, pois segundo me diz, se conseguiu até agora passar por todas as provações, os dois ônibus cheios para vir, mais dois para voltar, esbarrando em tudo e todos, seu santo é mesmo forte. Essa couraça protetiva é algo inexplicável, pois aqui onde moro, a maioria vive presa, detida e com poucos contatos externos. Todos são possuidores de condições em se manter na devida quarentena e o fazem, com uns e outros saindo diariamente para obrigações externas, mas cuidados extremados, algo pelo qual dona Josefa, tenta cumprir, mas não possui condições nem de manter uns 30% do que vê aqui acontecendo. Não sei o que ela pensa sobre isso e nem ouso perguntar, mas no caso dela específico, sei muito bem, pois apregoa, “se ele quiser, vou fazer o que? Ela me dá forças e assim prossigo”. Sua fé a conduz.
O serviço para ela foi facilitado, pois há dois meses atrás, não precisa mais pegar o lixo dos condôminos de andar em andar, sendo isso tarefa de cada morador, depositando-o em imensos tambores no térreo e subsolo, um para lixo reciclável outro para orgânico. Cabe a ela e ao zelador, levá-los para a lixeira na área externa, que sei, já possui consumidores próprios, que sabem até a hora em que o lixo ali chega. Eu passo ao lado da pequena cozinha do prédio todo dia e o cheiro do café é dos melhores, mas hoje, para não causar problemas, me reservo aos elogios, não entro mais e nem me sirvo. Mesmo a conversa, a faço à distância. Ela é linda com seu uniforme claro, todo branco, avental azul marinho e uma touca na cabeça, angelical figura a nos proteger neste insólito lugar. Produz uma aura que só de se aproximar, trago comigo seus bons fluidos.
Dias atrás estava radiante, pois lhe avisaram que entrará de férias na próxima semana. Ela, que já contou até agora com toda ajuda possível do seu deus, permanecerá uns dias em casa, cuidado só dos seus e não de toda essa legião de gente, uns a observando, outros não querendo nenhum tipo de proximidade e gente como eu, conversadores, proseadores e buscando aproximações. Nem ouso tocar no assunto religião, mas quando me diz da força divina que tudo faz, reafirmo que temos que se aliar, juntar forças, não sobrecarregando os já cansados ombros do provedor divino e não deixando tudo ao seu encargo. Outro tema ainda tocado só de soslaio é o político e onde está situada. Já percebi, mas o melhor é não acirrar nada e sim, tentar aos poucos ir mostrando outro lado, outras possibilidades.
Não sou hipócrita, sei fazer parte de uma minoria, na maioria das vezes opressora, tenho consciência de onde me encontro e o que posso fazer para ir mudando esse estado de coisas. Com dona Josefa, o melhor que faço é entendê-la em todos seus momentos. Pela bagagem que possui, anos de trabalho junto a gente como os que moram aqui e daí, ela escolada, eu mostrando não ser igual a maioria, vamos tocando nossos barcos, tentando ao máximo algo mais do palatável neste relacionamento construído de embates.
É a pessoa mais adorável – depois de Ana, claro -, do lugar onde moro. Sem dona Josefa por aqui, ela e seu jeito, que nem sei direito como tratar, conduzir, levar adiante, sei que tudo seria mais opaco, nebuloso e sem sal, melhor, insipido, inodoro e insosso.
Em tempo: Não quis publicar foto dela, mas repito novamente: Ela é linda e as aqui publicadas, são meramente ilustrativas.
3.) DONA NANCI, SORVETEIRA PRO QUE DER E VIERTem os que saem às ruas hoje por pura sacanagem, pois poderiam muito bem permanecer mais um bocadinho em suas casas, esperar o danado do vírus amainar a fúria e só depois dar com os costados, circulando cidade afora. Tem os que dizem não mais conseguir permanecer trancados e saem, mesmo cientes do risco em curso e mais que isso, do perigo de transmissão que trará para os seus. Esses são os tais imperdoáveis, os que se mostram todos pimpões pelos points da cidade, como se nada estivesse ocorrendo, mas como a gente sabe muito bem, tudo está ocorrendo, destes muito do desprezo, pela inconsequência do ato insano. Por outro lado, existe uma multidão de gente praticamente obrigada a não sair das ruas, pois tira dela o seu sustento. Esses são corajosos até demais, arriscam a própria pele, enfrentam o dragão com as armas que tem, sabem dos riscos todos em cada virada de esquina, mas se não venderem seu peixe, o necessário para a sobrevivência não entra e a penúria se fará presente com maior intensidade. A história de hoje é de uma mais que resistente.
DONA NANCI é velha conhecida deste escrevinhador, pois ainda dos tempos quando batia cartão diariamente na Feira do Rolo, mais precisamente na Banca de Livros do Carioca, ela já nos tinha como assíduos fregueses de seus sorvetes e ali era, além de saborear o que trazia no carrinho refrigerado, a possibilidade de revê-la e das conversas ali produzidas. Uma guerreira, mirrada cidadã, complexão franzina, curtida pelo sol (“eu não sou tão escura, sou fruto do sol que tomo o dia todo”, me disse certa vez), cabelos em desalinho, mas altiva, ela e seu carrinho, buzinando pelos corredores e sempre me trazendo o meu preferido, o da fruta amazônica, a cupuaçu. Fiquei amigo da danada logo que bati nela os olhos. Passou a passar frequentemente defronte o Mafuá, onde a conversa fluía e fiquei sabendo mais de sua vida. Mora no Colina Verde e pega sorvetes numa na rua Boa Esperança, Bela Vista, caminhadas feitas à pé, ida e volta, além do trajeto diário, cada dia já esquematizado para circular num determinado percurso. Uma andarilha por necessidade, pois mesmo não tendo a idade que aparenta, pena para ganhar a vida, mas não entrega os pontos e mesmo com essa pandemia nos calcanhares, de início, como todos, permaneceu em casa, mas depois não deu mais e agora, com este inverno um tanto aquecido, voltou para as ruas, máscara no rosto, cara e coragem, buscando obter o suado dinheirinho de cada dia, percentual do valor de cada picolé, R$ 1 real. Junta com outra pequena renda, ajuda dos filhos e segue sua vida, toca seu barco e nada a detém, pois segundo me diz, “não posso nem pensar em permanecer em casa”. Eu sei que não existe outra alternativa para tantos na mesma situação e dela, ao revê-la na tarde de hoje, lá diante do Mafuá, fiquei doidinho para lhe abraçar e me contar as histórias desses tempos. Não fiz coisa, nem outra e o máximo foi a foto, que guardo comigo, como joia rara, destes tantos mais que aroeira, envergando e nunca quebrando.
OBS.: Imperdoável eu não saber o sobrenome de Dona Nanci, algo que anotarei tão logo a reveja pelas ruas de Bauru.
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