terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

MEMÓRIA ORAL (302)

BAURUÍCES

01. O PINTOR DO ASFALTO

Eu moro nas imediações e o vejo em incontáveis ocasiões desenhando com tocos de giz no asfalto da rua Henrique Savi, rua paralela à Nações Unidas. Sua preferência são aos domingos pela manhã, quando a afluência de gente e carros é menor e assim, uma rara oportunidade de não ser importunado, nem interrompido. 

Ele perde - ou ganha? - horas ali debruçado e colocando pra fora o que vai em sua mente, deixando tudo ali exposto no asfalto até que a próxima chuva carregue tudo e sua arte não seja conhecida - nem reconhecida - pela imensa maioria dos bauruenses. 

Coisa de um mês atrás o fotografei desenhando e hoje, não o vi, mas lá estava sua arte no mesmo lugar de sempre. Junto as duas fotos e aqui os apresento mais um artista de nossas ruas.

02 - ALGO NUNCA MAIS VISTO POR ESTAS PLAGAS  

Este senhor ostentando camiseta chilena no último domingo na Feira do Rolo me fez relembrar de tempos idos, quando afluiam em Bauru, latinos de diversificadas origens, tudo possibilitado pelo famoso trem, ligação diária daqui até a Bolívia e com isso, vai-e-vem divinal, algo perdido com o fim do modal trem de passageiros.

 Nunca mais voltaremos a ter o que já tivemos por essas bandas de latinidade, pulsante movimentação a nos impulsionar.

03. ALBERTO DA CAPOEIRA, MEU CONSTRUTOR DE ALFAIAS - E REFAZENDO A MINHA PELA TERCEIRA VEZ
A história desta minha alfaia é pra lá de inebriante. Eu só não a perdi definitivamente por causa e culpa deste tal de Alberto Pereira, ex-manager da Casa da Capoeira de Bauru. Alguns bons anos atrás eu encomendei uma com ele, pois o vi construindo algumas. Fiz e prometi pra mim mesmo que um dia aprenderia a tocar. Esse dia ainda não chegou, mas a dita cuja da alfaia já passou por poucas e boas. Anos atrás, antes da pandemia, desfilou no Sambódromo - áureos tempos -, sendo manuseada pela mãos hábeis de Cristiane Ludgerio no bloco Primavera, do Redentor. Foi um sucesso e um dos destaques daquele ano na avenida do samba. Por pouco não a presenteei para quem dele fez uso. Trouxe para o Mafuá, seu local de descanso e ali ficou, esquecida e entre enchentes, goteiras e tudo o que veio com a pandemia, quando a vi meses atrás, acreditava ter chegado ao final da linha. Não tinha mais cara para pedir ao Alberto para recuperá-la, pois já havia feito isso, quando fez manutenção para a apresentação da Ludgerio. Criei coragem e pedi. Ele fora de Bauru, morando na Chapada em Goiás, quase não mais aporta por aqui. Veio depois do Carnaval resolver outras coisas e vendo minha súplica me escreve:

- Tô em Bauru, bora resolver sua alfaia...

Caí das pernas, ou seja, vergonhosamente levei seus escombros para sua avaliação. Esperava uma dura, pois por mais que a pandemia e tudo o mais tivesse influenciado, fui negligente. Ela estava em petição de miséria. Contei a história do novo lugar e a fiz nova promessa:

- Dessa vez piorou muito. Arrumei um outro lugar, arejado, uma quitinete, pois vendi o antigo Mafuá. Detonei com a alfaia, está horrível. Vou te levar envergonhado. Agora irei cuidar dela com todo cuidado. Permanecrá pendurada na sala, num local seco e bem cuidado.

Marcamos e levei. Alberto não me deu a dura esperada e proseamos muito no portão de sua casa. Suas histórias goianas são boas demais. Ele acabou por se desvincular das aulas no Estado, pois estava a adoecer com tanta pressão dos que tentavam a todo custo modificar o currículo de suas aulas de Educação Física, moldando-a para os tempos neopentecostais. Caiu fora e foi viver. Sua fisionomia está ótima, porém não escapando de uns exames de rotina, estes inevitáveis pelo passar dos anos. Disse ficaria dez dias em Bauru e faria devagar. Não tinha pressa, mas ele me surpreende, pois nem bem sai de lá começou a me postar, primeiro a desmontagem da peça e o proposto.

- Henrique, eu abri a bonitona e cheguei na conclusão que o couro não dava mais para aproveitar e o bojo, o corpo dela propriamente dita, ela só não afundou porque o couro rasgou. As lâminas de maderira da parte interna estão todas soltas. Na externa tinha proteção da tinta, parecia que estava bacaninha, mas por dentro ela está toda fofa e não tem mais como colar. Minha sugestão é uma outra, da mesma época que fiz a sua, só que pintada com bojo rosa. Não aproveito os aros, pois perderam a forma. Mas prático, rápido e indolor eu desmontar essa, faço a pintura dela em vermelho, pra ficar novinha, bonita e faço a substituição da corda. Topas?

Como poderia dizer algo e querer contra argumentar? Aceitei tudo.

- Alberto, meu nego, eu acho fantástico. Qualquer coisa que você me sugerir eu topo. Se você quiserr manter ela rosa, pra mim, sem nenhum problema. Se achar que é muito trabalhoso desmontar, pintar e depois entrelaçar tudo novamente, mantenha rosa. Não tenho problema nenhum com a cor rosa. Fica a seu critério. Meu problema é quanto vai ficar isso e como irei te pagar. Me ligue para termos uma negociação honesta e franca. Baita abraço.


- Desmontar e remontar é tranquilo. A pintura também. Tudo vermelho é a sua cara. A corda vou substituir, pois 
a sua apodreceu no meio. A parte mais cara dessa brincadeira toda seriam as duas peles de cabras. Ficará tudo em $___. A alfaia vai pra ser bem cuidada e espero que agora isso seja verdade. Quanto a me pagar, um ou dois pixs se resolve.

Quando vejo tudo já está quase pronto. Escrevo a ele:


- Mas você não me disse que tudo seria feito devagarzinho, lentamente. Daqui hpa pouco me liga e diz, tudo pronto. Vai ficar lindo, pendurada na sala. Faz uma assinatura e coloca nela, pois a obra é sua.

Dois dias atrás me responde:

- Ainda não está pronta. A corda nova está bem esticada, afinando o couro. Viajo e volto na terça. Quarta, depois que a corda ceder, solto tudo e aperto de novo. Daí sim, estará pronta.


Que dizer? Sem palavras. Quarta é amanhã e bem que poderia marcar uma apresentação com diletos amigos, para algum lugar, onde ele tocaria um pouco e todos os com saudade do danado, iriam aproveitar para colocar as conversas em dia. Penso a respeito. Já imagino ela sendo utilizada carnavalescamente no Sábado de Aleluia no revival do bloco do Tomate e depois, cuidada com todo esmero. Tinha que contar essa história, pois gosto demais da conta da pessoa deste cidadão Alberto Pereira, esgrimador de causas insólitas e como eu, na luta e lida por um mundo melhor, bem diferente deste onde vivemos atualmente. Quem me ajuda a marcar algo onde poderíamos rever o Alberto e bater forte da nova alfaia?

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