MEMÓRIA ORAL (119)
DOIS ATOS, EM AMBOS A BUSCA DA VERDADE AINDA OCULTA
Sábado, 14/04, dois atos (ou seriam eventos?) ocorrem em Bauru e batem de frente contra os acomodados, os conformistas e os acostumados a verem a banda passar sem nada fazer. Na parte da manhã no Calçadão da Rua Batista, centro
da cidade, das 9 às 12h, o Ato pela Revogação do aumento concedido pelo prefeito Rodrigo Agostinho para as tarifas de ônibus em Bauru e à noite, às 19h30, no auditório do SESC, a abertura da II Jornada de Direitos Humanos de Bauru. Tanto num como noutro uma movimentação que deveria contar com intensa participação popular.
No primeiro, após a decisão do prefeito municipal de referendar o valor proposto de aumento pelas empresas que atuam no transporte coletivo, sem pestanejar e de forma quase automática, um pequeno movimento nasceu da iniciativa de um único vereador, Roque
Ferreira – PT e de um agrupamento ligado ao seu grupo político, a Juventude Marxista. Tales Freitas, também idealizador do blog Protesto Jovem, designado pelo partido, ficou encarregado da divulgação, feita primeiro via internet e depois, com os interessados que apareceram para ajudar na confecção de cartazes, bonecos e na distribuição de panfletos.
Tudo correu a contento, mesmo com o pouco apoio de divulgação via
mídia local. Durante a semana só um meio de comunicação, o diário Bom Dia, publicou uma ampla matéria de duas páginas sobre o tema. Nada mais e se o número de pessoas não foi dos maiores, mesmo assim, pode ser considerado bom. “Hoje, no dia do evento, além do corre-corre com os cartazes e os bonecos, a TV Tem aparece e faz uma matéria sobre o ato. Fotógrafos dos dois jornais, o JC e BD também estiveram no local e isso é sinal de que tudo o que fizemos está dando resultado e não podemos ser mais ignorados”, diz Tales.
Co
m vários cartazes espalhados pelo local, quase esquina das ruas Batista com Treze de Maio, numa banca estão várias folhas preparadas para o Abaixo Assinado e fazendo uso do microfone, vão se alternando vários conhecidos militantes das causas sociais da cidade. Além do citado vereador, seus dois assessores e o jovem Tales, um grupo vão interceptando os transeuntes numa manhã de compras e convidando-os para
deixarem seus nomes nas listas. No cartaz mais chamativo, a imagem do prefeito, num traço do cartunista Latuff e com uma catraca como se fosse uma arma apontada para o povo desferindo um: “É um assalto”.
“Aumento de Tarifa, NÃO! Qualidade de Transporte, SIM!”, “Busão Grátis, eu Curto!” e “Revogue JÁ!”, eram alguns dos demais cartazes, fixados ou sendo seguros por alguns dos manifestantes. Dentre um dos mais animados a convencer as pessoas a colocarem seus nomes nas listas estava o assistente social e militante do Movimento Negro local, Gaspar Reis Moreira. “Não dá para ficar indiferente, pois o ônibus está caro demais e precisamos fazer algo para mudar esse estado de coisas”, diz. Dos que param e ficam para o bate papo, Alberto, da Casa da Capoeira, Gilberto Truijo da Comissão dos
Direitos Humanos da OAB, o professor Voltaire e sua esposa, o também advogado Jorge Moura, Magu do Movimento Hip Hop, entre outros, todos querendo entender a lógica e o que estaria por trás desse injustificável reajuste.
Alternância de falas nos microfones, agitada movimentação e no dia seguinte, nas manchetes dos jornais, o que a mídia interpretou do
realizado: “Protesto ainda tímido nas ruas” (o que não deixa dse ser verdade). Ainda no sábado, no mesmo Calçadão, só que outro lado da rua, uma manifestação do Sinserm, o Sindicato dos Servidores Municipais, ligados ao PSTU, preferindo fazer um outro ato em separado, sobre outro assunto dos que mais deveriam gerar manifestações e protestos na cidade. “Não a Terceirização do DAE”, estava escrito no principal dos cartazes, contra um movimento crescente de interessados na privatização do serviço de água municipal.
N
a parte da noite, o evento promovido pelo Observatório em Direitos Humanos da FAAC UNESP Bauru, coordenado pelo professor Clodoaldo Meneghello Cardoso, com contribuição do Centro de Estudos Sociais e Políticos Nossa Memória Ninguém Apaga, coordenado por Antonio Pedroso Jr, além de muitas parcerias e apoios. “Sábado à noite, conseguir reunir a quantidade de gente para um ato político
de resistência foi altamente significativo. O SESC só aceitou a abertura aqui por minha causa. Sabia que eles estariam fugindo do padrão onde sempre atuam, mas acreditaram em mim. Sabiam que eu não iria deixar fugir do combinado”, conta Clodoaldo.
A mídia até que divulgou, mas ninguém apareceu para registrar a abertura, afinal, sábado à noite, nem os plantonistas parecem estar de plantão. Na apresentação inicial, Clodoaldo desabafa: “Dia desses fiz um questionamento numa sala de aula, queria que os alunos descrevessem seus sonhos futuros. A imensa maioria fez de sonhos individuais e somente um o fez sobre algo coletivo, esse em relação à América Latina. Esse evento é para despertar nos jovens, algo além dos
sonhos individuais e profissionais. Estamos fazendo a nossa parte”. Na sua frente, aproximadamente umas oitenta pessoas, muitos ligados aos muitos movimentos sociais de Bauru.
Na composição da mesa, além dos dois citados, o
vice-diretor da FAAC, professor Nilson Ghirardello e o ilustre convidado da noite, o coordenador do Projeto Direito à Memória e a Verdade da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, o ex- preso político e ex- deputado federal Gilney Viana. Pessoa carismática, bem humorada e inflexível na defesa do que tem a absoluta certeza de ser mais do que necessário para o país, a conquista do restabelecimento da verdade sobre os anos de chumbo da história brasileira. “Isso que ocorre hoje é o acúmulo de muitas lutas, dos que nunca arriaram suas bandeiras. Existe a necessidade do Estado fazer sua autocrítica e pedir perdão pela ação de seus agentes nas masmorras da ditadura. A ditadura militar jamais teve coragem de se submeter ao voto. Precisamos desmontar essa versão de que eles fizeram algo pela democracia e que o povo esteve ao lado deles. Isso é ridículo. Eu me levanto contra essa usurpação da verdade. Não
houve dois lados, dois demônios. Isso é balela e não podemos admitir o que ocorreu como um tema pacífico na sociedade”, disse na sua fala.
No final, Clodoaldo lhe entrega uma bolsa cheia de livros e CDs do evento, que Gilney, com tom de brincadeira diz ser sua “matula”,
aliás, diferente daquela com comida, essa uma “cultural de luta”, diz. E ele fala mais um pouco: “O que pedimos não é nada com reabrir feridas. É o restabelecimento da verdade, pois a feridas continuam abertas. Continuam impunes os torturadores de ontem e os de hoje, os da Polícia Militar que trucidam gente por aí. Queremos virar a página, como dizem alguns, mas só depois de a ter lido por inteiro. Não aceitamos de jeito nenhum a desonra que foi impingida aos nossos irmãos. Aos que não entendem muito bem o que ocorreu, temos que ser didáticos, mas aos que conhecem e agem de má fé, escamoteiam a verdade, com esses temos que ser duros”, conclui.
Por fim, quase 22h, com o fim do falatório no palco, uma reunião
animada de militantes no salão ao lado, com ex-cassados, gente a militar pela causa social, outro tantos participantes da resistência contra a tirania militar e jovens, muitos deles em busca de informações históricas sobre o passado recente do Brasil. Ao assistirem um filme sobre a Anistia, era inevitável ouvir dos presentes ao nome em voz alta dos tantos que apareciam na Tela, imagens de Julião, Arraes, Brizola, Gregócio, Marighella, Tito, Iara, Bacuri, Fiel, Herzog, Angel e tantos outros. Em tom de brincadeira, para encerrar o ato, Gilney disse: “Só vocês mesmos. Marcar algo para a noite de sábado e me deslocarem de Brasília. Tenho que ser muito convincente com a mulher lá em casa para ela acreditar que aqui estive”. E todos os presentes foram para suas casas, cheios de muitas indignações sobre essas coisas ainda não resolvidas na história dessa ainda frágil nação. Nos dois atos, uma pequena injeção de ânimo a embalar as ações da maioria dos presentes, além da eterna busca da verdade, ainda oculta.