OS QUE FAZEM FALTA E OS QUE SOBRARAM (39)
REVOLUÇÃO TIPOGRÁFICA E POÉTICA EM PRESIDENTE ALVES NOS ANOS 70/80, REVIVIDOS COM VALERO E KHOURI
Esse mafuento espaço vive muito de lembranças, algumas dolorosas, porém saborosas. A história do Zéluiz (ou Valero) é uma delas, emérito professor, especialista em Tipografia, mas mais que isso, uma alucinada pessoa, dessas criadas numa pequena cidadezinha no interior brasileiro e fazendo algo insólito e inimaginável, movimentando-a em plena ditadura militar com discussões sobre temas mais do que controversos. Esse Zé reunia em Presidente Alves, pouco mais de 3 mil habitantes, aqui pertinho de Bauru, umas seis a oito pessoas em conversações semanais para discutir Concretismo, MPB, Literatura, Poesia, Política e tudo o mais. Varavam dia e noite em antológicos momentos, a maioria na praça da cidade. Depois, cada um seguiu seu caminho. Valero foi ser professor da FAAC UNESP até sua morte, ocorrida em 2008. Um desses intrépidos da trupe lá de P. Alves foi o professor OMAR KHOURI (da também vizinha Pirajuí, pouco maior, 50 mil habitantes), que abriu na última quarta, 26/09 aqui em Bauru a Semana Tipográfica da Unesp, com a palestra “Zéluiz Valero ou a Bauhaus nos Trópicos”. Cresceram juntos, viveram intensamente aqueles anos produzindo revistas, fanzines, livros, todos hoje peças de estudo. Omar também foi ser mestre e está no circuito, atuante e sempre revigorado. Convidado pela profa Cassia Letícia Carrara Domiciano, do Design Unesp, além da palestra havia repassado textos escritos sobre a atuação do amigo. Tudo foi inserido numa bela exposição a “Memória Visual VALERO” (de 26 a 29/09, na Fundeb Unesp Bauru). Do Zéluiz Valero tenho poucas recordações, alguns poucos contatos, sempre reverenciando sua coragem e desprendimento por fazer o que fez e na época dura dos nossos anos de chumbo, já do Omar, o conheço por escrevermos juntos por vários anos no semanário O Alfinete, de Pirajuí. Espiar e conhecer o que a dupla produziu é gratificante, recomendo a todos. Abaixo os textos que o Omar escreveu sobre o Zé e as fotos que tirei lá da exposição. Só para começar pergunto: Alguém aí já ouviu falar na revista ARTÈRIA e na NOMUQUE? Aqui mesmo nesse mafuá já escrevi muito do querido Omar e algo mais pode ser lido aqui: http://mafuadohpa.blogspot.com.br/search?q=omar+khouri . Detalhes sobre o evento Unesp:
www.semanatipografica.wordpress.com ou facebook/com/SemanaTipografica
1.) 7 de março de 2004 - JOSÉ LUIZ VALERO FIGUEIREDO: Foi no ano de 1974, a propósito do meu primeiro livro de poemas: Jogos e Fazimentos, que conheci José Luiz Valero Figueiredo (o Zéluiz), seus irmãos Carlos Alberto e Luiz Antônio e mais: Renato, Roberto e Rita Ghiotto, o Betinho, Maísa (esposa de Luiz Antônio) e outras figuras admiráveis de Presidente Alves. Vilma Negrisoli foi quem possibilitou a aproximação, tendo ouvido uma minha conferência sobre Poesia Concreta no IEDAP e percebendo as afinidades existentes entre nós. Daí, foram agilizados trabalhos da recém-criada Nomuque Edições para que, em 75, saísse o número 1 de ARTÉRIA e outras tantas coisas em que Zéluiz teve participação importante. Paulo Miranda presente em quase tudo. Zéluiz nasceu em Presidente Alves, no ano de 1957, onde estudou, tendo tido uma breve passagem por escola de Pirajuí (o "menino Valero", como Dona Maud a ele se referia). Acabou por se formar em Comunicação Visual, na Fundação Educacional de Bauru, que foi incorporada à UNESP. Depois de andanças pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Bauru, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, fixou-se em Bauru como professor da FAAC-UNESP, especializando-se em Tipologia, dando chance à sua vocação de gráfico e tendo, como docente, uma rara performance (perguntem aos seus alunos - privilegiados, diga-se).
Antes de assumir a função de professor, Zéluiz trabalhou como fotógrafo, diagramador em jornal, pesquisador, programador visual, operário gráfico. Em todos os casos citados, primou pelo rigor, começando por exigir o máximo de si mesmo.Da época em que o conheci e por mais de dez anos, dedicou-se à Fotografia, técnica (e arte) que aprendeu autodidaticamente e com a qual experimentou, daí saindo belos trabalhos, alguns dos quais chegaram a ser publicados, principalmente em revistas da Nomuque. Imagens memoráveis, algumas das quais conservo em minha coleção com o maior apreço, como a da paisagem que traz, em zona de sombra um burro preto: sutileza das sutilezas, o que foi uma constante em seu trabalho. Em Presidente Alves, ainda chegou a trabalhar como fotógrafo profissional, por mais de uma vez. FOTOFORM foi o nome de sua "empresa" (parece-me que bolado por seu irmão mais velho Luiz Antônio). Ao lado disto, Zéluiz cultivava a música, tocando violão, cantando e acompanhando amigos, transitando num repertório finíssimo, onde se encontravam preciosidades do samba tradicional (Luiz Antônio era um grande conhecedor dessa vertente da MPB e trazia até o irmão mais novo toda essa informação) a Caetano Veloso, Gilberto Gil e Walter Franco.
Sua residência em São Paulo, principalmente a segunda, coincidiu com um momento interessantíssimo, em que os amigos se reuniam em bares, restaurantes e choperias e em que as conversas iam longe, com idéias de projetos e suas realizações (porém, nem sempre). Via de regra falando pouco, era um ouvinte atento e, como outros raros humanos, pensava antes de falar: aí, era um acontecimento! Seu rigor gráfico me fez ver nele a Bauhaus nos Trópicos. Sua opinião teve sempre um peso muito grande para aqueles que com ele conviviam e, frente a dificuldades gráficas, ele sempre vinha com a melhor solução, depois de muito estudo. Polimento e generosidade foram e são as suas maiores qualidades, perceptíveis já num primeiro contato. Eu, particularmente, devo muito a Zéluiz que, além da amizade de trinta anos (agora, neste 2004), auxiliou-me em muitos projetos. Posso mesmo dizer que viabilizou com sua sabedoria gráfica alguns de meus trabalhos que estavam apenas em fase de projeto. Sua modéstia (verdadeira) o fará dizer que não foi bem assim, porém, eu sei o quanto foi relevante a mão que me deu em diversas ocasiões, por pura amizade e graças à referida generosidade.
Zéluiz é um produtor de linguagem que pensa não ser. Ou seja, tem amordaçado o poeta da imagem que há dentro de si, o qual, qualquer dia desses, se libertará e nos trará belos trabalhos, como todos aqueles que ele realizou, principalmente nos anos 70 e 80. Chegou a ter, com Paulo Miranda, uma quase-empresa de camisetas, em que faziam tudo, mas principalmente as estampas bastante originais, que eles mesmos imprimiam (serigrafia). A etiqueta aoba só não prosperou porque faltou a eles um sócio honesto e com tino comercial, que viesse a colocar no mercado o produto. Ainda conservo comigo algumas das belas camisetas produzidas pela AOBA. Aguardando novos trabalhos de Zéluiz, deixo-lhe, aqui um forte fotográfico- abraço e uma pergunta: - Zé, quando da minha sugestão da palavra "tipomorfia" (ao invés de "tipologia" ou "tipografia"), você me achou muito ridículo? Pode responder-me por e-mail. Até…
2.) 23 de fevereiro de 2008. ZÉLUIZ VALERO FIGUEIREDO: O DIFÍCIL ADEUS - Para os mais jovens, poderá até parecer exagero, porém, para pessoas como eu, que estão prestes a adentrar o mundo dos sexagenários, não. Uma perda vem a ser algo que não tem reparação, mormente quando se trata de pessoa que, de fato, fez parte de seu universo, foi parte integrante de sua vida e que ocupa um lugar muito especial: nada pode substituir. Daí, que um vazio doído fica no lugar que tal pessoa ocupava em nossos corações e mentes. Este foi o caso da morte recente de José Luiz Valero Figueiredo, um ser-pensante-designer-(gráfico)-docente, aos 50 anos de idade, muito embora não parecesse. A notícia, a qual, diga-se, jamais esperaria ouvir, chegou-me, por telefone, aos 35 minutos do dia 19 de janeiro, algumas horas após o ocorrido (uma queda do 8º andar do edifício onde residia, em Bauru): “Omar, o Valero morreu!” disse-me Gastão Debreix e eu não acreditei, não podia acreditar… O significado daquela frase, para mim, se esvaziou e, tomando na memória o Zéluiz, só conseguia compor uma imagem de pessoa calma, que pensava para falar, e falando: aquele timbre vocal está presente e insiste: um Zéluiz vivo!
Rumei, pela manhã, para Bauru, com Paulo Miranda, um outro grande amigo e nem tínhamos muito o que dizer naqueles momentos duros, a caminho de um velório, impossível até há pouco. Lá, as pernas bambas de quando recebi a notícia deram lugar a um choro incontrolável, mas que me trouxe um certo alívio (pelo menos, diminuiu-se-me a tensão nervosa). Lúcia, a esposa, estava transtornada. Pessoas foram chegando: algumas conhecidas e muitos jovens, alunos e ex-alunos do Valero (como eles o chamavam). A inumação se deu em Presidente Alves, após as 16h do mesmo 19 de janeiro, sob uma chuva que parecia não parar mais e que poderia até ser tomada como um protesto pelo enterramento de alguém tão especial entre os terráqueos e que, amado por muitos, partia, contrariando tantas expectativas! Paulo Miranda, num determinado momento, disse algo que, parecendo óbvio, em verdade estava a constatar um fato irreversível: “Perdemos o Zé para sempre…”
Somente agora escrevo sobre o fato e nem me sinto ainda bem para fazê-lo. Espero poder escrever longamente sobre o José Luiz, que conheci no ano de 1974 e que era um menino de 17 anos, simpático, educado, muitíssimo inteligente, que ligava necessariamente a teoria à pratica, com muito talento para trabalhar linguagens e já muito rigoroso. Era uma época muito especial para mim, para Paulo Miranda e para os irmãos Figueiredo (Luiz Antônio, Carlos e Zéluiz) e mais alguns amigos, como Renato e Roberto Ghiotto, Beto Xavier, Vilma Negrisolli, Neoclair. Estava nascente a revista ARTÉRIA. Zéluiz havia aprendido, sozinho, o manejo das coisas relativas à Fotografia e a praticava (inclusive a parte de laboratório) já fazendo experimentações admiráveis, algumas das quais chegou a publicar.
Tocava violão muito bem, como instrumento que acompanhava o canto de uma música popular, a mais criativa de nosso País e, nos encontros havidos em P. Alves, rolavam Caetano, Gil, Walter Franco, Nelson Cavaquinho e tantos outros grandes, e a performance do coro de vozes era algo indescritível, de tão mavioso. Muitos dos encontros eram registrados fotograficamente por Zéluiz e, parece que centenas dessas fotos acabaram sendo destruídas (e esta é uma outra história, sobre a qual falarei algum dia). Presidente Alves era a “capital cultural do mundo” quando havia tais encontros, ocasiões em que se discutiam assuntos muitos, todos relacionados às Artes: Poesia Concreta, Webern, Caetano Veloso, Mallarmé, Pound, Duchamp, Godard… Luiz Antônio e Carlos Valero, possuíam um repertório invejável e muita influência tiveram sobre os mais novos, que absorviam as informações – esse era o caso de Zéluiz – e iam para diante.
ARTÉRIA nasceu nesse clima e esta foi uma época muito feliz (anos de 1970), em que a festa se estendia, de Pirajuí a Presidente Alves, acabando por desembocar em São Paulo capital. Zéluiz passou por muitas mudanças: de companheiras, de cidades, de profissão. De uma grande seriedade, não podia admitir uma solução para um problema técnico-artístico que não fosse fruto de todo um pensamento. Das coisas práticas que se propunha a fazer, aprendia com uma rapidez inacreditável: uma nova técnica ou processo, de modo a chegar, no mínimo, ao nível da excelência, não aceitando operar algo que ele não pudesse compreender em sua plenitude. Abandonou a Fotografia, a Música (o violão), a Serigrafia para ser um grande designer gráfico (fez, para mim, pacientemente, excelentes trabalhos de diagramação). Zéluiz se tornou um dos maiores entendedores de Tipografia no Brasil, adentrando o campo da Informática, um professor universitário como poucos: acabou fazendo da docência sua razão de viver. Que falem de sua grandeza seus ex-alunos… Agora, terei um trabalho importante a fazer, que é o de reunir principalmente suas incursões no campo da Fotografia e, talvez, publicá-las num número especial de ARTÉRIA, com a qual ele tanto colaborou. Por outro lado, vou empenhar esforços no sentido de publicar, com a devida autorização da família, sua tese de Doutorado, um importante trabalho que versa sobre “Poesia Impressa no Brasil e Tipografia”. Com a partida do Zé, perdem os familiares, os amigos, os alunos, o Brasil e o Mundo, pois sua estada no Planeta foi altamente benéfica. José Luiz Valero Figueiredo: Presidente Alves, 06.05.1957 – Bauru, 18.01.2008.
REQUIESCAT IN PACE - (Pirajuí, 23 de fevereiro e 1º de março de 2008)