sábado, 7 de novembro de 2015

RELATOS PORTENHOS (21)


ARGENTINA: CHE, O AMOR E DUAS VIDAS ENTRELAÇADAS PELA CAUSA - NENHUM PAÍS QUER ANDAR PARA TRÁS

Mas o que é mesmo um museu? Dentro da concepção conhecida e difundida, alguns fogem do convencionalmente denominado como tal. Ainda mais quando um desses é o desordenado depositório de tudo o que possa lembrar certo personagem importante da vida de um país. Pelo menos um, dentre os variados e múltiplos museus buenaristas está assim enquadrado. Sim, Buenos Aires talvez seja a cidade latino-americana com mais lugares com a denominação ‘museu’. Um gorducho guia é neles vendido. São quase duzentas páginas com indicações de todos os matizes. Muitos chamam a atenção, uns mais outros menos.

Mas o que dizer do“Primer Museo Historico Sudamericano Comandante Ernesto ‘Che’ Guevara’? Só mesmo vendo pra crer. Chegar lá é algo prazeroso, pois depois da descoberta do aplicativo‘Como Llego’, tudo fica muito fácil e os gastos diminuem consideravelmente. Andar de ônibus ou desubte (o metrôde lá) na cidade é gastar muito pouco, quase nada. É importante saber que os ônibus só aceitam moedas e que a passagem do subte fica ainda mais barata com a aquisição do cartão Sube, que também serve para ônibus e trens urbanos. A descida é na estação de Caballito, um pitoresco reduto suburbano da capital, próximo aos trilhos férreos e de muitos mercados populares.

Olhando para os lados, um inebriante colorido, bem ao estilo portenho, fato que pode fazer com que o visitante passe batido diante do número 129 da‘calle’ Rojas. Para quem não conhece ou não confere a numeração, dificilmente dará conta de estar diante de um museu. A aparência é de uma papelaria misturada com loja de antiguidades. Penduricalhos mil ocupam todos os espaços e a única forma de identificar o lugar como tal é por uma placa colocada na calçada e um pequeno letreiro. Entrando ali tudo muda de figura. Na recepção está o casal, Eladio González Rodríguez, o Toto, 72 anos e IrenePerpiñal, 70 anos. Ele é o diretor, fundador, mantenedor, guia e uma espécie de faz tudo do local. Uma pessoa falante até pelos cotovelos,e entusiasta no que faz. Não dá trégua aos que ali adentram e despeja uma infinidade de detalhes da vida de Che. Tudo em forma de perguntas, que depois ele mesmo vai respondendo: “Aqui você encontra resposta para muitos porquês: Por que Che se pôs a viajar? Por que queria transformar o mundo? Por que não tinha medo da lepra? Por que lutou na África e morreu na Bolívia?”.

O amontoado de objetos merece atenção detalhada, pois cada um tem explicação para lá estar. Foi conseguido de formas inusitadas ou alguém trouxe de muito longe. A aparente bagunça, segundo Toto, é organizada. Algo mais o faz estar ali, ou seja, a tese defendida, a mesma, segundo ele,movia Che e faz questão de continuar apregoando-a em alto e bom som, move o casal. Fundou o museu a partir da pergunta: “Sabe o que move os loucos de amor?”. Responde na sequência. “Che era louco de amor, eu também sou. Quando Che se encontrou com Fidel, em menos de quinze minutos lhe disse que iria ficar e lutar ao seu lado. Dois muito loucos de amor. Em cada página de sua história o amor estava presente. Os movidos pelo amor conseguem sempre muito mais. Fazem diferente. Amor chama amor, agrega. E agora me respondam, qual o motivo de estarem aqui?”, pergunta para o grupo à sua frente e espera a óbvia resposta, dada quase em conjunto: “Amor”. Ri alto e conclui: “Sim, se estão aqui vieram em algum momento motivados por isso”.

Se põe a falar de Cuba, do que vem a ser o também gravado na ‘tarjeta’ do museu: “La escuela de Solidaridad com Cuba ‘Chaubloqueo’ y el Centro de Registro de DonantesVoluntarios de Cédulas Madre”. Um pomposo nome que no fundo significa algo muito simples: solidariedade total para com Cuba. Ali ocorrem campanhas, arrecadações e tudo é enviado para a ilha. Irene vem lá do fundo, onde cuida de uma loja para cinéfilos, colecionadores e afins, parte importante da sobrevivência do lugar e diz: “Quando das privações cubanas, conseguimos juntar muito alimento, artigos de primeira necessidade e enviávamos para lá em lotes contínuos. Fizemos e continuamos fazendo nossa parte.”

Toto confirma ser o lugar mais do que um simples museu. “Trata-se de um lugar de congraçamento para discutir o amor. Aqui é o lugar dos que tocam suas vidas com amor. Sofremos para estar aqui. A situação de nossos países, o que foi a Operação Condor, a eliminação sistemática matou e perseguiu. Havia dentro de cada um de nós, os resistentes, mais do que uma ideia, algo progressista, muito além dos movimentos sociais. Só por isso sobrevivemos. Só por se ter uma foto ou livro do Che muitos foram mortos nesse país”, diz emocionado.

Seu espaço museológico resiste bravamente aos novos tempos. Agregaram alguns produtos gerais vendidos junto de gravações em vídeo e áudio, tendo Che como personagem principal. “Não militamos em grupos antes porque não gostávamos dos existentes aqui. Criamos o Chaubloqueo e seguimos em frente. Duas pessoas já fazem o nosso movimento. Agora mesmo, nos juntamos a tudo o que vem sendo feito para não deixar (Maurício) Macri vencer no segundo turno das eleições presidenciais. O amor dele é bem outro. É ódio e desmonta tudo o que foi duramente conquistado. Lutar contra o que ele representa faz parte desse algo a nos mover, o seguir sempre em frente”, conclui.

O museu segue aberto, horário comercial e alternativo, Toto e Irene lá dentro, revolucionariamente fazendo das suas, com as velhas armas que possuem, mas sem perder a ternura, muito menos o amor, jamais.
Henrique Perazzi de Aquino – jornalista, mestrando em Comunicação (UNESP) e professor de História.

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