sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

PALANQUE - USE SEU MEGAFONE (106)


O ESPÍRITO NATALINO PASSOU POR AQUI, MAS NÃO PAROU, SEGUIU ADIANTE


Eu bem que tento ser feliz e fazer com que esse espírito natalino me arrebate, mas não tem mesmo jeito. Certa feita, décadas atrás, filho ainda pequeno, morava lá no Gasparini. Eu e os meus numa esquina e do outro lado da rua uma família numa situação calamitosa. Tudo cortado por lá, desde água, luz, ou seja, viviam precariamente. Chegando essa mesma época, queriam que eu colocasse luzes diferentes na casa. Como fazê-lo e vendo a cena diante de meus olhos? Não deu. Passamos sem nada além do que já tínhamos. Juntei o que tinha e levei a eles. Não deve ter resolvido pra muita coisa, pois não foi com isso que religaram luz e água. Junto com outros vizinhos fazíamos algo mais, algo que não vem ao caso. Tempos depois, alguns dos seus conseguiram novos empregos e tudo foi melhorando, gradativamente, lentamente, sem alarde, sem grandes transformações. Toda vez que volto lá no bairro, ao ver aquela esquina, olho para a casa, hoje com outro visual, melhorado, me pergunto: E eles? Como estarão aqueles todos?

Batuco algo no computador, ouço uma música na vitrolinha, tiro a siesta nessa véspera natalina e no meio da tarde, ruídos estranhos do lado de fora do portão. Vou verificar e lá um vizinho com seu meio de locomoção em frangalhos, dois pneus arriados, com os arames de fora. Ele vai movimentar o carro assim mesmo, pois me diz ter conseguido algum, de uma pessoa muito querida e vai até o borracheiro. Quero ir junto e me proponho a comprar dois pneus usados para voltar a rodar com alguma dignidade. Ele recusa, não aceita nada além do que já possui, mesmo sendo pouco, muito pouco. Vê-lo saindo com o carro tendo duas rodas no chão, fazendo aquele barulhão nas ruas é de doer a alma. Ele vira a esquina, ele e o barulho chamando a atenção de todos e com ele se vai um pouquinho mais pra longe a vontade de me integrar naquilo que dizem estar invadindo tudo e todas, o espírito natalino.

Nem bem ele se vai, a mendiga passa no meu portão. Era lindinha até uns anos atrás, engravidou na rua e só não teve o filho na calçada, pois num clique de última hora, sentindo as contrações, sentou ao lado do orelhão e ligou para o 190. Vieram busca-la e hoje me chama pelo nome no portão (alguém lhe disse meu nome, agora não sou mais o “tio”). Quer uns trocados e sempre lhe dou. Como não dar. Dou e nem sei o que consegue com tão pouco. O Natal se aproxima, ela ali, suja, fedendo e agora sem os dois dentes da frente. Comento com ela sobre ter se desentendido com outro vizinho e ter espalhado seu lixo pela calçada. Ela, como sempre, refuga e me diz: “Eu?”. Sim, ela, sai batendo os pés e me diz ter jogado tudo para o ar quando o viu de cuecas no quintal. Não entendi e prefiro assim. Ela se vai, permaneço olhando seus passos até dobrar a esquina e com ela, segue junto o tal espírito natalino.

Ergo o som da música, escolho uma caprichada, voz que gosto de ouvir (Carlinhos Vergueiro, lembram dele?)e tento cantar com ele. Decido andar um pouco, falar sozinho pelas ruas e ao fazê-lo passo em frente a uma festa, algo de final de ano, numa oficina mecânica. Eles todos sujos de graxa, comendo carne assada ali mesmo e bebendo cerveja. Parecem felizes ou fingem como a maioria faz hoje. Somos todos atores, diante de uma cena dramatúrgica triste, cenário piorado pela ação horrorosa de um desgoverno nos apunhalando pelas costas a cada ato. Como ser feliz diante do que vejo sendo feito para a turba, ainda inerte e em estado de ababolhamento coletivo? Que motivos tenho eu para comemorar? Volto pra casa, tomo um banho, ligo pra Ana, penso em encher a cara, mas sei não devo fazê-lo. O filho quer me levar pro cinema, acho que vou aceitar. E na noite do Natal onde estarei? E na do Ano Novo? Ainda bem tenho muitos livros espalhados pela casa, sozinho não passarei. De festa ando fugindo...

HPA

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