quinta-feira, 10 de setembro de 2020

RETRATOS DE BAURU (244)


PEDRO MAZANGA, ANGOLANO E CINCO ANOS DE BAURU
Eu e mais dois amigos, depois de mais de cinco meses sem tomar café num lugar público, ontem o fizemos e pela proximidade de onde nos encontrávamos, escolhemos o Tetê, na Zona Sul da cidade, local onde sabíamos um público diferente do que costumamos frequentar. Logo de cara, quem nos recepciona e nos ensina as novas formas de atendimento é um jovem simpático, comunicativo, falante e pelo sotaque o questiono de cara: "Você é africano, né? De onde?". Foi a senha para iniciarmos ali um bate papo que se estendeu por todo o tempo ali permanecido. Foi impossível continuar a conversa iniciada com Sivaldo Camargo e Chico Maia, sem contar com as histórias dessa contagiante e envolvente pessoa. Foram muitos questionamentos e ele sempre solicito, enfim, nos disse algo mais do contato: no seu local de trabalho, muito pouco iguais a ele como clientes, negros e mais, propondo estender a conversa e torná-lo o centro das atenções. Foi o suficiente para sairmos do lugar já amigos. Dentre as idas e vindas para nossa mesa, extraí algo mais, o que conto a seguir.

Na internet ele é Mazanga Mazanga, mas me disse se chamar PEDRO, angolano e assim o fizemos desde quando o conhecemos. No Brasil, há cinco anos veio ao país para fazer uma faculdade, dar prosseguimento aos estudos e assim como faz muitos dos seus - diz já ter influenciado uma meia dúzia -, está aqui por causa do boca a boca, um dizendo para o outro das qualidades deste país. "Bauru é bom", nos disse e nos informa que só aqui na cidade já são mais de 60 angolanos, fora de outras nacionalidades africanas. De certa forma se mantém unidos, grupos pelas redes sociais, conversando e fazendo de tudo e mais um pouco para não se ver sozinhos num mundo diferente, hostil e com cultura completamente diferente. Pedro atende durante o dia no Tetê, um local sem especificação definida por este mafuento escrevinhador, mas cujo café é bom e isso nos bastava na tarde de ontem, quando procurávamos um local para conversar após tantos meses distante de lugares públicos. Ganhamos o dia, não só pelo reencontro, como pela possibilidade de travar conhecimento com um algo a mais de um mundo a parte dentro desta insólita e incomum Bauru.

Tempos atrás, Bauru foi palco da presença de muitos latinos, que aqui aportavam via férrea, pelos trens que nos unia até a Bolívia. A cidade fervilhava de latinos e isso dava uma cara diferente para uma provinciana aldeia interiorana. Hoje, com tantas universidades, isso ocorre de outra forma. Ela atrai gente de várias partes do país e também do mundo, principalmente América Central e África, para aqui estudarem e depois até se fixarem. Criaram uma colônia destes aqui no coração bauruense e mais do que perceptível. Vez ou outra trombava com vários destes pela aí. Meses atrás o mesmo ocorreu no Skinão, quando diante uma jovem negra, esguia, cabelos no estilo afro, não resisto e ao vê-la falar, a certeza, africana. Doutra feita, três nicaraguenses conversando numa pizzaria. Quem disse que resisti de ir conversar e saber da origem. Todas universitárias, estudantes de Odontologia. Outras amizades iniciadas no mesmo instante. Com Pedro, algo também instantâneo, imediato e a empatia no jeito como fala de seu país, de como vive e das expectativas de vida num lugar tão distante de sua pátria. Falamos de Brasil, África, racismo e segregacionismo, além das contagiantes histórias dessas corajosas pessoas que saem de um lugar muito distante e vem aportar noutro, movidos por um sonho e cá estão, procurando se integrar, superando obstáculos, enfrentando dragões diários. Existe hoje em Bauru, não perceptível por muitos, um grande agrupamento de estrangeiros, quase todos universitários e estes, assim como os latinos dos tempos da ferrovia, gerando e fomentando algo surreal na cabeça dessa ainda conservadora terra dita e vista como terra "sem limites" (slogan dos tais "forças vivas" que aqui querem mandar no pedaço).

O Pedro, ou Mazanga, ou as duas coisas juntas é figura marcante dentro da colônia e isso ficou perceptível pelo trio que ontem chega ao local buscando um lugar seguro nestes tempos, onde pudesse tomar um simples café e conversar, trocar ideia. Foi impossível fazê-lo sem perceber a presença dele ali ao nosso lado, num lugar predominantemente branco, mas ele não só nos chamou a atenção, como quando se aproximou conseguiu mudar o foco do que ali nos trouxe. Pessoa magnetizante, cheia de luz mais que própria e só pelo que faz, isso de deixar seu país, vindo para uma cidade do outro lado do mundo, indicado por amigos e aqui fincar raízes, ir ficando e já fazendo o mesmo ocorrido com ele, trazendo mais iguais a ele para o mesmo espaço é algo merecedor de, não só essa atenção, como um estudo de caso. Ocorrem muitas histórias dentro dessa insólita Bauru, inimagináveis pela maioria dos seus habitantes. A maioria desses angolanos estudando na Unesp, mas também espalhados por outros núcleos universitários e cada um cavando sua sobrevivências em empregos como o dele e conseguindo espaço, mesmo nas adversidades do momento é também motivo para longa conversa.

Ele trabalha num local onde a maioria das pessoas não o abordam para conversar, saber nada dele e de suas origens, mas simplesmente para que explique algo do novo formato de cardápio proposto pela casa, sem papel e tudo feito pelo aplicativo no celular, wifi acessado e ali na telinha de seu aparelho surge o que a casa oferece. No mais, não é chamado e não acaba se transformando no assunto da mesa, como o foi no nosso caso, onde dois eram de origem negra, os únicos a adentrarem o local naquele dia até aquele horário, além dele, mas ele estava do outro lado do balcão. Foi um café diferente, nessa ainda não transição do anormal para o normal, sem projeção de dias como dantes, mas já com locais abertos e daí, seguindo as normas usuais para frequentar, creio eu, depois de longo tempo sem ver uma mesa de bar, fui contagiado pelo Pedro, seu jeito malemolente e audaz, daí acaba se transformando não só na história do dia, como motivo de pensamentos mil, de como essa cidade ainda possui isso de atração inaudita, com gente do mundo todo dentro de seu território, misturados cada qual ao seu modo e jeito com o que podemos lhes proporcionar. Eu viajo na maionese com essas histórias e as adoro não só vivenciá-las, como poder escrever um bocadinho de tudo isso. 

A história e o jeito de Pedro me fez ontem ganhar o dia e mesmo diante de todos os riscos ocorrido com a saída às ruas, eu com meus 60 anos, grupo de risco, diabetes, consegui extrair algo belo das ruas numa tarde onde só queria colocar conversas em dia. Tem tantos Pedros pela aí, nos fazendo encarar esse mundão doído e despirocado de outras formas e jeitos. Isso não só me arrebata, como me conduz e com estes sou facilmente conduzido para fora de uma dura realidade, a do meu mundinho. Conhecer o dos outros me inebria.

POR TELEFONE
01 - Izaias Silva foi meu inquilino lá num cortiço que mantenho muito bem empoeirado ao lado do Mafuá, hoje em situação de penúria - pudera, após 6 meses de quase abandono. Moço novo, nordestino de boa cepa e muita conversa. Muito requisitado, primeiro por saber muito bem fazer seu ofício, vender de porta em porta, cidade em cidade, de forma autônoma e como bem manda o figurino dos antigos caixeiros viajantes. Ele chega numa cidadezinha, ele e mais outros, estacionam o carro e revendem para os que lhe atendem, cestas básicas. Fazia isso antes da pandemia, mas com o agravamento da coisa, além de não parar, vislumbrou que podia se dar ainda melhor. E se deu, pois com as pessoas mais em casa, comprar diretamente de quem vem trazer o que necessita no próprio portão, tudo de bom. Quando muitos pararam, ele girou mais, se arriscou mais e soube ir se safando mais do que a maioria dos na rua da amargura. Menino ousado, talentoso e com carinha de anjo, sabe chegar nos lugares e conquistar não só fregueses, como corações. Faz das suas, mas está quieto, me diz apaixonado. Liga para me consultar de algo. Quer bolar algo para trabalhar nos sábados e domingos, quando deixa de viajar no outro serviço. Ou seja, pegou gosto pelo tal do porta em porta e só não conto aqui o que está a bolar, pois se o fizer, posso até estragar o que virá pela frente. No mais, desde que saiu lá da casa onde era meu inquilino, diz se preocupar com o lugar e esses dias recebeu várias ligações do pessoal cobrador da CPFL sobre parcelas em atraso do atual inquilino. Sua preocupação foi o anúncio que a CPFL faz por estes dias, mesmo com a pandemia em curso de que pode cortar a luz de mais de 4 mil casas por inadimplência. Liga e do seu jeito, sendo ele quem me indicou quem lhe ocupou o lugar me diz: "Se eles precisarem de minha ajuda, eu dou, pois sei que a coisa não está fácil pra ninguém". Mandei a ele via telefone um baita abracito do tamanho do mundo, pois foi como lhe disse, se todos fossem iguais a ele, as coisas seriam bem outras neste país. Izaías é mais que um bom menino, além de contumaz galanteador. Desses que vale a pena a gente conhecer.

02. Ilda Viegas é jornaleira e resiste como pode com sua banca aberta lá pelos lados do original aeroporto bauruense, hoje chamado também de Aeroclube. Não possui facebook, o que lhe facilita a vida e inviabiliza perda de tempo com futilidades e disques disques. Sua banca é ponto de encontro de gente que, passa por ali, primeiro para bater papo, depois para ver como está a coisa com ele, oferecer ajuda e ver de como fazer para aquele ponto comercial não fechar. São muitos envolvidos nessa questão em algo arrebatador e quase único. Ela resiste, insiste e persiste ao seu modo e jeito, sem variar muito, com o que fez quase uma vida inteira, acoplando hoje café, alguma coisa de bomboniere e outras coisinhas, como carvão, loterias e algum salgado. Conheço muitos que batem cartão só para poder desfrutar por algum tempo ao seu lado, tipo um recarregamento de energias. Aurélio Fernandes Alonso, jornalista aposentado um destes. Eu hoje fiz o mesmo. Ela me liga logo cedo para avisar que a única revista que continuo comprando em sua banca, a mensal Piauí havia chegado (e tem carta minha publicada nesta edição). Diz que pode me entregar quando fechar a banca, agora mais cendo, tipo 14h. Digo que não, que preciso vê-la e assim o faço. Escapo rapidinho e lá permaneço por uns 15 minutos na hora do almoço, só para poder desfrutar de um tete a tete, saber das últimas e também me recarregar. Pessoas positivas são mais que necessárias na vida da gente e Ilda uma dessas. Sei que o que mantém viva ali naquele quase deserto local é o seu jeito, pois ainda existe uma pequena legião de compradores de revistas e jornais, que fazem de tudo para ali continuarem frequentando, só pra poder vê-la e assim não presenciar mais um ponto definitivamente fechado. Falamos do assunto do momento, as tantas mortes, algumas muito próximas de todos nós, mas no caso dela, sem poder desistir de continuar seguindo sua rotina de trabalho e de vida. Saio de lá com a Piauí debaixo do braço, cheio de boas histórias na mente e com essa certeza tiritando na minha mente: essa menina é uma das tantas imprescindíveis destas plagas e mesmo sem o saber ela faz com que muitas vidas perdidas num mundo, com dinheiro, mas sem rumo, obtenham ao lado dela algum alento para continuarem existindo.

03 - Cleide Souza é mineira lá dos cafundós do interiorzão daquela montanhosa terra. Veio primeiro para Bariri, seguindo irmãos que ali já moravam e trabalhou ali por um período. Izaías, já citado hoje pro aqui, a trouxe para Bauru, onde a abrigou até ela arrumar emprego. Trabalhou em sorveteria, lanchonete e pizzaria, até chegar a pandemia e os patrões a despedirem. Já era minha inquilina, gente muito boa, morava com a irmã e essa também se foi, deixando-a só aqui na terra sem limites. Tenta me pagar como pode e vamos nos ajeitando, enfim ao ter a certeza estar diante de pessoa da melhor estirpe, a gente vai se ajeitando. Para não ficar aqui só, voltou pra Bariri, lá tem as irmãs e consegue alguns bicos, que somados ao Auxílio Emergencial, a fazem tocar a vida por estes tempos, trancos e barrancos, mas sempre cheia de esperança. Liga pra contar ter sofrido um ato de racismo lá onde trabalha, um cliente morto de fome, não consegue esperar pela sua vez e ataca a "negrinha", como sendo ela a culpada por todas as desgraças do mundo. Ela desaba e me conta de que patrão nenhum fica ao lado do ofendido, pois tem medo de perder clientes e assim ela se vê humilhada e precisa desabafar. Suas histórias são todas assim com dinheiro mais que contado, sem quase nenhum lazer, mas resistindo não só estes tempos, como as investidas dos que a querem para outras finalidades. Gosto demais das que resistem e assim se mostram mais fortes. Como deixar de ouvir o que tem pra me contar? Não consigo, paro a limpeza que faço da casa hoje pela metade, encosto e desligo o aspirador de pó e me ponho a escutar seu relato. E depois me ponho a escrever as três histórias oriundas de telefonemas. Tenho que parar, pois a casa continua suja e dentro da distribuição das tarefas aqui determinadas, o trampo mais pesado ficou a meu encargo. Não reclamo, obedeço. Tchau!

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