O danado não só resiste, como está mais do que consolidado como uma das efetivas atrações cariocas. Sua livraria é point, é lugar de descanso, solidariedade e reencontro de gente bamba. Ele mesmo e sua mãe, Maria Helena Ferrari, também minha amiga, conseguiram juntar o fazer algo prazeroso, com um empreendimento comercial que, além de marcar época, já está escrito no imaginário brasileiro, como um destes lugares mais que iluminados. Impossível passar por lá e não ficar embasbacado, boca aberta para o que se vê por ali, desde os livros, como os CDs, tudo com a cara do Rio. Nesta passagem, digo para o simpático atendente, seis anos de Folha seca, que Rodrigo prercisa dar um jeito de mandar fazer pra revender as imagens dos criolos sambistas, feitas em barro ali sob o seu balcão. Queria levar um destes para minha estante mafuente e só não despistei o atendente e dei meu jeito de levar uma, pela amizade e consideração que sempre tive com o dono do estabelecimento. Já se estivesse sendo vendido, levaria vários. Ali, sem medo de ser feliz, Rodrigo mantém espalhados pelo lugar vários adesivos lembrando a campanha de Lula no retorno à presidência, ou seja, o lugar é democrático já na sua essência e não tem nenhum pudor - e por que deveria ter? - em esconder suas preferências, enfim a da maioria dos seus frequentadores.
Ficaria horas e horas relembrando todas as vezes em que voltei ao Rio, desde os áureos tempos quando ia lá, semana sim, semana não, para atuar vendendo minhas chancelas e, em quase todas, batendo cartão, retorno quase obrigatório na livraria. Acompanhei todo o desenrolar dos seus 25 anos, mesmo muito à distância, pois entre Bauru e o Rio de Janeiro, lá estão 850 km de pernada. Em cada retorno, pelo menos um livro ou CD. Desta feita, trago algo do melhor escritor destes tempos, entendendo tudo de Rio de Janeiro e de suas embaralhadas conexões com a magia dos terreiros umbandistas, Luiz Carlos Simas, in "O corpo encantado das ruas", fazendo uma boníssima analogia entre o que se vê hoje e o que via João do Rio, quando do século passado, no seu imortal "A alma encantadora das ruas". Tudo está mais do que entrelaçado, Simas, Rodrigo, a Folha Seca e a rua do Ouvidor. Esse cantinho do Rio é meu recarregador de baterias. Tomar uma cerveja gelada no meio do que antes era a rua, sentado bem defronte a livraria e ver de perto gente como o Cássio Loredano, rei do traço fino é algo onde fico "sem palavras" para descrever o que me traz ded júbilo e contentamento. Falei e continuarei falando muito desta livraria para todos os que, como eu, caipiras do interior paulista, aportamos no Rio. Quem vem e não teve o prazer de adentrar a livraria e bebericar algo defronte o estabelecimento, não conhece o Rio de verdade.
Volto ao Rio, fico sabendo que Rui está se restabelecendo de uma delicada cirurgia - já tudo muito bem com ele - e vou fazer uma visita em seu apartamento, justamente na rua Gomes Freira, poucos mestros depois do Largo da Lapa. Não podia estar melhor instalado, numa deliciosa muvuca carioca. Aposentado, trabalhando muito menos que hoje, mas tocando a vida ao lado da admirável Fernanda - digo ter ele ganho na loteria ao encontrar parceira tão jovem e formando lindo casal -, mora no terceiro andar de um prédio, que quando janelas abertas, assiste tudo o que rola ali embaixo de camarote. E ali, como se sabe, acontece de tudo e mais um pouco, desde sambas até facadas.
Rui é homem das ruas, das quebradas, das andanças pelas ruas, sempre empunhando sua máquina fotográfica e tendo seu trabalhos expostos e publicados pela aí. Ganho dele um lindo embornal, com reprodução de foto sua, com assinatura e tudo, além de revista sobre a história da Portela. Ele me mostra seus trabalhos, o de seu irmão, faz um café pra gente e juntos ficamos tempo na janela, vendo como a coisa se passa por ali, ele me contando particularidades de todos, conhecidos seus. Este canto do Rio, coração da Lapa é inebriante, efervecente e contagioso, pois quem, como eu, por aqui, passa acaba querendo ficar e se estabelecer. Muviucas deste tipo são magnetizantes na vida de qualquer pobre mortal interiorano, pois quando toma conhecimento que isso ali acontecendo ainda é possível, já quer mudar de mala e cuia. Rui vive neste lugar e está feliz da vida. O vejo corado, quase pronto para voltar a ativa, agora mais de leve, sem grandes envolvimentos, pois depois de muitos quilômetros rodados, nada como pegar tudo mais de leve. Ele sabe disso e pratica tudo dentro do ainda permitido, primeiro pelo corpo, depois pelos contidos e incontidos desejos internos. Este gaúcho carioca é maravilhoso, até porque, pouco antes de bater em retirada me diz ao pé do ouvido: "Henrique, sua visita foi uma das coisas melhores que me aconteceram aqui desde a cirurgia. Volte sempre". Mal sabe ele que já queria ficar.
Ainda não tive o prazer de conhecer sua nova morada, mas já convidado, comparecerei em breve, talvez aportando por alguns dias - não mais que no máximo uns três, para a permanência não começar a cheirar peixe podre. Estava na casa do Rui Zilnet, na baixada de Santa Teresa e pedi para o André descer e nos encontrarmos na parte baixa. Marcamos num botequim bem na encruzilahada das ruas Gomes Freire com Riachuelo, a que desce lá dos altos da Lapa, bairro de Fátima pra baixo. Ele desceu e matamos saudade, além de derrubar duas loiras estupidamente geladas. Me dizia ter uma lembrança para Ana Bia e me entrega, um quadrinho, com foto dela ekedji do candomblé, tempos áureos de quando produziu sua dissertação de mestrado, versando sobre a magia deste lado carioca de ser e estar.
Sempre muito bom rever gente com o bom astral do André, parceiro bom de papo e de conversações cariocas. Ele é do tipo malandro, típico de quem vivencia tudo com aquele jeito malemolente, esperto, sem ser chato, muito menos deselegante ou mesmo fora do tom. O danado é bamba, sabendo como tocar a vida dentro de uma cidade sempre a oferecer maravilhas mil e ele, que de bobo não tem nada, sabe delas se aproveitar e tirar o máximo de proveito. Só de saber, ele também gostar da Lapa e Santa Teresa, a melhor das impressões, pois quem admira lugares como estes, só poder ser gente mais do que boa. Andrezão é destes que, sempre tem algo a mais para me contar, lugares nunca dantes conhecidos deste Rio e só possível mesmo para nativos com envolvimentos dos mais desabridos. Sempre uma boa conversa com gente assim, mente arejada e dos mestres do Design, atuando dentro de uma perspetiva altiva, sempre enxergando nas possibilidades altaneiras do campo democrático para este país. De lá, volto para minhas andanças, mas olhando ele adentrar as vielas para subida até sua casa, confesso, bete aquela vontade irrefreável de sair correndo atrás dele e pedir encarecidamente: "Deixa ir junto?".
A convido para perambular comigo pelo Saara, fazendo comprinhas, todas encomendadas por Ana Bia, primeiro por um motivo bem óvio, ela conhece aquelas ruelinhas como nenhuma outra. Sabe de cor e salteado o nome das ruas e até o endereço de algumas lojas, antes quase todas de libaneses e hoje, com o advento dessa tal de globalização, reduto sendo dominado por chineses e coreanos. O lugar, pelo menos para mim é mais oxigenado que a famosa rua paulistana, a 25 de Março. Gosto mais do Saara e das vindas ao Rio, sempre que posso, uma passadinha por lá. Passo mais por lá do que frequento praias no Rio. A vantagem é que a maioria dos sebos estão em sua maioria todos localizados no centro velho carioca, muito perto do Saara, daí, saio de um e adentro outro. Tudo meio que junto e misturado.
Angélica e eu batemos muita perna nessa sexta, pouco antes do almoço, depois almoçamos quase defronte onde um dia foi a sede da CBF, para depois, voltar a ruar, só que do outro lado do fervo, lá pelos lados da avenida Rio Branco. Foi quando algo aconteceu e modificou todo o cenário do centro da cidade. Bombas começaram a pipocar e fumaça subindo pelos ares. Quando nos demos conta muitos comerciantes, a maioria deles já estavam, escolados que são, baixando suas portas. Nada daquilo nos amedrontou, mas amedronta os comerciantes, pois quebra quebra sempre resulta em prejuízos. Contornamos o problema e nos instalamos no primeiro andar de um Mc Donald's - enfim achamos uma utilidade prática para estes - e de lá, olhando tudo de cima, ficamos a observar a movimentação. Ela até queria me mostrar um busto da Marielle que havia sido inaugurado recentemente ali na praça, mas acabamos esquecendo, diante do que víamos pelo janelão. Camelôs são gente escolada, esperta e rápidos. Diante do perigo, amontoam tudo e somem na curva, sem deixar rastros. Não sabemos como tudo começou, nem dos motivos, mas deu para perceber ser algo contra estes, os que tentam ganhar a vida vendendo quinquilharias espalhadas pelas calçadas. Aproveitamos, é claro, para tomar um belo de um sorvete ali no Mc's. De lá, ainda rodamos um bocado, ela me contando algo mais da família Pereira, a de Ana Bia e de como anda, segundo sua visão, os novos tempos do Rio de Janeiro. Angélica tem tudo pronto e se der certo, embarca novamente para mais uma estadia em Portugal, lugar onde vai para esquecer de problemas, rever o filho e se recarregar. Tem casa por lá e vez ou outra precisa ir ver como anda sua propriedade. Une o útil ao agradável. Volto carregado de pequenas quinquilharias, tudo proporcionado pelas escolhas desta intrépida descendente direta de portugueses. Uma delícia andarilhar com quem conhece os meandros de uma grande cidade. Essa é catedrática no assunto.
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