sábado, 7 de outubro de 2023

OS QUE FAZEM FALTA e OS QUE SOBRARAM (179)


REVIVENDO O CINE CLUBE E A BOA E NECESSÁRIA DISCUSSÃO HISTÓRICA E POLÍTICA
No começo da noite, me junto a aproximadamente 50 pessoas no Armazém do Campo, a loja local do MST, onde acontece mais um "Cinema na Terra", coordenado pelo advogado e amigo Arthur Monteiro Junior. Nesta noite um filme sendo exibido por lá, o "Que bom te ver viva", da cineasta e ativista social Lucia Murat, com muitas mulheres, todas participantes da luta armada no período da ditadura militar e a narração e condução da trama pela atriz Irene Ravache.

Foi uma noite, para mim mais do que especial, utilizada para reviver algo de grande monta, ocorrência trivial de décadas atrás em Bauru, o advento do "Cine Clube". Enquanto o filme passava no telão no centro da loja, outro era revivido em minha cabeça, juntamente com os depoimentos sendo ali passados, algo pelo qual estava sentindo muito falta, isso de assistir um filme junto de gente querida e logo após, um debate. Décadas atrás, mais precisamente no antigo Cine Capri, na rua Primeiro de Agosto, em sessões, em sua maioria ocorrendo a meia noite, filmes ditos como cults, com ótima frequência e depois, acalorados debates.

O filme da Murat é de 1989 e foi todo construído e realizado com depoimentos de mulheres, em sua totalidade tendo sido torturadas pelos algozes de 1964, quando os militares brasileiros estavam no comando da nação. Nos relatos, algo do vivenciado de forma pessoal e das causas e efeitos quando soltas, perdurando, muitas vezes para um vida toda. Com o término do filme, Arthur Monteiro Junior, o idealizador do projeto, faz um breve apanhado da situação na época, contestualizando os acontecimentos. Ele é muito bom nisso e sem roteiro preparado, fala de improviso, conta o que sabe, sua visão dos fatos e, diante de seu envolvimento e estudo, sempre sai algo muito valoroso.

Na sequência, a socióloga Maria Cecília Campos junta os depoimentos do filme com o seu. Conta sua passagem pela PUC na rua Maria Antonia, com sua participação no que estava em curso. Num certo momento, diante do que viu no filme, disse: "Tem momentos em que, não sei dos motivos de não ter sido presa e também torturada, pois vi gente sendo feita por panfletear e fiz muito mais que isso. Uns escaparam, fui uma destas". E finalizando Milton Dota, conta algo mais de sua passagem pelo famoso Congresso Estudantil de Ibiúna, quando foi preso. Ele faz uma analogia interessante sobre dos motivos que levaram aquele Congresso ocorrer naquele momento, das imensas possibilidades de ser descoberto, como o foi e da união que se faz necessária hoje para enfrentar tudo o que está em curso e virá pela frente. Dos erros e acertos do passado, se constrói o presente, se pensa também no futuro, pois a luta é contínua, sem tréguas. Bom demais ouvir isso e ir notando o semblante de todos os presentes, nos fazendo pensar e de como tocar o barco daqui por diante.

Tanto o tema do filme, como as discussões feitas a seguir, sendo iniciadas com uma fala sobre a eleição do Conselho Tutelar em Bauru, ocorrendo aqui em novembro, são algo mais do que necessários, primeiro para convergir boas discussões na cidade. Muitos dos vários presentes são atuantes em várias manifestações ocorrendo na cidade neste momento, como mais uma panfletagem que irá ocorrer amanhã, domingo, por volta das 10, na feira dominical do jardim Bela Vista, contra a privatização da água. Juntando tudo, o tema do filme, a atenção de todos para o debate a seguir, a colocação bem marcante e necessária sobre o engajamento para enfrentar a armação ilimitada na eleição do Conselho Tutelar, a iminente privatização da água em Bauru e todos ali, querendo se mostrar não só úteis, mas dentro da luta. Isso me move e, tenho a certeza, movia todos os presentes. Ou seja, não saímos da eterna luta. Estamos aqui para isso.


DE ONDE VEM A BARBÁRIE?*
* Eis meu 128º artigo para coluna no semanário DEBATE, de Santa Cruz do Rio Pardo, edição pipocando hoje pela aí:

Ricos sempre existiram e existirão na face da Terra. Aqui no Brasil vigorou por quase toda sua existência a máxima de que, os ricos são o sustentáculo desta nobre nação e os pobres vivem destes. Muito simplista essa definição. O que existe de fato é um secular processo de inferiorização de uma classe social e a elevação aos píncaros da glória de outra. Razões históricas envolvidas na questão. Tento explicar algo em poucas palavras. Na verdade, nós brasileiros inventamos um sistema altamente rentável, perfeito para os do topo da pirâmide e massacrante para quem a sustenta nos ombros.

Começamos com os ciclos do açúcar, ouro e depois o café, com PIB prodigioso, empreendimentos formidáveis, mas só para os do lado de cima da vida. Desde os primórdios desta nação, a classe dominante, dita e vista como a promotora da prosperidade conseguiu realizar verdadeiras façanhas com sua extraordinária habilidade. Fez isso sem pestanejar, assim como, enfrentou e venceu todas as tentativas de revoluções sociais desencadeadas no país. Na qualidade de historiador, confesso, rendo homenagens a estes, escrevinhadores de nossa história, pois ao longo delas, aprendi nos bancos escolares que aquilo tudo eram meros motins e nada de intensa luta social.

Ou seja, a classe dominante brasileira, soube ao longo do tempo, com sabedoria crescente, dirimir os embates, colocando-os num casulo fechado e tratando tudo com o intuito de preservar seus interesses. Desta forma, puderam legar e manter a exuberância de suas vidas. Isso vem de longe, desde a cordata mucama que nos amamentaria de leite e ternura, sem nada de contestar pela sua situação. A façanha educacional da classe dominante brasileira é de grande monta, muito resolutiva, pois conseguiu manter o povo xucro, ignorante e sem entender direito o que lhe acontece.
Educação é coisa mais do que séria e quando feita por quem de fato deseja fazê-lo sem amarras, ela transforma o cidadão de subserviente, a entendedor de tudo, daí, não só questiona como exige o seu quinhão. Porém, vigorou e tentam dar continuidade em algo dignificando a “santa ignorância popular”. Olho para estes verde-amarelos de hoje e os endinheirados que mantiveram os acampamentos diante dos quartéis, promovendo churrascos para incautos circulando por ali e tenho a mais absoluta certeza, estes acham uma inutilidade ensinar o povo a ler, escrever, sem jamais, revelar o intuito. Daí, para demonizar o educador Paulo Freire um pulo. Isso foi e continua sendo feito.

A ignorância popular precisa ser mantida a todo custo, pois do contrário o castelo de areia rui. Denomino isso de astúcia e isso vem se materializando, sendo repetida ao longo da história deste país. Alguém em sã consciência acredita que, se povo soubesse o que de fato está acontecendo deixaria Bolsonaro nos governar por quatro intermináveis anos? Jogo isso tudo para os dias de hoje e constato da insanidade que é o dono do dinheiro não querer pagar impostos – hoje o das grandes fortunas - e continuar flanando, usando de forte lobby, falar grosso, usar de sua força e influência, permanecendo no topo, pouco se lixando para os de baixo. Darcy Ribeiro, meu antropólogo mestre, inspirador deste texto, profetizou: “a crise educacional deste País, não é uma crise e sim, um programa”. Do contrário, a ignorância já teria sido erradicada. Ele usava uma palavra chave para tudo, “desenclaustrar” o Brasil. Nossa classe mais abastada quer e prega exatamente o contrário.
Henrique Perazzi de Aquino, jornalista e professor de História (www.mafuadohpa.blogspot.com).

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