quarta-feira, 14 de agosto de 2013

MEMÓRIA ORAL (146) e RELATOS PORTENHOS (01)


EXPERIÊNCIAS CARIOCAS COMPARTILHADAS EM BUENOS AIRES
Imaginem a cena. O caso eu conto como se sucedeu. Um famoso Congresso Internacional de Design, na Faculdade de Design e Comunicação, promovido pela Universidade de Palermo (www.palermo.edu/encuentro), Buenos Aires, final de julho de 2013 e ali representantes das mais diferentes Universidades de toda a América Latina. Desde o México até o país que os recebe. Designers renomados falando em espanhol e em português. Trabalhos expostos em salas variadas, apresentações individuais, feitas com ajuda de toda a tecnologia ou na força do gogó, atraindo a atenção de interessados de todas as etnias e dentro de um universo de possibilidades. Uma delas sai do trivial e apresenta algo novo, inusitado até então. É disso que trato a seguir.

O trabalho tem o título: “Formação profissional para o mundo real: vivências e experiências”. Até aí nada demais. No seu parágrafo de apresentação extraio isso: “Colocam-se em cena vivências e experiências de quatro designers egressos de formação em Design voltadas para o mercado de trabalho. Em comum, todos tinham um sonho. Tiveram a oportunidade de estudos em Curso de nível superior com curta duração. A proposta pedagógica multidisciplinar e a integração da equipe docente proporcionou o início de trajetórias diversas. Tempos depois, é possível observar e relatar o caminho desses profissionais que reconhecem o Curso como tendo sido fundamental”. Tudo sem novidades, mas a partir daí o algo novo.

Todos os ex-estudantes são oriundos de comunidades dos ditos excluídos: três meninos e uma menina (assim os tratam as professoras), criados nos subúrbios e favelas da cidade do Rio de Janeiro. Foram os primeiros dentre suas famílias a terem a oportunidade de concluírem um curso superior. Daí em diante, olhos e ouvidos ficam mais atentos. Vamos aos detalhes. Duas professoras cariocas, Ana Beatriz Pereira de Andrade e Ana Maria Rebello durante boa parte de suas vidas acadêmicas atuaram no então revolucionário curso, pioneiro em Design Gráfico numa universidade privada no Rio de Janeiro, com formação voltada para o mercado de trabalho, nível Graduação Tecnológica, com duração de dois anos. Inicialmente, a equipe docente e o Curso foram vistos com maus olhos pela "Academia". “O diferencial do curso era a equipe docente e as questões coletivas. Todos os professores relacionados com o Design e mestres e doutores. Pelo baixo custo, eram atraídas pessoas de pouco poder aquisitivo, quase sem esperanças de cursarem nível superior. Dali saíram profissionais diferenciados, não só preparados para enfrentar o mercado de trabalho, mas possuidores de uma ímpar sensibilidade, pelo muito trazido embutido dentro de si, suas experiências individuais”, relata a professora Ana Bia.

Isso por si só já é algo interessante. O inusitado foi a movimentação feita por ambas as professoras para que quatro desses ex-alunos pudessem viajar até Buenos Aires e junto delas exporem suas experiências. Isso foi feito com certa antecedência, todos já atuando no mercado carioca, pagaram suas despesas e lá se apresentaram junto de uma das professoras, Ana Bia Andrade. Numa manhã de terça, final de julho, em uma sala da Universidade de Palermo. Cinco trabalhos marcados para serem apresentados naquele local e período, reservado para cada exposição meros vinte minutos. Foi quando os presentes se deram conta do que estava por vir. Daí aquebrantou-se a rigidez no horário e a exposição deles se estendem por uma hora, divididos em apaixonadas falas. Ana Bia faz uma curta apresentação do proposto e deixa o espaço quase todo para seus ex-alunos.

Quem dá o pontapé inicial é Alexandre Magalhães, que de cara diz: “O estudo universitário era visto como um luxo, distante de ser realizado por pessoas com origem tão humilde. Meu pai dizia que poderia garantir até o segundo grau, depois seria de nossa responsabilidade estudar e nos manter na universidade. Mesmo assim, fui incentivado profissionalmente por eles nas minhas escolhas artísticas. Antes de ingressar na universidade eu já trabalhava, de forma primitiva, com programação visual. Exercia a técnica, mas não sabia aplicar o conceito”. Vai expondo tudo que fez, como fez, em que condições até chegar ao momento atual. Trajetória vitoriosa, onde após trabalhar em Assistência de Direção de Artes em filmes nacionais, hoje atua como membro na Direção de Arte em novelas da Rede Globo de Televisão. Porém, continua o mesmo meninão sensível e cheio de planos de compartilhamento social.

Na sequência quem fala para os atentos expectadores na sala é o casal Monnerat, Renata e Christian. Se conheceram no Curso e daí por diante tocam uma intensa vida em comum. Um completando o outro no segmento profissional que escolheram. “Eu sou a única pessoa da minha família a se formar e encontrei muita resistência por parte do meu pai. O processo foi muito complicado, passando por tentativas de me persuadir a desistir da faculdade, até o ponto de não poder sequer tocar no assunto com meu pai. Ele pai nunca viu minha profissão como algo sério”, diz Christian. “Meus pais, embora não possuíssem sequer o ensino fundamental completo, sempre me apoiaram e me incentivaram a estudar. Eles não entendiam muito bem o que eu estava fazendo, mas sempre me passaram uma certeza de que desde que eu continuasse estudando ficaria tudo bem. Sempre escutei em casa: estuda para conseguir um bom emprego, ou estudar não ocupa espaço, estudar nunca é demais. Isso foi essencial para eu me manter firme e continuar sempre buscando o conhecimento”, começa Renata. O salto de ambos foi após a conclusão, uniram forças em todos os sentidos. Abriram um negócio juntos, um escritório de Design voltado para o mercado editorial, mais especificamente livros para profissionais, ela com a parte do texto, por ser também jornalista e ele entrando com o desenho, a parte de imagem. E assim a Design Monnerat, com seu curto tempo de vida já concorreu diversas vezes ao Prêmio Jabuti, um dos mais conceituados no setor.

Fechando as apresentações o dono da voz é Felipe Carvalho, com seu chapéu de malandro carioca. O único até hoje morando no mesmo lugar dos tempos dos bancos escolares, a comunidade do Morro da Conceição, nas cercanias da Praça Mauá, famosa zona portuária. “Na minha família sou o primeiro a fazer e concluir uma faculdade. Dois anos antes da escolha, havia conhecido um designer que muito me influenciou na escolha. Por tudo que ele já executava, verifiquei que havia muitos itens com que me identificava. Quando adolescente, havia feito cursos de desenho, escultura em cerâmica e fotografia. Deparar-me com uma profissão em que era possível desenvolver isso foi incrível. Depois de formado atuei em alguns setores do Design, como em games, cinema, impressos e hoje atuo em moda. Toda essa bagagem e convivência com outros profissionais me permitiram um processo criativo mais amplo. Hoje sou um dos desenvolvedores principais de estamparia em moda de uma conhecida marca no Rio de Janeiro e Brasil, a TACO".  Felipe aproveita os fins de semana para retribuir em projetos sociais, passando para a frente o que aprendeu e incentivando outros a seguirem pelo mesmo caminho. Na novela das oito, passando agora na TV, lá está Felipe grafitando paredes em várias cenas, como se fossem obras do ator.

A professora deu um pequeno fecho no final das falas, mas o vibrante mesmo foi após todos assentarem um pouco a poeira da emoção pela estreia internacional, ouvirem o restante das apresentações e por fim, no debate serem o foco maior das atenções e questionamentos. A troca de experiências, a riqueza de estarem podendo usufruir da riqueza advinda de suas próprias vidas. Vidas essas sofrendo uma transformação da água para o vinho, com um leque novo de opções após a conclusão do Curso. E, mais que isso, a percepção de todos na sala, por nenhum deles terem mudado de lado. Não renegam nada do passado e querem mais é interagir com o mesmo. Nesse momento cada um pode novamente descrever um algo mais da vivência que tiveram.
Na saída, reencontros maravilhosos, além do deles mesmos. Experiência impar, o contato com outros professores do Curso, todos importantes na formação de cada um. Estavam lá no evento e foram prestigiar os ex-alunos, André Ramos - hoje UFRJ, José Guilherme Santa Rosa - hoje UFRN e Lúcia Acar - hoje Instituto Zuzu Angel e também Lucy Niemeyer, que todos só conheciam pelos livros da área. Uniram-se ao festivo grupo, além de outros alunos latino-americanos, dois professores em Design da FAAC/UNESP, Fernanda Henriques e Tomas Barata. Já na calçada, um professor equatoriano, Andres Rivadeneira Toledo não satisfeito com tudo o que presenciou, arrastou a todos pelas ruas de Palermo a procura de um restaurante, onde a conversa pudesse se prolongar. O grupo seguiu animado, rindo pelas ruas, propiciando a todos uma tarde inesquecível. Tanto que, para espanto dos proprietários do dito restaurante, o grupo parecia não querer se dissolver, prolongando-se até não mais poder. Todos cheios de novas histórias e prontos para novas aventuras. A provocação sugerida pelo encontro deverá frutificar em breve.


Obs final: A tal professora Ana Bia Andrade, sou obrigado a confessar, trata-se da cara metade desse modesto escriba. Envolvi-me tanto com o presenciado, que não descansei enquanto não despejei para o papel esse emocionado relato.

7 comentários:

Anônimo disse...

Henrique
Não me surpreendo c/vc. Excelente este s/artigo. Estou devendo a vc um encontro em nome da Comissão da Verdade de Bauru, mas é q o tempo anda escasso. Porém, entretanto, contudo e outras conjunções coordenativas adversativas, não me esqueci desse compromisso. Abraços e continue nessa s/linha...
Carlos Roberto Pittoli

Anônimo disse...

Lindo texto Henrique!
Felipe Carvalho - Rio

Anônimo disse...

Henrique

Não se deixe iludir, os cursos preparam para o mercado de trabalho, excludente como tudo nesse mundo onde vivemos, mas quando as cabeças dos que nele adentram são boas e não se desviam do foco inicial, ou seja, continuam olhando para suas raízes, suas origens, mesmo inseridos dentro de empresas com forte apego de poder constituído, esses não mudam e até tentam inserir novas idéias, oxigená-las. Percebo que o enfoque do seu texto é esse e isso é o lado humano que deve existir nos cursos de hoje.

André Ramos

Anônimo disse...

infelizmente este olhar humano está em extinção neste tipo de curso. ressaltamos a nossa experiência que foi ímpar. sobretudo devido a uma equipe docente apaixonada. nós que lá estivemos vimos o quanto foi importante para os "meus meninos e meninas" vivenciar a coroação da experiência deles - a primeira - em um congresso internacional. o que mais os impulsiona para uma possibilidade de continuidade de estudos. e, na prática profissional a gente às vezes não consegue fazer estas duas coisas ao mesmo tempo. no entanto, mesmo nos projetos profissionais que os mesmos tem desenvolvido, fica clara a preocupação com os conceitos. o mais importante em um projeto de design. eles não se tornaram tarefeiros e vendidos neste mercado tão competitivo, mas pensadores sim !. e, sobretudo os olhinhos brilhando frente as exposições e acervos de museus aos quais tiveram acesso só deram a nós professores um certo orgulho do dever cumprido. naquele momento em uma ies privada. algo que estamos a cada dia batalhando para manter - digo este espírito - nas pública. acredito no ensino, na esperança e creio no design. ainda há professores que mantém este sentimento de humanidade acima das dificuldades do percurso. e, a equipe durou dez anos e não dez minutos ou dez dias.
ana bia andrade

Anônimo disse...

reproduzo aqui um credo ao design proferido por uma professora homeageada em palermo-buenos aires por trajetória acadêmica. o qual "professo". sem medo de estar e continuar a ser feliz. ana bia andrade
26 de julio de 2013
Universidad de Palermo, Argentina
Ante un privilegio como éste, sólo hay una palabra: gratitud.
El diseño ha sido la entelequia que ha guiado mi vida como docente, investigadora, escritora, diseñadora y artista visual, porque como Diógenes y con la luz de mi entendimiento, busco discernir la creación, lo divino de lo humano que define el diseño, por ello comparto con ustedes un texto que respondió a la pregunta qué significa para mi esta vocación, surgiendo el “Credo del Diseño”:
“Yo diseñadora, confieso ante todos ustedes que creo en las infinitas composiciones de la forma, la tipografía y el color… en el diseño, para el diseño y con el diseño, por la imaginación y la creación, para beneficio de quienes sabemos que diseñar es… siempre mucho más.
Creo en la visión todopoderosa, fundadora del universo del diseño.
Creo en el concepto y luego en la imagen concebida como diseño por obra del sentido, nacida del mensaje, que padece el poder del tiempo y del espacio; interpretada, dirigida y significada, que desciende de los bocetos y luego emerge en un diseño, impresiona las retinas de muchos, y queda a merced del recuerdo, y de ahí ha de retornar como reflexión o motivo para determinar acciones y empeños…
Creo en lo diseñado, y en el cautivador oficio de diseñar, en la comunicación de los signos organizados, en la indulgencia de los sentidos excedidos y en su renovación perenne…”
Los elogios, los empeños de mis alumnos, exalumnos y colegas, la presencia de ustedes y el honor que implica este premio me obligan a sostener las palabras prestadas de Pablo Neruda:
“Queda prohibido levantarme un día sin saber qué hacer, no luchar por lo que quiero, abandonarlo por miedo, no convertir en realidad mis sueños…
Queda prohibido no demostrar mi amor, dejar a mis amigos, fingir que las personas no me importan, olvidar a toda la gente que me quiere…
Queda prohibido no hacer las cosas por mí misma, no hacer mi destino, tener miedo a la vida y a sus compromisos, no vivir la vida como si fuera un último suspiro…
Queda prohibido no crear mi historia y no pensar que podemos ser mejores…”
Gracias a la Universidad de Palermo,
Gracias a todos ustedes, Muchas Gracias.
Luz del Carmen Vilchis Esquivel

Alexandre Magalhães disse...

Lindo texto, excelentes observações! Obrigado por participar de um grande momento de nossas vidas Henrique!

Anônimo disse...

Me emocionei ao ver que a história falava de queridos amigos de curso. Como é bom ver que estão trilhando um caminho em que seus esforços e talentos são reconhecidos! Parabéns!
Eliane Ceccon