domingo, 25 de agosto de 2013

RELATOS PORTENHOS (05)


DUAS DISTINTAS ARTISTAS DA FEIRA DE SAN TELMO
Essas duas personagens, encantadoras pessoas merecem um texto juntas, unindo suas histórias de vida. E o faço hoje por dois simbólicos motivos. O primeiro deles é que hoje, domingo, temos a nossa FEIRA DO ROLO, a qual gosto muito e lá em Buenos Aires, todo domingo ocorre no bairro do mesmo nome a famosa e tradicional FEIRA DE SAN TELMO, ocupando uma extensão de aproximadamente umas vinte quadras, todas repletas de artesões, antiguidades e personagens sui generis. Encantamentos mil naquelas imediações. Estive cinco vezes em Buenos Aires e em todas as vezes bati cartão por lá. Querem saber se comprei muita coisa por lá? Não. Trouxe alguns penduricalhos, mas o que sempre mais me interessou foi o contato com as pessoas. Forço um pouco a barra para ir conhecendo pessoas e nesses anos conto a história de duas, que é o segundo motivo desse meu escrito. Ambas são duas TRAVESTIS de meia idade e no próximo domingo ocorre aqui em Bauru mais uma Parada da Diversidade, onde muitas iguais a elas expõem um pouco da irreverência embutida em todas.

A primeira delas é uma velha conhecida minha, pois nesse ano a revi por duas vezes, dois domingos seguidos e dela já havia escrito algo no blog, “A INESQUECÍVEL MARLENE, OPERADA ARTESÃ NA FEIRA DE SAN TELMO” (clique a seguir: http://mafuadohpa.blogspot.com.br/search?q=marlene). Travamos, eu e Ana um papo tão amigável com ela no ano passado, que acabou tornando-se minha amiga pelo facebook. Sua história é merecedora de um livro, ser contada nos detalhes. No primeiro domingo passado em Buenos Aires, dia 28/07, ao chegarmos perto de sua banca, toda recheada de filetados (as plaquinhas coloridas e cheias de rococós que os argentinos espalham por tudo quanto é lugar), parei diante dela e ela não notou. Acostumada com turistas, disse que não queria comprar, mas sim revê-la. Só aí ela me olhou, fixou bem os olhos e para minha surpresa, mesmo após um ano sem nos falarmos, tascou algo inebriante para mim: “Perazzi, como podia esquecer de você. Imprimi o que escreveste de mim, emoldurei e está na minha parede. Você é aquele dos longos textos, escreve muito”.

Rimos muito, abraços cordiais e mil histórias colocadas ali para fora no meio da feira. Além de ter lembrado o meu nome, fez mais. Algumas turistas insistiam para fotografar sua banca, ela irredutível, assim como muitos em San Telmo, não deixam fotografar seus trabalhos. Liberou geral para mim, pois sabia que escreveria dela e bem. Claro, levei alguns fileteados e ganhei dela um copinho com a imagem da Mafalda. Falou muito dos seus problemas de saúde e do esforço que faz para continuar vindo todos os domingos, distância de mais de 30 kms de sua casa até a feira, medicada com morfina. O encantamento maior é quando diz das pessoas que atuaram com ela na Galeria Alaska, no Rio, uma delas Elza Soares. Tenta lembrar o nome de um artista brasileiro, um nome que desconheço. Trago gravado num guardanapo de papel, LEO BELICO e ao fazer uma pesquisa pelo google, algo grandioso de alguém que desconhecia. Ela me disse tanto dele que vou pesquisar mais a respeito.

Difícil despedir de pessoas iguais a ela. Não resistimos e no domingo seguinte, 4/08, íamos eu e Ana passear de trem num outro lugar, mas voltamos para San Telmo e novamente uma parada na banca da MARLENE. Gostei muito de conhecer Marlene e se pudesse voltaria outras vezes, pois percebi que a reciprocidade para conosco foi da mesma intensidade. Uma pessoa cheia de sensibilidade, uma longa história de vida, uma trajetória onde faz questão de dizer que foi uma das primeiras “operadas” no Brasil dos anos 50 e 60. Sabem lá o que é isso? O que deve ter de histórias por trás daqueles cabelos louros. Tento desde o ano passado fazê-la me postar algo mais de suas histórias pelo e-mail, mas como sabemos esse meio não é confiável (Obama fica sabendo de tudo), acho que irei conseguindo em drops, aos poucos nos futuros retornos.

De lá, no mesmo dia, 28/07, subindo a feira nos deparamos com algo também eletrizante. Gosto muito de camisetas diferentes, com grafias surreais e fora do usual. Numa das ruas, uma banca com muitas dessas, todas desenhadas numa espécie de glitter, bem coloridas e com temas bem sacados. Além da banca, um algo mais me chamou muito a atenção, a dona do pedaço. Paramos ali diante da banca e fomos curtindo o astral emanado do produzido. “Mulher bonita é a que luta”, “Um homem sem pança é como um céu sem estrelas”, “Todos somos raros”, “Mickey Mouse come Donald”, “Todas unidas é melhor”, “Eu não sofro de trânsito lento! Me cago todo!”, algumas das frases escritas nos objetos sendo ali revendidos. Uma muito animada e conversadora pessoa tomava conta de tudo por ali.

Fomos ficando até ela ficar mais folgadinha, pois a procura pelo que faz é intensa na feira. No papo algo mais logo de cara. Seu nome é NATY, com um surreal acréscimo, NATY MENSTRUAL. Quando disse que queria escrever dela, me assuntou bastante (os argentinos são bastante desconfiados com estranhos faladores) e só depois foi me contando mais. A empatia bateu quando me disse que escrevia textos semanais para o suplemente GLBT do diário argentino Página 12, o SOY. Fico de ler e o consigo fazer só aqui no Brasil nos exemplares que trouxe de lá (um peso imenso, pois trouxe jornais de 14 dias por lá, infinidade de papéis). Naty é uma pessoa cheia de gás, envolvida com a luta dos seus e para os seus. Tem um passado e conquistou espaços valorosos dentre os seus, faz um bom uso deles e ali expõe sua forma libertária de ser e de agir. Vive da venda dos produtos feitos e criados pela sua mente muito sã.

Escolho uma camiseta dentre tantas opções, não sei se o fiz com a melhor, mas acabo trazendo justamente uma em cor preta e sobre a situação desesperadora de minha “pança”. Naty nos passa seus contatos e deixo aqui alguns deles para que conheçam um pouco do que essa batalhadora faz. No www.natymenstrualremeras.blogspot.com tudo o que ela produz e revende, com estampas das mais interessantes. Nos dois demais, o www.natymenstrual.blogspot.com e www.ladorysgay.blogspot.com um pouco do universo onde ela vive e faz descrições bem lúcidas, sem papas na língua. Seus escritos refletem uma postura pelas quais não me furto em ler e divulgar. Fortes, contundentes e uma reflexão bem fundamentada de quem vive intensamente.

Da mesma forma como fizemos com Marlene, retornamos no domingo seguinte para um novo abraço em Naty. Sua banca estava com o mesmo movimento, atraindo gente não só do segmento LGBT, mas de todos. Ela pinta desde temas infantis, desde os para adultos bem resolvidos. Quem ali para e conversa animadamente com essa travesti, sabe o que vai encontrar e não se decepciona, pois quem faz uma arte tão engajada só pode ter uma boa cabeça. Essas duas, ambas muito bem resolvidas, são duas personagens marcantes de uma das mais famosas feiras do mundo. Ali você encontra de tudo, elas são só um cadinho do universo de possibilidades de algo, que transportado para a minha aldeia, Bauru, vejo como algo mais do que possível, uma feira universal, um imenso e movimentado MERCADO MUNICIPAL, culminando com uma feira ao estilo dessas todas. A Feira do Rolo precisa ganhar o mundo, pois potencial não lhe falta.

2 comentários:

Anônimo disse...

a marlene é mesmo muito querida ! chegou a postar um comentário elogiando a homenagem que recebi no congresso lá em bue. fico feliz com a felicidade do henrique que fica a passear enquanto eu cumpro minhas atividades acadêmicas e, orgulhosa de ver como o olhinho dele brilha ao descobrir que está sendo lido pelas terras portenhas.... ana bia andrade

Anônimo disse...

caro sr. Henrique

Esse seu texto é um bom exemplo de pessoas do meio trans tocando suas vidas sem estarem envolvidas com a prostituição, um estereótipo do setor. As duas citadas por ti não são mais moças e souberam ao longo da vida encontrarem ótimos caminhos para continuar tocando suas vidas.

Escrevo e me admiro com isso, pois ainda muitos só enxergam travestis envolvidos com prostituição e isso não é verdade. Aqui mesmo em Bauru conheço uma grande parcela delas trabalhando em variadas atividades.

Esse seu texto serve muito bem para dar uma começo grandioso para a 3ª Semana de Combate ao Preconceito e a Discriminação, começando hoje e terminando com a Parada da Diversidade no próximo domingo.

Foi muito bom ele ter vindo nesse momento.

Vanessa e Larissa