“CADERNO DE NOTAS’, ERIC NEPOMUCEMO EM ANOTAÇÕES DE 36 ANOS ATRÁS – AS LIÇÕES PARA OS DIAS ATUAIS
Não me canso de escrever de um jornalismo que hoje fenece a olhos vistos. Existirá sempre os que, saindo das faculdades, o fazem cheios de muita garra, mas ao adentrarem (ou tentarem) o mercado de trabalho, tamanha decepção. A adequação ao formato mentiroso do jornalismo vigente, uma conformação idiotizante: teremos que mentir e nos adequar para estarmos inseridos no contexto. E se assim não ocorrer, evidente, estarão fora. As exceções e os lugares onde ainda se publica algo realmente dentro da VERDADE FACTUAL DOS FATOS é cada vez mais reduzida. Um dos jornalistas (ele adora ser chamado de repórter), desses que não me canso de citar como exemplo é ERIC NEPOMUCEMO (o tradutor oficial de Garcia Marquez e Eduardo Galeano). Um dos maiores entendidos em América Latina. Hoje leio seus textos não em algum órgão brasileiro, mas no diário argentino Página 12. De vez em quando lança um livro e alguns desses tenho aqui no mafuá. Saco um enfurnado aqui no mafuá desde muito tempo, o CADERNO DE NOTAS (Editora Paz e Terra RJ, 1979 – comprei o danado em 2007). Nele textos marcantes, retratando dez anos de andanças pela América Latina, de 1966 a 1976, 16 países e só fortes impressões, “registro esclarecedor do continente” onde vivemos. Vale a pena uma viagem pelas frases que fui grifando com minha caneta marca texto (todo meu acervo pessoal é assim demarcado). Confiram a belezura de sua verve:
- “Mas não importa: nas provas de afeto, nem sempre a verdade prevalece. (...) ...não é muito correto dizer que ele chegou a Cuba: esteve sempre chegando. (...) ...nunca mais Hemingway deixou que o mar e a corrente desaparecessem de sua vida. (...)”, do texto A Cuba de Papa Hemingway.
- “...não haverá perdão para quem cobriu as ruas de sangue. (...) ...os traidores, quando se apoderam do poder, se transformam rapidamente em um inimigo perigoso, porque são muitas as mãos sujas que passam a apoiar sua posição. (...) certa vez, falando de Che, um escritor uruguaio recordou seu olhar límpido, puro, como recém amanhecido: essa maneira de olhar dos homens que crêem”, do texto Um Encontro com a Resistência (Chile).
- “Por pensar, não mais que isso, nos metem na cadeia”, do texto Em Outra Terra (sobre a Bolívia, para revista Veja 1976).
- “...que cada um dos milhões de americanos deveria sentir a tragédia dos chilenos como se fosse sua (Garcia Marquez sobre a tragédia chilena). (...) A tragédia do Uruguai é a de um país que exportou mais de um terço de sua população. (...) O juramento é prestado aos representantes de uma sistema que condena à prisão que canta com demasiado entusiasmo o verso: ‘Tiranos, tremei!’ – verso que, pertence ao hino nacional uruguaio. (...) Um país cujas prisões guardam mais presos políticos do que presos comuns”, do texto A Outra Margem do Rio da Prata.
- “Não sei o que se pode e o que não se pode pensar. Dizer, sei: não se pode nada’, ironizava, um redator do semanário Marcha. (...) Os militares se transformaram num partido político. (...) E o Uruguai ficou parado no tempo, campos vazios, fábricas inúteis, quartéis florescentes. (...) Quando não se tem mais a quem prender e interrogar, é porque o país acabou. (...) Um de cada três uruguaios capazes de produzir vai embora. (...) Os filhos dos uruguaios nascem fora do país”, do texto Um Café Chamado Sorocabana (sobre os insanos tempos de ditadura militar no Uruguai).
- “...uma das primeiras tarefas da Revolução foi mostrar aos homens que havia começado o tempo de resgatar (ou criar) sua dignidade quase inexistente. (...) Não tema discutir com um cubano sobre sua Revolução, ou criticá-la: ele mesmo será, na maioria dos casos, um crítico ácido e ágil. Não vale a pena, em compensação, tentar negar o processo: ele poderá tomar isso como uma espécie de ofensa pessoal. Na barafunda de cifras multiplicadas ou criadas está a realização pessoal de cada um dos dez milhões de cubanos, sua vingança pessoal contra a história, o orgulho de sua existência. (...) Na ilha, em todo caso, respira-se um ar de alegria quase contagiante. Qualquer um sentirá que é impossível deixar de se surpreender com a atmosfera de entusiasmo que paira sobre todas as agruras do dia a dia”, do texto Cuba Ano 20.
Clique em cima para ampliar e ler esse texto. |
- “Em junho de 1973 o senador Uruguaio Enrique Erro fez um discurso no Congresso: ‘Os senhores apertaram o botão que permitiu a intervenção dos militares em todos os assuntos nacionais. Gostaria de saber agora se os senhores conhecem o botão que permitiria sua retirada’. O governo não respondeu na hora: alguns dias depois, sim: o Congresso foi fechado, Enrique Erro embarcou para o exílio, e terminaram 40 anos de democracia no pequeno Uruguai. (...) É este contrato que o senhor Ronald Regan usa como base para gritar que ‘o Canal é nosso: nós o inventamos, nós o construímos, nós o compramos’. Mais honesto, talvez seja o senador Hayakawa, da Califórnia. Ele também é contrário a devolução do Canal: ‘Nós o roubamos bem roubado. Logo, é nosso’. (...) O panamenho Julio Yao dizia: ‘Não, otimista não sou; é difícil algum povo colonizado ser otimista, a menos que esteja metido numa guerra dura de libertação’. (...) No Brasil há um músico chamado Antonio Carlos Jobim, que me disse, numa tarde de domingo: ‘Eu vou ao piano para não morrer, para não desaparecer, para não me transformar em um número. Para fugir, para não enlouquecer. Eu vou ao piano para não me matar”, do texto Anotações.
Ao ler isso tudo, leve em consideração o ano em que tudo foi escrito, tempos duros, de ditaduras militares espalhados por quase todo continente. Poucos países livres e soberanos. Leve também muito em consideração que, hoje, infelizmente, alguns desmemoriados clamam pela volta dos militares. Ler coisas desse tipo, ou melhor, não esquecer nunca o mal que nos proporcionaram faz parte de um processo de reeducação mais do que necessário após algumas décadas do fim daquilo tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário