domingo, 5 de agosto de 2018

COMENDO PELAS BEIRADAS (59)


DUAS IMPACTANTES FOTOS E UM RAPAZ ENCOSTADO NUM MURO

Foram tiradas por mim na tarde de sexta no parque Lezama, no final da rua Defensa, região central de Buenos Aires. O Parque é bonito, arvores bem altas, frondosas e algumas estátuas. Dessas alguém me disse durante a viagem: "São os vigias dos parques e praças. Estão ali numa espécie de segurança para o local, ou seja, quem se atreve a fazer algo sendo vigiado por alguém lá do alto com uma espada tão afiada?". Esses, os nas estátuas, quando muito fizeram algo quando em vida, muitas décadas atrás, mas hoje, ferro mais que gelado nas tardes frias buenaristas, olham tudo lá do alto e nada fazem para mudar o estadio de coisas lá do que se passa ao nível do chão.

Na sexta eu sumi da vista de todos e fui caminhar, algo que adoro fazer em lugares estranhos. Sai da região da rua Florida, passei perto da Casa Rosada, subi a Defensa e fui indo até dar de cara com esse parque onde tirei algumas fotos. De lá continuei em frente até dar de cara com o bairro de La Boca, primeiro os trilhos do lado do campo de treinamento do time de futebol do Boca Juniors e depois o bairro propriamente dito. Me atenho a duas fotos tiradas no parque. No caminho antes do parque me deparei com um jovem encostado num muro e vendendo panos de prato aos passantes. Achei a cena de cortar o coração. Ele ali, talvez já cansado de oferecer aos passantes, não mais oferecia o produto e permanecia a maioria do tempo de cabeça baixa, enquanto as pessoas passavam diante dele sem ao menos notá-lo.

Aquilo muito me impactou. Permaneci a distância só observando a cena. Muito jovem, magro, cheio de vitalidade e com toda certeza, sem emprego, encontrou os tais panos para revender. O obtido com sua venda seria suficiente para fazer frente suas necessidades? Esse tipo de pergunta é a mesma que repito para todos os ambulantes que vejo nas ruas. Sei a resposta e ela está estampada em suas fisionomias. Eu não o fotografei. Poderia até fazê-lo, creio que de onde me encontrava não perceberia, mas preferi só observar. São tantos na mesma situação, seria só mais um. Mesmo sem a foto seu rosto foi motivo de um sono mais que instável. Ele ali encostado na parede, sem perspectivas de felicidade fazia algo mais que contrariado, mas insistia e evidente, movido pela mais absoluta necessidade. Diante de situações como essa me dá uma bruta vontade de me aproximar, puxar conversa, ver se de fato é isso mesmo. Na maioria das vezes não o faço. Me reservo em observar e ficar ruminando das maldades deste mundo, onde milhões são apartados de quase tudo, para que uns poucos possam desfrutar de uma vida nababesca. Essa conta que não bate no capitalismo está bem documentada na miséria exposta como chaga nas ruas, não só de Buenos Aires, mas da maioria dos países da América Latina.

Volto ao parque Lezama, onde tirei duas fotos e aqui as publico. Era por volta das 11h, seguia minha caminhada e ao me deparar com esses dois seres das ruas, personagens de um triste cenário, dei a volta no varão da estátua e também me posteio para observar a ambos. Uma senhora sozinho, enrolada em velhas cobertas e noutra um senhor também na mesma situação dando comida aos pombos. Eu tento cruzar o meu olhar com o deles e ao vê-los mais de perto, algo me toca. O barbudo dos pombos deve viver ali, pois os pombos não se acanham e nem mantém distância dele. Conversa sozinho e divide sua comida com os animais em algo tão natural, diria, comovente. Enquanto dizem para nos distanciarmos dos pombos, ele os tem bem junto de si. Ela de um lado a estátua, essa no centro do parque, ele noutro. Vejo muitos passando rápido pelo local, nenhum parece os perceber. Ali um local de passagem e eles dois se dignam a ali permanecerem. Devem ser conhecidos dos vizinhos e frequentadores. Desses, vejo madames passeando com seus cães.

Moradores de ruas sempre me chamaram muito a atenção. Ainda se sobrar um tempinho em minha atribulada vida, dedicarei a esses um belo estudo, não só dos motivos de viverem nas ruas, mas de como sobrevivem nessa situação. Como os percebo, numa espécie de seres mais que diferenciados, vivendo com um poder de sobrevoar o mundo vivido por nós, ditos como normais. Essas pessoas em situações de evidente fragilidade, invisíveis para muitos, são ricos no que fazem. Enquanto todos passamos apressados por eles, nada disso altera o modo como tocam suas vidas. Foram levados para isso e lá perderam a pressa, ela já não faz mais sentido. Já o moço do muro, o vendedor de pano de prato, ele bem poderia estar em outra atividade, teria num mundo normal todas as condições para não estar ali com sua pequena banca, conseguindo caraminguás e sobrevivendo de uma forma precária, inútil, besta, sem sentido. Poderia estar com os olhos voltados para tanta coisa bela nos arredores, mas isso me chama mais do que a atenção. Foi o que mais observei nessa viagem. também as inscrições nas paredes e elas, por si só, são merecedoras de outro texto, o qual pretendo fazer tão logo lave a louça a mim reservada aqui na casa onde nos encontramos.

HPA - Buenos Aires, Argentina, sexta, 04 de agosto de 2018, pouco antes de fechar as malas e pegar o caminho de volta para Bauru.

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