sexta-feira, 4 de abril de 2008

MEMÓRIA ORAL (28)
Esse texto tem um ano e fiz logo após a viagem que fiz em março do ano passado para assistir em Bueno Aires o "Fora Bush". Foi emocionante demais, tanto que enviei o relato para a revista Carta Capital e o jornalista Mino Carta publicou logo a seguir, com o título de "O anti-Bush ao vivo". Depois foi também publicado na coluna de Turismo do JC de Bauru. Como ainda não havia publicado por aqui, fica o registro. E tudo já completou uma ano...

DOIS "ACHADOS" NUMA NOITE "LIMPA"
Tudo começou com a iniciativa de Marcos Paulo Rezende, 27 anos, professor de inglês e um militante socialista aqui de Bauru, interior de São Paulo, incomodado com os rumos atuais da integração do Brasil junto às demais nações latino-americanas. Quando ficou sabendo que Chávez iria fazer uma grande concentração em Buenos Aires, num ato organizado pelos movimentos sociais argentinos, justamente quando Bush estaria ali ao lado, em Montevidéu, começou a movimentar céu e terra para estar lá. De inicio eram cinco os pretendentes a aventura, mas no final fomos dois, Marcos e eu, Henrique Perazzi de Aquino, 46 anos, professor de história e funcionário público. Vontade existia em todos, de ouvir/ver Chávez e constatar in loco a existência de uma alternativa a esse injusto mundo em que vivemos e de praticar uma realintegração a um bloco econômico, político e social dos sofridos países latinos.

Marcos tratou de tudo. Ele finalmente me arrastou com um argumento dosmais convincentes:
- "Minha geração não está fazendo nada para mudar o estado de coisas que aí está. A sua participava de manifestações estudantis, esteve na luta armada, era atuante e se propôs a mudar radicalmente o regime. O tempo está passando e quero fazer algo. Essa é a oportunidade". Foi o que bastou para me fazer arrumar as malas e me endividar mais um pouco. A forma escolhida para se chegar até lá foi através de um pacote turístico, de aproximadamente $ 300 dólares cada um, com duas estadias. Tudo financiado, com prestações a perder de vista. Saída de ônibus de Bauru para São Paulo (350 km) na quinta à noite, um táxi até Guarulhos com preço exorbitante (ainda queria uma sobre-taxa de 50% por atravessarmos duas cidades) e vôo às 7h30 na manhã do sábado,09/03, dia do evento.

Instalados num hotel no centro de Buenos Aires desde 11h, mal conhecemos a cidade, pois às 15h já estávamos desembarcando defronte o estádio do Club Ferro Carril Oeste, munidos de uma rústica máquina fotográfica, tal a ansiedade de estar junto ao líder venezuelano e as Madres da Praça de Maio. Os portões abririam somente às 17h, mas algumas pessoas já se aglomeravam no local. Sentada diante do portão destinado ao público, a primeira da fila era uma espigada argentina, Rita Éster Lincopea, que estava ali desde às 14h e ao saber que éramos brasileiros, abriu um sorriso irônico e destilou sem piedade:
- "Cadê Lula? É uma grande decepção ele não estar aqui junto de nós".
A fila foi crescendo rapidamente e ganhou ares de festa com a chegadados portuários do Porto Capital, empunhando faixas, bandeiras e com uma barulhenta bateria de bumbos e apitos. Alberto Alippi, 52 anos, navegante, com um boné vermelho caindo de lado, descreve em detalhes suas peripécias na praia de Gonzaga, em Santos e diante de brasileiros, fala de futebol:
- "Maradona jogava praticamente sozinho e foi grande. Pelé só foi o que foi por estar ao lado de monstros sagrados". Não discutimos futebol, pois também adoramos Maradona, nos atendo a atuação do grupo dos portuários e sua prática política:
- "Quando os portuários daqui decidem parar, nada funciona. Paramo tudo. (...) Menén privatizou tudo, inclusive os portos, destruiu o país e só volta ao poder morto. Ele foi o maior ladrão desse país".
Adentramos o estádio e decidimos não ficar nas arquibancadas, indo direto para o gramado, todo revestido com uma película de feltro em tiras coloridas. Queríamos ver Chávez de perto. Faixas e cartazes já estavam espalhadas por tudo quanto é canto, antecipando as eleições que se aproximam, fazendo alusão a Kirchner, Bonasso, Barros de Pie, Círculo Bolivariano Argentino e o PCA. Estávamos nos sentindo em casa e era exatamente aquilo que estávamos procurando. Ficamos bem defronte ao alambrado, tendo a frente somente as cadeiras para os convidados. A distância era de uns 10 metros. Não sentamos uma só vez e a todos que fazíamos contato, o espanto por termos viajado de tão longe. A causa era das mais nobres e olhando para os lados, nada de encontrarmos brasileiros (uma grande decepção). O alento veio de uma janela de um prédio bem atrás do palco, com uma bandeira brasileira hasteada ao vento (foi até reproduzida no telão do estádio e afinal, não estivemos sozinhos nessa jornada).
A integração ao ato foi total e a receptividade até nos espantou, pois havíamos ouvido muito da dificuldade que teríamos no relacionamento com os irmãos portenhos. O que encontramos foi exatamente o contrário, pois ninguém se furtou de nos dar informações e trocamos idéias com todos. Um calor humano com forte conotação política, onde predominou a solidariedade entre povos irmãos, que padecem do mesmo mal. Quando se aproxima o momento de início do ato, estávamos ambos preocupados, pois havia no estádio somente umas duas mil pessoas. Temíamos pelo fracasso e o que isso geraria de notícias desabonadoras para o movimento social de integração latina. Confabulamos a respeito e notamos que de longe vinha um batuque intermitente, que crescia de volume a cada instante. Não conhecíamos mesmo nada sobre o poder de organização lá deles. Exatamente às 18h00 começa uma verdadeira invasão, com a chegada da Juventude Peronista e do Movimento Evita, com bandeiras azuis e um grito de guerra em alto e bom som. Lotaram tudo em cinco minutos, algo que nos deixou incrédulos e radiantes.
Enfim, o estádio estava lotado. Daí em diante mal conseguíamos nos mexer, tal a aglomeração. Sair do lugar era ficar sem ele e não presenciar o evento de forma privilegiada. O ato começa às 18h20 com o poeta popular Juan Palomino, que inflamado seduz a todos:
- "A espada de Bolívar cavalga por toda a América Latina". Todos se juntam diante do palco. Crianças perdidas são anunciadas no microfone e olhando para os lados, vemos a caricatura de Lula em duas faixas, ao lado dos demais presidentes do bloco que apóia Chávez. Dois cantores populares se revezam no palco, para delírio geral, HorácioFontova e o conhecido Víctor Heredia, ambos conclamando o povo a não esmorecer na luta pelo direito dos povos latinos. Os jovens peronistas não param um só instante, batucando e entoando seus chavões, mesmo com os cantores no palco. A exceção ocorre somente quando as Madres da Praça de Maio adentram o palco e se acomodam ao fundo. O delírio é geral. Vai começar verdadeiramente o ato contra Bush. O narrador relaciona os nomes dos presidentes latinos que levantam a bandeira do socialismo, do Fora Bush, da solidariedade a Cuba e deixa de fora Lula e Tabaré.

Quando começa a escurecer, por volta de 19h, Chávez sobe ao palco, cumprimenta todas as Madres, ouve Hebe de Bonafini com sua fala emocionada e daí por diante foram mais de duas horas, com a multidão prostrada diante de um envolvente e emocionado discurso, bem contundente e inflexível com a presença de Bush:
- "Somos irmãos da mesma crise histórica, irmãos de alma, corpo, sangue e do mesmo parto. (...) O cavalheirito do norte é um cadáver político. (...) Nós vamos sim, terminar o trabalho iniciado por Simon Bolívar. (...) Que sigam soprando buenos ares sobre Buenos Aires. Esses são os ventos bons. (...) Unamo-nos e seremos invencíveis". Chávez cita Lula uma única vez, numa ironia sobre futebol, para que nosso presidente tome cuidado com os venezuelanos na Copa América (um time venezuelano havia vencido o Ríver dias antes por 1x0) e quando cita vários heróis latinos, dentre eles os nossos Tiradentes e Luiz Carlos Prestes. Os pés doem, mas ninguém arreda pé. Mães carregavam filhos dormindo no colo, aos mais velhos eram cedidos os lugares para encostarem-se ao alambrado, vejo duas pessoas tentando sentar no chão por alguns instantes e até mate era feito no meio da multidão e passado de boca em boca. Um inflamado argentino, bem ao nosso lado, não se cansava de gritar:
- "Estamos vendo nascer um novo mundo. Fuera Bush!".

Na saída, um contentamento generalizado. Foi o momento dos abraços coletivos, da troca de informações e congratulações. A cada um que sabia da nossa procedência, a pergunta: "Que fazem perdidos por aqui?". Numa alusão ao nome do famoso filme, a resposta era que éramos "dois achados numa noite limpa". A decepção mesmo foi não cruzar com nenhum outro brasileiro. Viemos, representamos dignamente a causa e o país. De alma lavada, fomos caminhando junto com a massa, ainda sem acreditar no que havíamos presenciado. A ficha demorou a cair. Constatamos que um novo mundo é mais do possível e ele só virá da união do nosso sofrimento coletivo. É isso que precisamos colocar em prática, pois do contrário continuamos a padecer no paraíso. O quef izemos é não se deixar escravizar e nem se deixar cooptar pelo sistema. Bem, depois fomos conhecer e descobrir um pouco de Buenos Aires, que ninguém é de "fierro". De "fierro" mesmo, o estádio e a disposição de Chávez, que está bem consciente do papel que lhe cabe nisso tudo. Voltamos os mais de 2.000 km com a consciência do dever cumprido e de que a luta está apenas começando. Até seremos criticados no retorno às nossas atividades, mas isso faz parte da luta meio que suicida dos que insistem em remar contra a maré dominante.

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