COM A PALAVRA O POVO CUBANO
A ida para Cuba é um sonho acalentado por muitos. No meu caso, mais de trinta anos de espera e acabo indo justamente trinta dias após o Comandante em Chefe, Fidel Castro ter-se afastado do poder. Percorro o país quase todo durante vinte dias, com uma mochila às costas, junto com Marcos Paulo Caselachi Resende, 28 anos, rodando um documentário sobre o país e constatando in loco a tal da sustentabilidade do regime comunista, aos 49 anos de sua existência.
A intenção era ir ouvindo as pessoas e comparando tudo, tirando conclusões, num contraponto aquilo que é divulgado pela dita "grande imprensa" brasileira. A idéia do realizador Marcos era mostrar as contradições entre a realidade cubana e o que parte de nossa imprensa divulga, numa espécie de "grande torcida do contra", fazendo figa por alterações profundas, culminando com o fim do comunismo e a implantação do neoliberalismo. Tínhamos lá nossas dúvidas e para obtermos a resposta, adentramos de corpo e alma a mais famosa e polêmica ilha caribenha.
Todo aquele, possuidor de uma vida voltada para a sensibilidade social possui grande afeição por Fidel e pela brava resistência cubana, tão próxima de seu voraz e cruel algoz. A força de vontade do povo cubano, praticando o socialismo a 90 milhas dos Estados Unidos é algo a ser sempre enaltecido e reverenciado. Não é atitude pequena. Chegamos olhando tudo com muito respeito e consideração, pois são os únicos no continente a garantir educação, saúde, alimentação, habitação a todos os seus habitantes. E tudo gratuito, além dos preços baixíssimos de telefonia e fornecimento de eletricidade. Para uns o paraíso, para outros o próprio inferno.
Além do deslumbramento natural com tudo o que ia sendo presenciado, a intenção principal é ouvir o que o próprio cubano acha desses quase 50 anos de Revolução e da continuidade do atual regime. Conheço já no segundo dia em Havana, Victor Serra, 53 anos, técnico de uma indústria de peças hidráulicas espanhola há mais de 25 anos, tendo morado por 7 anos na Espanha, voltando para Cuba por vontade própria. É daqueles desconfiado, preferindo ouvir primeiro. Conversamos por quase duas horas, até se confessar membro do PCC – Partido Comunista Cubano há mais de 30 anos, com um filho residindo nos EUA e sem poder vê-lo, pois se voltar para casa não poderá mais retornar de volta. "É triste ficar sem a presença dele, só ouvindo sua voz pelo telefone. Cuba possui uma situação consolidada, estamos muito bem, não precisamos e não queremos passar para o outro lado. Conheço o lado de lá e falo com conhecimento de causa", diz ao final da conversa.
Omar Olazabal, 45 anos, é diretor dos Estúdios Mundo Latino, produtora oficial dos documentários sobre Cuba espalhados mundo afora e nem resvala sobre problemas com a continuidade do regime: "A grande preocupação que temos hoje é com o consumismo. Quando do Regime Especial (fase difícil após o fim da URSS) ocorre uma abertura, o turismo é massificado, surgindo a jineteria (assédio ao turista em busca de benefício próprio) e com ela o aumento do consumo. Nem as religiões nos preocupam, pois não interferem nas decisões do Estado. Aqui sempre existiu uma hierarquia e ela é respeitada". Andando pelo Malecón, a grande muralha na orla marítima de Havana, cruzamos com Orti Ceda, 48 anos, um simpático engenheiro, que sabendo estar diante de brasileiros desfere: "Eu sou cubano, teu irmão latino. Temos em comum o sofrimento de sermos humilhados pelo irmão todo poderoso do norte. Precisamos todos de mais união para combater isso e espalhar a experiência cubana". Não precisamos perguntar nada, muito falante, antenado com tudo o que ocorre na América Latina, envolvente como quase todo cubano. Por lá, dizem que, diante de dois cubanos, estamos diante de três problemas, pois eles discutem sobre tudo, conhecem de tudo um pouco e não se furtam em omitir suas opiniões. Vivenciei isso a cada papo. Andando de um lado para outro, o que mais vemos não são cartazes de Che, Fidel, Raul ou mesmo de Chávez. Espalhados por todo o país, cartazes e pequenos memoriais estampam um tema candente em Cuba, os cinco prisioneiros detidos nos EUA, acusados de espionagem e mantidos num cárcere, com embasamentos nada consistentes. O país inteiro está mobilizado e nos mais diferentes lugares, algo sobre a campanha nacional, bem ao estilo da que já havia ocorrido anos atrás com o garoto Elian. Em nossa fisonomia e trajes está estampado sermos turistas e isso vai atraindo a atenção por onde passamos. Na praça da Catedral, em Habana Vieja, paramos para escutar um grupo de rua, o Los Mambises, formado por seis músicos da velha-guarda. O percussionista Machado, 72 anos, toca e canta com bastante entusiasmo "Hasta siempre Comandante", de Carlos Puebla, relembrando Che. "Nosso grupo é todo com essa média de idade, adoramos cantar os feitos da Revolução. É o que mais nos pedem e o fazemos com paixão, pois Cuba não se vergará nunca", diz emocionado, após cantar "Se acavo la diversion", sobre a chegada de Fidel ao poder e o fim da baderna anterior. Com gritos de "Viva Fidel", percebemos o quanto defendem tudo o que já foi conquistado.
Aproveito um final de tarde para cortar barba e cabelo na Arco Íris, na Calzada de Infanta, no bairro de Vedado. Salão ao estilo antigo, com umas dez cadeiras, quem me atende é Alberto Pascotto, 35 anos, que como todo barbeiro fala bastante: "A situação de Cuba é irreversível. Temos ótimos resultados em saúde, educação e no campo social. Não queremos retroceder. Temos nossos problemas, mas vivemos situação muito melhor do que a de muitos países, talvez os mais felizes de toda a América". Seguimos para Santa Clara e o que nos encanta por lá é a movimentação jovem em torno de sua praça central. Tudo acontece por ali, desde festas, eventos e diversas apresentações de escolares. A diretora da Biblioteca Provincial Marti, Ana Delia Monteaqudo, 46 anos e 26 naquele local, tendo começado como servente, fala com entusiasmo do papel do país hoje: "O cubano que sai para trabalhar fora do país volta fortalecido, como os médicos, pois vivenciam os problemas sociais do mundo e que aqui quase não existem. Raul diz que teremos que trabalhar mais para continuar possibilitando isso e todos estamos cientes de que a superação é muito importante".
Ligamos a TV e finalmente surge o único brasileiro visto por lá (sabemos que eles existem, principalmente estudantes, mas não tivemos o prazer de cruzar com nenhum), Frei Beto estava de volta à ilha pela 28ª vez e declarava numa entrevista para a TV: "Hoje no Brasil, sem Lula no poder, a direita voltará. Sou socialista por razões aritméticas, pois se não chegarmos lá por bem, o faremos pela barbárie. Sou socialista porque sou cristão, afinal o compartir é socialista". Seguimos viajando e em Santiago de Cuba, ao conhecer o Museu do Quartel Moncada, conhecemos Alberto Sánchez Beltran, 75 anos, ex-combatente, com 4 filhas, todas formadas em engenharia: "Muitos governos têm condições de nos ajudar e não o fazem. O capitalismo não se conforma de termos dado certo". Caminhando com esse senhor pelas ruas, conhecemos Alejandro Miranda, 16 anos, membro da Federação dos Estudantes de Ensino Médio e da UJC – União da Juventude Comunista, fazendo um levantamento de monumentos históricos da cidade para um site. Ele nos diz: "Nós cubanos somos muito felizes com tudo o que conquistamos. Aqui só não estuda quem não quer ou não tem capacidade. E ao nos formarmos, não nos limitamos ao exercício da profissão, pegamos no pesado junto com os demais, pois o país necessita dessa nossa participação". Um discurso encantador, reforçado pelo presenciado na TV, no Congresso Estudantil da Juventude Comunista, com representantes de todo o país, onde eles fizeram questão de ressaltar esse esforço além do exercício da profissão, como uma missão intrínseca a todos. Na sexta-feira santa (que por lá não é feriado) visitamos o Mausoléu de Marti, no cemitério Santa Ifigenia, onde Gladys Romagosa, 65 anos, museóloga do local nos dá uma aula sobre o herói cubano e acrescenta, sem que lhe perguntássemos nada: "Fidel aqui mesmo anos atrás, numa das duas visitas que nos fez, me disse que os norte-americanos não são tão inteligentes assim. Fizeram centenas de atentados contra ele, que conta com uma super-proteção, esquecendo-se de Raul, quando também seríamos atingidos de forma crucial". Na sequência, paramos para um descanso numa das praças centrais de Santiago e ao nosso lado, Ernesto Rivero, 62 anos, curtindo a ainda recente aposentadoria, nos disse: "Seguiremos toda a vida o exemplo de Fidel, ele é um guia para todo esse povo. Para mudar nosso destino só com uma invasão. Somos muito unidos e nos levantamos rapidamente quando agredidos". Na parada seguinte, uma balconista, entusiasmada com as novelas brasileiras nos questiona: "Os artistas brasileiros andam pelas ruas?". Quando fica sabendo que não, fica espantada: "Os nossos circulam pelas ruas e facilmente são encontrados. São iguais a nós e assim nos relacionamos".
Na volta de ônibus para Havana, num vídeo assistimos um velho clip com Roberto Carlos cantando no Chile. Muitos cantavam suas canções melhor do que nós dois. Na chegada, num bar ao lado do hotel, Lázaro Menel, 60 anos, atendente do local, conversa conosco sobre religião: "Aqui é o Estado quem dita as normas. Nós, os comunistas, queremos a felicidade terrena e os religiosos, após essa vida. Não deixamos que a religião nos dome. Nós é que domamos ela". Damos uma última passada no ICAP – Instituto Cubano de Amistad com los Pueblos, sendo recebidos por Fábio Gonzáles, 44 anos, que inclusive estará no Brasil em maio para participar de um Encontro de Apoio a Cuba, dentro da Conferência de Integração Latino-Americana, a ser realizada na cidade do Rio de Janeiro. Quando fica sabendo que a mãe de Marcos não entende sua ideologia, pede que lhe diga: "Explique a ela que as trincheiras das idéias valem mais do que as trincheiras da vida". Ao lhe transmitir o que vimos pelo país, faz questão de concluir: "Não temos problemas com a continuidade da revolução, pois nosso povo sabe muito bem o que quer, como também sabe muito bem o que não quer". Antes da conclusão final, a de estarmos com a alma lavada, um taxista defronte o hotel, Ernesto Sanchez, 53 anos, diz ter morado ano passado por três meses no Brasil, em Ermelindo Matarazzo, bem ao lado do famoso bar do Ernesto, decidindo voltar correndo para Cuba: "Não aguentei aquilo, muita violência, não arrumava emprego, mesmo com qualificação. Estava ficando doente, intranquilo, morreria por lá. Voltei o mais rápido que pude". Cai o pano rapidamente.
Henrique Perazzi de Aquino, 01/04/2008 e revisto em 22/04/2008
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