LOYOLA, A ESTAÇÃO E UMA PALESTRA
Ignácio de Loyola Brandão é um escritor com mais de duas dezenas de livros publicados. Muitos deles tiveram altas tiragens, como "Não verás país nenhum" e outros, grande repercussão, como "Zero", censurado pela ditadura do período militar. Além do romancista reverenciado, produz crônicas como nenhum outro, retratando o dia-a-dia das pessoas e das cidades, sua fonte inegotável de inspiração. Dentre essas crônicas, publicadas nos últimos anos na última página do caderno cultural do Estadão, o Caderno 2, toda sexta, algo com um forte elo com Bauru: a ferrovia.
O escritor é nascido em Araraquara e seu pai foi ferroviário da antiga Araraquarense, numa época em que por esses lados, eram raríssimos as famílias que não possuiam muitos dos seus trabalhando na ferrovia. Daí o forte laço com os trilhos, tendo tudo a ver com Bauru, o famoso entroncamento de três importantes ferrovias brasileiras: Sorocabana, Noroeste e Paulista (depois FEPASA). E por causa desse cruzamento de variados trilhos e alguns parentes residindo por aqui, as vindas foram mais do que frequentes. Nessas viagens, a passagem obrigatória pela "mais bonita estação de todo o interior paulista", como ele mesmo fez questão de enfatizar num dos escritos cheios de saudade, referindo-se a Estação da Noroeste do Brasil, encravada no centro da cidade. Chegou a formular algumas perguntas: "O que terá sido feito dela? Foi recuperada? Continuaria fechada e abandonada?"
Mesmo já tendo a resposta por relatos escritos, faltava um conferência in loco. E isso finalmente ocorre, quando o escritor é o convidado de honra da 8ª Feira do Livro Infantil, promoção da Secretaria Municipal de Cultura de Bauru, para uma palestra a professores na manhã de quarta, 16/04. Estando na cidade, nada como trazê-lo à estação, vendo com os próprios olhos o estado atual da bela edificação histórica. E assim foi feito. Leitor de seus textos, consigo seu e-mail e faço o contato imediato: "Estamos cheios de expectativa de que encontre tempo para um bate-papo lá nos trilhos, revendo histórias e conhecendo mais algumas das nossas". A resposta foi quase imediata e após alguns vais-e-vens a batida de martelo: "Que tal nos encontrarmos às 8h (levanto cedo) e irmos na estação. Em seguida você me entrega no auditório onde vou falar".
Tudo estava acertado. Ligo na terça à noite e me é feita uma última pergunta: "Acorda cedo?". Respondo positivamente e ele engata: "Nova mudança, quarta, 9h15 terei de dar entrevista coletiva. Poderíamos, se não for muito cedo para você nos encontrarmos às 7h30". No horário, lá estava e em algo bem reservado, sem alarde, conforme seu pedido. Foi ouvindo meu relato da situação, repetindo o que havia lhe passado por escrito. A pendenga trabalhista do Governo FHC com os ferroviários foi quitada com a entrega do prédio para eles, um enorme elefante branco ("vários elefantes", ele me diz). Após várias tentativas de venda, no ínício desse mandato, a Prefeitura Municipal inicia processo de desapropriação e está prestes a adquirir o imóvel para instalar ali a Secretaria de Educação. Alegando prioridade, o Grupo Marca, pede que a Prefeitura reveja o processo. Isso é feito e passado mais alguns anos, entregam os pontos, sem nada de concreto. Quer dizer, inviabilizaram sua compra e não o venderam, pois no final desse mandato, a Prefeitura não mais comprará o mesmo nesse momento. Uma grande desolação para toda uma cidade.
Ele ouve tudo atentamente e iniciamos um passeio pelo local. Começamos pelo Museu Ferroviário, aberto mais cedo nesse dia por Válter Tomás Ferreira, chefe do mesmo e um cicerone dos mais dedicados, explicando em detalhes tudo o que lhe era perguntado. Loyola não contém a emoção ao tocar os cardápios da Paulista e da Noroeste, numa réplica de mesa de uma vagão restaurante. Coloca um quepe da Paulista e se deixa fotografar com ele e ao lado de um boneco de um ferroviário da época da construção da ferrovia. Na área externa, adentra um meio vagão exposto num jardim interno e novamente posa para fotos, dessa vez na janelinha. Foi quando ouvimos um elogio marcante: "O museu daqui está muito bem montado, diferente do que acontece em Araraquara. O trabalhador está representado. Lá, nada foi para a frente. Não vingou".
Quando estava no café, chegam os demais funcionários e com ele um colaborador, Darcy Rodrigues,que ao vê-lo diz: "Você não deve se lembrar de mim, mas estivemos juntos numa viagem de Cuba à Cidade do Panamá, quando de um encontro de escritores, coisa de mais de 30 anos". Darcy, participante da luta armada ao lado de Carlos Lamarca encontrava-se exilado na ilha e foi ao encontro dos brasileiros ilustres. Trocam gentilezas e a conversa continua com o quarteto indo conhecer a estação, por uma entrada interna do museu, com acesso direto na plataforma. O impacto foi inevitável, pois o estado do local não é bom, porém, foi sendo preenchido com boas recordações. Ao entrar no hall, todo cheio de lixo, proveninte de mendigos que dormem em sua porta e diante de um luminoso para venda de bilhetes exclama: "Não deixem eles retirarem isso, por favor!". Diante das locomotivas, Vanderléia (com uma saia justa na frente) e a Russa (feita para a neve siberiana), ambas aguardando restauro, permanecemos um certo tempo em silêncio.No retorno ao museu, compra um livro (As curvas do trem e os meandros do poder – O nascimento da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, de Paulo Roberto Queiróz), ganha de brinde um CD (fotos ferroviárias e filme sobre o Trem do Pantanal), deixando seu nome no livro de visitas. O tempo nos faz sermos rápidos, não sem antes algumas fotos diante da estação, na praça Machado de Mello. Sentado num banco, lembra algo ali ocorrido nos anos 60: "Cheguei num horário, para aqui participar de um Festival de Cinema e fiquei esperando num banco a chegada do próximo trem, aquele que traria minha amiga, a atriz Joana Fom. Revivi isso tudo nesse momento". Pede para tirar uma foto como recordação. De lá, no caminho para a palestra me pergunta se conheço uma pessoa, um bauruense, que havia sido seu vizinho paulistano no final dos anos 70. Quando menciona o nome, Percy Coppieters (amigo em comum), um artista plástico e pintor de telas, passamos em frente de sua casa, sem tempo para uma parada. Logo mais estamos no Alameda Quality Center, o local do evento. Na chegada, uma breve caminhada pelos stands e a entrevista coletiva, onde predominavam jornalistas e fotógrafas mulheres. Foi exato no horário e às 10h estava diante da platéia, numa ampla sala de cinema no local.
Para a abertura, pede a quem fará o cerimonial: "Não me cite como brilhante, ilustre ou qualquer coisa do gênero, pois levanto e vou embora". Não foi e encanta a todos por aproximadamente uma hora e meia. Enquanto isso, saio em disparada para buscar Percy. Quando volto com ele, chegamos em tempo para ouvir emocionados alguns de seus relatos, como o da mulher que matou um ipê porque sujava de folhas sua calçada, a do homem que idolatrava o carro e o lustrava mais do que a própria mulher e a de um outro que pega um controle de TV e finge falar ao celular. "Estão cada vez mais loucos e nem percebem", conclui. O fato é que tudo passa a ser motivo para suas crônicas e para tanto, um caderno de anotações (da Tilibra, de Bauru) é seu amigo mais do que inseparável, reduto de anotações diárias. Explica o processo de criação das crônicas e do texto: "Tem que colocar a realidade e autenticidade no texto, para não ficar falso. A literatura fornece os elementos para a história futura. Literatura é imaginação, memória". Conta mais histórias, todas retratadas em suas crônicas e faz alguns desabafos: "a missa de todo paulistano no final de semana é lavar seu carro. Eu não tenho carro, ando a pé, de ônibus, de táxi e sem celular. Eu não quero ser encontrado, eu quero encontrar as pessoas. E não gosto de explicação, gosto de mistério. Ouço muito e em certos momentos chego a entrar no mesmo comprimento de onda das pessoas".
Por fim, conta uma história acontecida com Auzeni, uma baiana que trabalha em sua casa, em São Paulo há mais de 30 anos. Sua esposa havia se trancado no banheiro e não conseguia sair. Estava presa e gritava por Auzeni, em altos brados. Quando consegue sair, a indaga se não a ouvia e dos motivos de não responder. Ela, muito simples, achando-se sózinha em casa, responde: "Sózinha, quando ouvimos gente chamando pelo nosso nome não devemos responder, pois é a morte a nos chamar. Sai morte que eu sou mais forte". Isso prova que a crônica pode estar em todos os lugares, inclusive dentro de nossa própria casa. Os abraços finais foram intensos e Percy lhe entrega um quadro de presente. Fomos saindo devagar, com aquele gostinho de "quero mais" bem latente. O público saiu dali um pouco mais feliz e Ignácio de Loyola Brandão segue para o almoço, com o pessoal da Tilibra e para seu próximo compromisso.
Henrique Perazzi de Aquino, escrito na correria em 17/04/2008
3 comentários:
NOS TEMPOS "BRABOS"
A IRMÃ ELVIRA ABRIU A USC PARA QUE ELE
FIZESSE PALESTRA.
GOSTO MUITO DELE.
ABRAÇOS.
MURICY
Olá Henrique,
Gosto muito dos seus relatos. Vc já pensou em reuní-los para um publicação?
Um forte abraço,
João - CUT BAURU
Henrique, meu carissimo de longa data tambem, tanto quanto Loyola. Existem coisas que apenas com o coração podemos expressar nas mais suaves pinceladas. Esse homem, o Loyola, é uma lenda, uma dessas pessoas que garimpamos na vida e levamos pela eternidade. Participei de um momento muito importante na vida do Loyola e daí vem essa amizade, esse carinho, respeito mutuo .
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