HISTORINHAS DESCONEXAS E FRAGMENTADAS DE UMA VÉSPERA NATALINA
Saio de casa e logo ali na curva da esquina, jogados ao léu, duas telas e um
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CPU de computador. Paro para uma foto. É a tal da limpeza de final de ano, onde o lixo brasileiro é descartado em qualquer lugar. Pode ser até na frente da casa do vizinho, uma maravilha. Um senhor de bicicleta se aproxima e me pergunta: “Está bom, parece novo, não?”. Não o iludo, nem incentivo a carregar e gastar tempo com negócio ruim. Digo a ele que lixo tecnológico não vale nada, sendo totalmente descartável e detestável. Conto uma passagem ocorrida comigo quando quis me desfazer d
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e um de minha propriedade. Fui numa dessas lojas de aparelhos antigos e o dono foi breve e sucinto: “Não vale nada. E te peço mais, não jogue ali na esquina, pois tem uma turma de desocupados por aqui, que catam tudo e vem aqui me oferecer e enquanto eu não der uns dois ou três reais eles não sossegam”. Se não apodrecer por ali, o tal comerciante terá nova oferta em breve.
No caminho para a cidade, após a última alta dos combustíveis paro no novíssimo posto Bárbara, na esquina das ruas Araújo Leite e Júlio Prestes. Pergunto se estão trabalhando 24 horas e o frentista passa a me relatar uma história de nossas madrugadas. “Que nada, a intenção era essa, mas já vamos parar. Semana passada, num só dia, fomos assaltados três vezes e a
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cada retorno menos grana eles levavam. Numa delas, até um travesti que faz ponto aqui perto veio com uma faca. Voltou ontem, ficou rondando o posto. Não dá mais, o patrão acha que não compensa”, me diz. E tudo vai ficando mais escuro e perigoso nas noites do velho centro de Bauru.
Sigo em frente e na padaria Villa Buena, bem ao lado da Maternidade Santa Izabel, tomo um suco acompanhado de um dileto amigo. Ao nosso lado, um casal e a moça com uma inscrição tatuada no braço direito, das grandes, ocupando um espaço considerável. Lá está um “Só Jesus pode me julgar!”. Com exclamação e tudo. Ela fala alto e mesmo não querendo ouvimos o motivo de sua
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alegria: “Vejam que dádiva, nosso filho vai nascer justamente no dia 25 de dezembro. Um predestinado, deve de ter alguma missão especial já preparada para ele”. Se estivesse a beber algo alcóolico, pediria outra e engoliria tudo de um só gole, sem jogar nada pro santo.
Sai dali em busca de ar puro e paro na Jalovi dos Altos (essa a do lado nobre – rico – da cidade, existe outra, a do centro, mais popular), a famosa livraria/papelaria da cidade. Queria renovar meu estoque de canetas para o Ano Novo. Questionei uma jovem vendedora sobre antigas promoções de livros, cito já ter adquirido uma grande quantidade deles dessa forma. Quase rindo, virando-se para mim com fala baixa, exclusiva, me diz: “Aqui é
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a loja dos Altos, atendemos os clientes das classes A e B e para esses não pega bem fazer promoção. Eles não gostam disso, nem de serem vistos vasculhando promoções. São chiques”. Fico sem meus livros baratos, mas os caros estão todos ali, diante dos meus olhos e distante de minhas possibilidades.
Paro na praça Rui Barbosa, bem no centro da cidade, em busca de um original Papai Noel e o encontro logo de cara. Celsão é um famoso artesão da cidade, re
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manescente de uma geração quase extinta de hippies (existem uns dez na praça com suas bijuterias e outras cositas), trabalhando em madeira, cortando uma peça com uma serrinha elétrica. Conversamos sobre o fato dele estar ali com um chapéu noelino e da alegria de tê-lo visto na revista Revista do Brasil (edição de outubro), quando afirmou ter sido um dos últimos a deixar o Festival de Águas Claras, realizado décadas atrás em Iacanga, 50 km de Bauru. Abre um sorriso e me diz, sem medo de ser feliz: “Aquilo foi tudo de bom, tinha cachaça, maconha e cogumelo a vontade. Não queria mais sair de lá. Hoje tô calmo, em outra, mas não abandono o estilo de vida. Vivo de minha arte e da calçada da praça”. Esse é meu Noel. Ainda na
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praça, observo em estado de puro êxtase algumas crianças se banhando no novo chafariz, diante de um calor de mais de 30º. Dá uma vontade difícil de ser contida de seguir o mesmo caminho. Imagino qualquer dia desses, Celsão e sua turma lá dentro d’água.
Circulo um pouco pelas ruas centrais do comércio e diante de um grande magazine, uma senhora fica sentadinha no chão, como tantas outras, com o gesto habitual da mão estendida aos passantes, todos muito apressados e com as mãos ocupadas. Do outro lado da rua, permaneço uns cinco minutos e nada, nem lhe notam a presença, mais uma das tantas invisíveis a ocupar as calçadas dos centros urbanos. Sua foto ilustra esse lado desumano das cidades, quando num momento de festa e contentamento, muitos compram e outros nem tem o
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que comer. Do retrovisor do carro se aproxima outro, com a mão estendida, velho conhecido, que não me reconhece e pede algo para sustentar “família grande, crianças doentes”. Dou o de sempre e sigo em frente, pois num dia como esse, minha mente fervilha com tantas outras coisas, que nem atenção para eles acabo dando.
Quem bate palma aqui em casa no finalzinho da tarde do dia 24 são os
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lixeiros da EMDURB. Recebo dois deles, o Marcos e o Valdemir, que haviam deixado um envelope personalizado com a fotos dos cinco servidores do lixo, devidamente identificados, onde deveria deixar minha gratificação natalina a eles. No envelope, além da foto de todos, um mensagem: “Não se engane com falsos coletores! – Entregue somente para os coletores que estão identificados no envelope...”. Ficamos conversando no portão e ele me conta: “É muita gente querendo tirar vantagem do coletor. Passavam antes de nós e na hora que batíamos palma para
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buscar nossa parte, éramos até xingados, pois muitos já o haviam feito antes. Mandamos fazer por conta própria o envelope com as fotos para diminuir o problema e ajudou bastante. Agora só é enganado quem quer”. Minha mãe coloca um valor e eu dobro, mesmo sabendo que eles estão empregados e recebendo 13º salário. Lembro que outro dia pegaram um gaiato que com o uniforme da EMDURB arrecadava gratificações de comerciantes do centro pela limpeza diante de suas lojas, mas nem funcionário era. Espertalhões existem aos borbotões.
Teria muitas outras, mas deixo para outro dia, pois hoje, dia de Natal, me chamam para o farto almoço. Levanto e ouço da rua um sorveteiro acionando sua buzina. Vou almoçar me perguntando: "Esse não pode escolher dia nem hora e até no dia de Natal tem que sair com seu carrinho pelas ruas, em busca de seu ganha pão. Triste sina a sua, não?".