quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

MEMÓRIA ORAL (80)

A REFORMA AGRÁRIA PASSA POR AQUI
Bauru está no epicentro do vulcão da denominada insolúvel Reforma Agrária brasileira. É que no último dia 26 de janeiro, políciais civis literalmente invadiram (sic) as residências de trabalhadores rurais sem-terra e os levaram presos. Os detidos haviam participado da ocupação da Fazenda que a Cutrale administra de forma irregular na vizinha Borebi. Irregularidades por irregularidades, esses ocuparam terras de alguém que as administram sem serem seus verdadeiros donos. Um imbróglio que já perdura há quase cem anos, desde que o Governo brasileiro comprou aquelas terras para distribuir a imigrantes. Elas não foram ocupadas na época e com o passar dos anos, grandes proprietários fizeram dela sua casa, com a ajuda da facilitação de documentos em cartórios e decisões judiciais escusas. Tudo culmina com o atual vulcão em erupção. O MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra quer apressar uma decisão favorável aos trabalhadores, diante de uma Justiça morosa para sua causa e rápida até demais nas decisões envolvendo o grande capital.

Os detidos moram em sua maioria em Iaras, distante quase 100 km de Bauru, mas a operação foi comandada pela polícia daqui e os presos vieram todos para cá, depois distribuidos em delegacias da região. A delegacia regional da Polícia Civil está aqui localizada e assim sendo, um grande ato público de desagravo à maneira como tudo foi conduzido ocorreu na cidade, no recinto da Câmara Municipal, na noite de ontem, lotando o local. Inicialmente proposto pelo vereador Roque Ferreira (PT), único presente entre todos os vereadores da cidade, o desagravo foi ampliado e ganhou conotação nacional, trazendo para a cidade muita gente interessada em discutir a questão. Dentre todos os presentes, os mais significativoas foram o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio (PSOL), uma das pessoas com maior esclarecimento sobre nossa questão agrária e Gilmar Mauro, o segundo homem na hierarquia do MST. Além dos próprios sem-terra de Iaras e outros assentamentos.

Marcado para às 18h, o evento lotou a casa em pouco tempo, mas só teve início por volta das 19h30, quando chegaram de incursões pela região as estrelas do evento. Roque comandou a mesa dos trabalhos e foi chamando ao microfone os convidados. Quem primeiro falou foi o deputado Raul Marcelo (PSOL) e foi logo na veia: "Prenderam quem defende a Constituição. A letra fria da lei serve a interesses, pois se existe uma lei maior que afirma a necessidade da reforma agrária, prenderam quem defende a lei. A mesma lei que deixa solto o Arruda, um Daniel Dantas, ilustres pedófilos, serve para libertar o corrupto e prender o defensor da Constituição. Foi uma prisão política, servindo aos interesses políticos do Serra e do agronegócio. Sem a reforma agrária não dá para fazer esse país".

O também deputado Simão Pedro (PT) seguiu na mesma linha: "O que ocorreu é uma ofensiva nacional dos setores que se opõem à reforma agrária. Levar a imprensa no local das prisões foi criar um espetáculo exagerado de partidarização do processo. Essa ofensiva visa intimidar os gestores públicos e criminalizar os movimentos sociais". Gilmar Mauro, um digno e preparado representante do MST, muito aguardado e querido por todos os militantes, esteve durante o dia visitando locais na região e permanece na quinta, quando estará com alguns dos setes presos. De sua fala, algo marcante: "Só continuamos vivos enquanto movimento por causa da solidariedade. Contestado, Canudos, Ligas Camponesas foram primeiro estigmatizadas e depois dizimadas. Se não resolver o problema, podem criar as medidas de contenção que quiser, não existirá como conter o descontentamento. Um dia a casa cai. Se eles quiserem acabar com o MST nós mesmos damos a fórmula, é simples, façam a reforma agrária. A Cutrale comprou essas terras ciente das irregularidades e a polícia usa o nome de Operação Laranja para sua ação. Deveriam ter vergonha, pois estão sendo laranjas de um sistema cruel. Estigmatizar e depois aniquilar o movimento, fazem isso não só com o MST, estão fazendo isso com a pobreza nesse país". No fim propõe a criação de um grande Tribunal Popular, onde ocorrerá o julgamento do roubo de terras e o latifúndio no país. Roque presidindo a mesa, acata de imediato a proposta.

A fala mais aguardada foi a de Plínio de Arruda Sampaio e ele não decepcionou: "Duas palavras. Essse país está muito errado, pois quem está fora está dentro e quem está dentro está fora. Roubaram a propriedade, conheço muito bem esse processo, fruto de negociata, esbúlio e tramóia cartorial. Esse imenso latifúndio do sr Cutrale precisa ser explicado. Quem são as pessoas que nada viram no passado, elas precisam vir à público. Me perguntaram o que achava de terem derrubado três mil pés de laranja. Eles tinham que ter derrubado trinta mil. Precisamos fazer demonstrações cada vez mais fortes. Terra é para ser ocupada. Sou favorável a uma CPI do MST, mas só se trouxerem nela o sr Cutrale e os juízes que seguram os processos. Não temos que ficar na defensiva. Os ofendidos somos nós, quadrilha é a Cutrale. Os trabalhadores foram presos porque defenderam uma causa justa. Um dia o povo vai virar isso tudo e botar quem tá fora para dentro e quem tá dentro para fora". Foi o mais aplaudido da noite.

Outros vieram, como os representantes das centrais sindicais, a CUT, Comlutas e Intersindical, seguindo na mesma linha. Duas outras pessoas emocionaram os presentes, na primeira dona Nair, esposa de um dos detidos, o trabalhador Anselmo, quando na sua simplicidade diz: "Foi uma gritaria desnecessária do delegado em minha casa. Foi um horror. Como é trabalhador eles chegaram em silêncio, como gatos e depois nos barbarizaram". Um personagem muito conhecido na questão agrária brasileira, o padre Severino, do assentamento de Promissão e da Pastoral da Terra foi o mais agressivo, fazendo questão de pronunciar sua fala em tom elevado: "Se tem ladrão nessa história, isso vem lá de longe na nossa história. Haverá o dia em que teremos justiça para todos. Vocês, juízes, delegados e policiais não vão tirar os nossos sonhos, pois até hoje ainda não construimos a nação que queremos. Praticar a justiça nesse país é algo para sofrimento. Passa Severino, vem Severino, nós vamos fazer a reforma agrária nesse país".

O microfone foi aberto para os presentes e no primeiro deles, algo significativo, quando ouviu-se uma crítica ao Governo Federal e nada sobre o Estadual: "Temos que ter consciência em saber o que está acontecendo de verdade e não blindar o governo Serra. É ele que temos que criticar, só ele". Foi uma cala-boca necessário, nas críticas seguidas de membros de uma esquerda sempre dividida. Num outro momento, outro alertou sobre isso: "Terminou agora uma eleição num sindicato daqui onde duas centrais se digladiram e as vejo aqui, unidas pela causa maior. É assim que deve ser". Sônia, representante da ABRAS - Associação Brasileira de defesa do Reforma Agrária leu um manifesto, onde todas as instituições presentes colocaram seus nomes e na sua fala algo preocupante: "Querem acusar o MST de ser marxista, como se isso fosse crime. Numa das casas dos detidos, um policial questiona a dona sobre uma estante de livros ditos vermelhos e lhe pergunta: 'Vocês são seguidores do barbudo', como se isso fosse proibido e algum mal. Voltou a ser perigoso ler Marx".

Umas doze pessoas fizeram uso da tribuna e em todos a mesma linha de ação e atuação, buscando uma forma de discutir as terras públicas federais e acelerar o processo de reforma agrária no país: "Precisamos denunciar o agronegócio como um retrocesso para o progresso no país. Ao encarcerar essas sete pessoas eles estão se achando vitoriosos, mas isso está servindo para unificar a todos nós. Estamos voltando a buscar coisas que nos unifiquem", disseram a seguir. Por volta das 22h o ato foi encerrado e muita conversa de bastidores teve início, além dos abraços pelos reencontros proporcionados pelo Ato Público. Gilmar Mauro foi fumar um cigarro do lado de fora e conversou com assentados de Iaras, deputados distribuiam panfletos de sua atuação, uma banca da Esquerda Marxista vendia publicações de esquerda, Plínio abraçava amigos antigos, como o professor Isaías Daibem e tudo terá solução de continuidade nos próximos dias. No carro de deputado Raul, um encontro entre ele, Gilmar e Plínio. Por fim, uma união mais do que necessária, pois o que mais se ouvia é sobre a revitalização da luta pelas causas sociais brasileiras. Mais um passo nesse sentido foi dado ontem em Bauru. E continuará sendo dado nos próximos dias.

5 comentários:

Anônimo disse...

Cadê a televisão que se diz imparcial e produz matérias e mais matérias só atacando o MST. Justamente no momento em que poderia mostrar o outro lado, nem passam na porta. Essa é a isenção deles? Esse é o jornalismo imparcial que tanto apregoam? Essa é também uma forma de Censura, a do bloqueio de informações, ou seja, nos passando somente as que interessam aos seus interesses. Estamos cada vez mais danados com uma imprensa que pensa e age dessa forma. Eles parecem serem os próprios latifundiários, o sr Cutrale em pessoa transfigurado neles, como bem disse o querido Plínio. Muito bom o seu texto.

Paschoal

Vinagre disse...

O interessante de toda essa história é que a imprensa como um todo e a TV Tem, especialmente, não mencionou, em nenhum momento, a grilagem de terras públicas pela Cutrale.

Anônimo disse...

Caro Henrique
Li sobre a Audiência Pública comandada pelo Roque sobre o problema da CUTRALE. Parabens pela excelente cobertura completa do evento e obrigado pela colher de chá. Valeu a pena. O problema da terra se arrasta, entre nós, desde o periodo colonial, com as capitanias hereditárias, a destruição dos nativos e o massacre dos negros. Foi uma noite memorável. Pena que a grande imprensa corporativa não deu as caras, movida que é pelas relações e compromissos de classe. Obrigado pela citação e parabens mais uma vez pelo seu permanente engajamento. Um abraço e saudações socialistas Isaias Daibem

Anônimo disse...

O nosso Estado Brasileiro, tão falado Estado "Democrático" de Direito tem agido assim mesmo. Aliás, quando ensino meus alunos sobre esta questão, sempre me atenho aos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. E começo mostrando a eles o que está na nossa Constituição:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
...
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Como isso na prática não acontece, resta a reflexão que faço com meus alunos: O EXECUTIVO (são os homens, ou seja, a POLÍCIA). O LEGISLATIVO (são as ARMAS). E o JUDICIÁRIO (são as LEIS).
Assim, toda vez que os trabalhadores urbanos fazem uma greve, os moradores fazem uma manifestação popular; os trabalhadores do campo fazem uma ocupação, logo aparece esse ESTADO "DEMOCRÁTICO" com seus homens empunhando as armas para fazer o povo cumprir as leis.
E a polícia com sua generosa truculência é a cara, o corpo, o braço desse estado.
Não podemos e não devemos aceitar esse desrespeito à nossa Constituição Federal de 1988.
Cabe, portanto, aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o dever de garantir o real cumprimento da Constituição e a fiscalização do atendimento da função social das propriedades, em especial ao que preve o "Estatuto da Terra" (Lei nº 4.504/64).
A propósito, não pude participar da Audiência Pública sobre a Reforma Agrária, e o curioso é que também não vi nehum canal de TV, nem Rádio, nem Jornal dar cobertura ao evento. Por que será??? De que lado estão???
duilio duka de souza zanni

Anônimo disse...

Duka, para fazermos os alunos entenderem como funciona o estado, é vital mostrar qual modelo de estado vivemos, um estado capitalista, e todas as suas leis e instituições serão para garantir a sua sobrevivencia.
A constituição deveria cair com uma revolução junto ao estado a que pertence, pois ela entre algumas belas palavras, serve para a manutenção do mesmo, não se faz reforma agrária com a constituição e esses estatutos são uma farsa para ingles ver, pura enrolação.
O MST daria uma ótima guerrilha armada se organizado assim fosse para derrumbar este estado e resolver não só o problema agrario mas todos os demais criados por esta merda de sistema.
O problema é não haver hoje estrutura para isso, já que os ditos "esquerdistas" cresceram e pelegaram, usam de discursos e movimentos como oportunismo politico, sem nada a ameaçar o tal estado de direito, ops, de direita.

Marcos Paulo
Comunismo em Ação