sábado, 31 de dezembro de 2011

CARTA (77)*
* Saiu publicado hoje no Caderno Geral, do Jornal da Cidade, Bauru SP, um texto meu enviado ao jornal e transformado em CRÔNICA DE FINAL DE ANO, com um destaque além do imaginado.

UM CORPO ESTENDIDO NA CALÇADA
Nessa época do ano a sensibilidade humana deveria estar mais aflorada, exposta à visitação e isso devido a tudo o que nos remete a esses eventos todos envolvendo as festas de final de ano. Moro num dos locais onde a concentração de problemas sociais é mais evidente, latente e pulsante. Você ser o próprio problema social é uma coisa, vivencia aquilo no seu dia-a-dia, pulsa nas próprias veias o que venha a ser a indiferença, a insensibilidade, a rejeição, o desamparo e tantos outros sentimentos inerentes ao ser humano. Uma coisa isso, outra o vivenciar ao lado de sua morada um extrato social de tudo o que muita gente só ouve falar. Resido ao lado da linha férrea e muito perto da estação rodoviária de Bauru e nesses dois locais, um conjunção (ou seria combustão?) de duas realidades, a dos mendigos e dos drogados.

Considero-os uma espécie de vizinhos, sem a mesma sorte que tive na vida. Nas conversas que travo diariamente com os mendigos, digo a eles que o meu diferencial para com eles é por ainda não ter desistido de resistir nesse mundo, onde dar murro em ponta de faca é apenas um aperitivo. Muitos se cansam de lutar por algo, que lá na frente se mostrou insólito. Caíram nas ruas e vivem num mundo a parte. Cada pessoa possui uma rica história de vida, as labutas todas e seus motivos para lá estarem. Alguns compreensíveis, outros não. Mas quem sou eu para julgá-los, sendo também considerado um desajustado dentro dos ditos padrões normais aceitos hoje em dia. Cada um mendiga ao seu jeito, eles num, muito mais sofrível, eu num outro e todos que me lêem noutro. Os das ruas vêm e vão como plumas ao vento. A maioria surge do nada e quando estabeleço um contato mais próximo, desaparecem, partem para não se sabe onde. Uns ficam mais tempo e em alguns casos, consigo até ajudá-los, dentro de minhas possibilidades.

Com os drogados algo mais difícil. Esses escolheram as proximidades da linha férrea como uma espécie de “quartel general” e circulam de uma forma diferente dos demais. Circular por cima dos dois viadutos, o JS e o JK e olhar para baixo dá uma tristeza infinita naquilo que nos resta de sensibilidade. Ver crianças entregues ao desenfreado consumo de drogas descabidas, vidas totalmente sem rumo, verdadeiros párias, os invisíveis de nossa sociedade, pois trombamos com eles e fingimos nem mais os visualizar. Com esses um contato mais difícil, áspero e incerto. Quando “limpos”, até conversam, expõem algo de suas vidas e quando “carregados” ou na “fissura”, como dizem, tornam-se arredios, até violentos, jogam pedras em nossas janelas, viram os lixos nas ruas, passam xingando e pedem acintosamente. Conviver com tudo isso é algo inerente a quem mora nesses locais. Eles têm seus códigos de conduta e vamos nos adequando, numa convivência meio que pacífica entre vizinhos. Eles do lado de fora de nossos muros, nós do lado de dentro.

Isso tudo para descrever o que sei da história de uma dessas pessoas. Uma moça, jovem demais, cabelos longos e ainda com a última pintura feita num salão, magra, esbelta, mas degradando-se a cada dia. Ela difere do resto, pois não circula em bando. Prefere andar só e assim acaba sobressaindo-se mais que todos. Conversa quando quer e com quem quer, arredia a extremo. Consegue uma fruta ali, um pão aqui, água no seguinte, comida adiante e faz de um pequeno quadrilátero seu mundo mais do que particular. A particularidade de tê-la observado com maior detalhamento é por escolher minha calçada para dormir. Quando cansada, junta o que arrebanhou no dia, deita enrolada nos seus andrajos e hiberna por longos períodos. Depois, do jeito que chegou, some. Ficam-se dias sem saber notícias suas e quando menos se espera, lá está de volta. Nos poucos contatos, sempre de cabeça baixa, não nos encara e pede meio como se tivéssemos obrigação de lhe ajudar (e não temos?).

Escrevo algumas linhas natalinas e a reverenciar o Ano Novo em nome dela e ao fazê-lo, reverencio a todos esses, que vivem numa espécie de manjedoura, escondidos num beco qualquer, sujos, mal cheirosos e buscando algo, que ainda não consegui identificar bem o que venha a ser. Penso em ajudar mais, estabelecer novos contatos, mas nem sei se é isso mesmo que eles querem e buscam. Antes de tudo, pouco fazemos para entender os males desse mundo, o que leva as pessoas a serem tão diferentes umas das outras, concepções tão distintas, um tendo tanto, outro nada, um buscando tudo, outro querendo tão pouco e não tendo nem isso. Para mim, a serventia de cada final de ano é olhar com mais carinho para esse povo das ruas, meus vizinhos, e com eles aprender a continuar sobrevivendo no próximo ano e nos demais.

2 comentários:

Anônimo disse...

ola henrique vc tem escritos otimos artigos nos jornais da nossa regiao foi muito profundo o artigo de finsl de ano no jc bom mesmo

Maurício Passos - Pederneiras

Anônimo disse...

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