MEMÓRIA ORAL (118)*
* Esse texto sai publicado na edição 690, 28/03/2012, da revista semanal CARTA CAPITAL, seção “Brasiliana”, nas bancas nessa semana. Por falta de espaço alguns trechos originais foram suprimidos e constam dessa publicação, com destaque em vermelho.
O ÚLTIMO COMUNISTA DE BAURU – No enterro de Arcôncio Silva uma breve trégua entre as correntes de esquerda.
Morrer faz parte da vida, ainda mais quando se tem no costado 96 anos. “Uma eternidade, mas a gente queria que isso pudesse se prolongar por mais um tempinho”, resume Zuleide Júlia de Souza da Silva, esposa do militante comunista Arcôncio Pereira da Silva, falecido em Bauru, interior paulista, na terça-feira 20, após padecer entre idas e vindas hospitalares, reflexo dessa feita de um implacável AVC.
Comunistas morrem todos os dias (embora não restem muitos por aí), de resto como qualquer ser humano. Mas surpreendeu o desfile de declarados esquerdistas diante do esquife. Vieram de todos os lados e eram de todos os matizes e cores, dos mais alvos, alguns desbotados, pouquíssimos em plena atividade e, pasmem, nenhum outro puro-sangue a igualar-se ao falecido. Arcôncio Silva conseguiu juntar diante de si o inimaginável em uma reunião de fundo partidário nos dias atuais. Sua vida foi toda assim. Impoluto cidadão, o nome de maior longevidade e resistência de uma ideologia dispersa, com fidelidade partidária mais do que claudicante.
“Igual a ele mais ninguém. E agora?”, era a mais comum das perguntas durante o velório. Na primeira página dos jornais locais expostos sob as cadeiras um momento raro: sua foto em ambos acompanhada de legendas elogiosas. Sinais evidentes do fim de mais um ciclo. “Restam quantos comunistas de verdade na cidade e região (poderia acrescentar no mundo)?”, perguntava Nilson Costa, dirigente sindical cassado em 64, jornalista e ex-prefeito da cidade, tentando quantificar o inquantificável.
Esse a unir tão disformes esquerdistas nasceu em Viçosa, no agreste de Alagoas e chegou ao Sul Maravilha, como tantos outros, em busca de um sonho. Vida acidentada, cresceu politicamente à base das bordoadas, resultado das escolhas na vida, a principal delas: permanecer ao lado dos menos favorecidos. Quando decidiu aderir ao comunismo, a coisa ficou pior e a dureza foi amplificada em incalculáveis decibéis, pois o lado doloroso sempre acabou sobrando para os dessa ideologia. Na greve da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, em 1949, foi demitido pela primeira vez. Ficou preso por semanas, acusado de agitação e conscientizar seus pares. Em uma das passagens pela cadeia, o militante viu uma senhora da sociedade passar poucas horas no xilindró, mesmo tendo sido acusada de assassinato. Ele, ao contrário, permanecia nas grades por simplesmente organizar os trabalhadores e sem chance de poder discutir o assunto com delegados de plantão. Essa a sina de sua vida.
Cassado após do Golpe de 64, quando atuava na Companhia Sorocabana, penou para colocar comida na mesa da família. Fez bicos variados até virar um famoso jornaleiro em Bauru. Resistiu bravamente, motivo do reconhecimento geral. Com o fim da ditadura e a anistia, recuperou o velho emprego (o salário perdido) na ferrovia. “A primeira coisa que fez foi juntar um dinheirinho e rever os parentes no sertão. Beirando os noventa anos e tantas décadas depois da partida, parecia uma criança no reencontro com os que restaram dos seus”, relembra a mulher.
A firmeza de princípios fez dele uma unanimidade. “Recebi ligação de desafeto declarado me avisando de sua morte. Fiquei sem voz, mas entendi tudo. Arcôncio foi maior que todos nós, talvez até juntos”, diz o blogueiro Luis Freitas. “Não se segurava quando via alguma irregularidade. Foi assim a vida inteira. Quantos não foram repreendidos por causa de vacilos e pisadas na bola. Quando isso acontecia, ninguém nem piava. Engoliam em seco”, relembra a merendeira aposentada e comunista em posição de descanso, Elisa Carulo Santos, a observar como alguns declarados desafetos cumprimentavam-se de forma acanhada no velório.
Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida decorava a parte frontal do caixão. Os presentes buscavam uma bandeira do partido para cobri-la. “Eu tenho uma, mas está tão desgastada... Será que pegará bem?”, disse a ex-vereadora e dirigente do PC do B local Majô Jandreice. “Essa é a melhor, surrada e usada, como a dos batalhadores. Uma nova destoaria de sua trajetória”, emendou o professor aposentado Isaías Daibem.
No momento do fechamento do caixão não houve jeito: após exaltados pronunciamentos de louvor ao morto, uma pregação e oração. A filha e uma sobrinha do falecido comunista são pastoras evangélicas. Professores, operários, profissionais liberais, políticos, engravatados, botinas sujas, gente suada e outras sem cheiro nenhum, todas num fervente e constante burburinho se espremiam no recinto. Vozes a lembrar com saudade de um alguém diferenciado da babilônia ali instalada. Poucos ao lado do corpo e lotação esgotada nas rodas do lado de fora. “Mas o assunto era um só, ele”, ressaltou Majô.
Nadir Ferreira Valente, perito-criminal aposentado, veio de Jaú, distante 60 quilômetros, só para rever o quase irmão: “Eu vinha de lá até aqui para jogar tranca com ele. Muita gente gostava dele, mas poucos o procuravam de fato. Ouvi tudo o que podia ter contado a alguém em vida. Ele queimou a vela até o pavio, até a última gota de cera”. A destoar, o desabafo da filha mais velha e compreensível na ação de devotados militantes: “Se foi sempre ótimo para com os amigos, em casa deixava a desejar. Teve sempre pouco tempo para ficar com a família”. Ninguém é perfeito, muito menos Arcôncio.
Alguns eternos companheiros tentaram resumir a importância do velho comunista. “Somos orgulhosamente herdeiros dele e uma responsabilidade muito grande para continuar sua luta. O militante não morre”, disse Daibem, procurando buscar um entendimento esvaindo-se como areia ao vento. O professor universitário Clodoaldo Meneghello Cardoso, promotor da II Jornada de Direitos Humanos de Bauru a realizar-se em abril, repetia para quem lhe cruzasse a frente, tentou conclamar a união: “Queria muito que o evento pudesse ser um momento de convivência da esquerda”. Cardoso não conseguiu. Para a maioria dos presentes, até possível, mas na saída, Arcôncio já enterrado, a ligeira trégua acabou. Na saída, um exaltado dirige-se a uma roda e desfere o claro prenúncio do que voltaria a ser o relacionamento entre alguns dos presentes: “Apesar das aves de mau agouro presentes, verdadeiras cassandras do negativismo, sobrevivemos”. Cada um foi para seu lado. E Arcôncio finalmente descansou. Bauru, de agora em diante não terá mais a presença do até então “segurador de pontas” e o desejo de Zuleide, a do prolongamento de sua vida fica confirmado como sendo mesmo a melhor solução para a continuidade da trégua, encerrada com a dispersão dos presentes.
E FINALIZANDO TUDO: Esse texto não tem a pretensão de dividir, mais do que já está, a dita esquerda bauruense (e brasileira). Arcôncio, uma das pessoas que mais respeito dentro de tudo o que vivenciei nos meus 51 anos de vida, representa algo que, quer queiramos ou não, está mais do que esfacelado. Vivemos num "balaio de gatos" e até "as pedras do reino mineral" (parafraseando Mino Carta) sabem que, mais do que inseridos dentro da crueldade capitalista, uma verdadeira raridade a pureza de sentimentos e de ações. Críticas, aceito todas, mas somente as que vierem com uma boa carga de "mea culpa", pois dificilmente existirão aqueles totalmente isentos. Esse um ótimo momento para reflexões variadas, inclusive as minhas (estou mais do que inserido no contexto bauruense da esquerda) e uma retomada de ação tentando se desvencilhar das amarras impostas pelo sistema onde vivemos. Não sou pior, nem melhor que nínguém, só enxergo tudo dessa forma e com bastante nítidez. Tapar o sol com peneira é algo que não me cairia bem com o passar dos anos.
domingo, 25 de março de 2012
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8 comentários:
Henrique. Parabéns pelo excelente texto. Totalmente esclarecedor!
Henrique
Eu não conheço muito bem os bastidores de Bauru, mas pelo que leio e pelo que vejo acontecer no resto do Brasil, não precisa ficar com receio nenhum, pois em Bauru acontece exatamente igual ao restante do páis. Muitos ainda se dizem de esquerda e até comunistas, mas seus atos já deixaram de ser a bastante tempo. Eu, que sou bauruense, voce sabe disso e moro há mais de seis anos na região de Presidente Prudente, por motivos profissionais, sei que Bauru possui uma grande quantidade de militantes comunistas, tendo tido um prefeito eleito pelo partidão, o Gasparini e depois, quand ode sau morte, o Tuga, que juntou todos no seu primeiro governo, muitos deles hoje estão em outra barca e são a eles que voce endereça o recado do seu texto. Qualquer dia alguns mais precisam ser desmascarados, pois de esquerda não tem mais nada.
Quanto a história do seu Arcôncio, parabéns por conseguir divulgar a nível nacional algo que estava somente restrito a Bauru e aos que o conheciam.
Paulo Lima
Henrique, meu amigo.
Estive ausente, como ausente estou de muitas coisas da nossa cidade, por questões de força maior.
Permita-me sentir-me representado por você em todos os cantos em que estiver. Não tenho nada que tirar nem por. Assino em baixo de tudo o que escreve aqui. Assim, me sinto presente.
Parabéns, meu amigo, pelo texto e pela sua capacidade de articulação com gente grande, importante, comprometida com o povo e com a verdade e principalmente HONESTA, como é o caso do MINO CARTA da nossa querida Carta Capital.
Viemos porque somos e estamos.
Abenção seu Arcôncio!!!
Henrique
Gostei muito.
Conhecia muito pouco do Arcôncio, pois quase nada lia sobre a trajetória dos comunistas na cidade. Uma valorosa pessoa, que na fisionamia lembra muito meu pai. Isso me encheu de saudade.
Ia te falar dos errinhos no texto, mas vi que você já corrigiu. Na revista ficou impecável. Ninguém poderá se sentir ofendido, pois o que vemos hoje é isso mesmo. Quem mais conseguirá reunir tanta gente em torno de si e todos a falar bem. A ideologia comunista resiste não por causa dos atuais, mas desses que a dignificaram.
Não desista. Siga em frente. Sempre.
Aurora
HENRICÃO
TEU TEXTO DÁ UMA CUTUCADA GERAL, MAS É ISSO MESMO. ATÉ OS VERMELHOS DE ONTEM JÁ ESTÃO COR-DE-RODA HOJE.
ARCÔNCIO, INFELIZMENTE, NÃO FEZ ESCOLA.
ROSANA
QUIZ ESCREVER
"CO-DE-ROSA" E SAIU ERRADO.
CORRIJA...
ROSANA
tudo verdade,meu amigo. especialmente sobre esta esquerda bauruense de m...
rosangela maria barrenha
Olá Henrique Perazzi de Aquino, acabo de ler o seu texto na Carta Capital. Bela crônica! Uma das facetas mais impressionantes do PC em São Paulo foi esta capilaridade no interior, este enraizamento em cidades às vezes muito pequenas (diferentemente de Bauru que é uma cidade de médio porte), graças a figuras notáveis como o Arcôncio. Não sei se conhece A Democracia Intolerante, de minha autoria (Arquivo do Estado, 2003), sobre a repressão aos comunistas durante os governos Dutra (1946-1951) e Adhemar de Barros. Nele também aparecem alguns militantes desse naipe. Grande abraço.
PEDRO POMAR
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