terça-feira, 15 de maio de 2018

DOCUMENTOS DO FUNDO DO BAÚ (115)


MOREIRA E OS EXEMPLOS DE ANTANHO PARA SER O QUE É HOJE - BAITA SER HUMANO
João Carlos Dias Moreira ou simplesmente MOREIRA, como todos o chamam, faz aquilo que gostaria de fazer na vida, ser CAIXEIRO VIAJANTE nesse insólito século XXI, beiradas do XXII. Ele revende produtos como faziam os antepassados vendedores, indo de local em local, conhecendo as pessoas, vendo os clientes nos olhos, apertando suas mãos, bebericando uma com cada um deles, algo já meio inimaginável nesses tempos ditos modernosos. Acabou por se especializar em comercializar produtos na beiradas de vilas, barrancas mais profundas deste país, principalmente em bares e armazéns da zona rural, num raio de 100 km da aldeia bauruense. Viaja diariamente para lugares perdidos no tempo e no espaço, come muito poeira, mas vive com o pé na estrada e faz o que poucos hoje fazem, une o útil ao agradável, conseguindo conciliar o serviço, o ganha pão com algo prazeroso. Moreira nos mata de inveja, mas aquela inveja gostosa. Bater um papo com ele é viajar sem ao menos ter saído de casa, algo lúdico, encantos mil.

Moreira passou em casa semana passada por dois dias seguidos e nos dois sentamos e ganhei muito, pois consegui se surrupiar algumas histórias. Ele as tem demais da conta. Conta uma inicial, sobre essa tal de TV Globo, uma que nos faz de bobos sem esboçarmos reação. Dizia ele, quando conversávamos sobre o mal que o neoliberalismo produz na mente do ser humano e alguns querem ser mais realistas que o rei. Ele havia acabado de assistir no dia seguinte no telejornal Hoje, aquele da hora do almoço uma matéria sobre a quebradeira geral da Argentina, o fundo do poço em que o salafra do Macri enfiou seu país, com um dólar chegando a valer $ 25 pesos e o tudo sendo entregue para o FMI tomar conta, ou seja danar a vida do povão, com sacrifícios mil. E querem fazer o povão enxergar que o culpado é o governo anterior, o dos Kirchner, um que tirou o país do FMI e, assim como Lula fez aqui, atendia anseios populares. Daí entra o Moreira com sua sapiência e me diz: “Primeiro mostram a derrocada da Argentina e para enganar o povão, mostram a seguir uma matéria sobre o Paraguai e como por lá a coisa neoliberal acontece, ressaltando das indústrias brasileiras indo se instalar por lá. Querem induzir que o culpado do fracasso de um e o sucesso de outro não é o neoliberalismo. Enganam só os trouxas, mas enganam, pois hoje tem trouxa até demais por aí”.

Isso foi só um aperitivo, pois na sequência veio o melhor de tudo, com duas historinhas de levantar poeira. Ele me dizia ter crescido em Garça e viveu sua infância vendo o avô trabalhar numa venda rural, lugar onde os graúdos, os fazendeiros e os endinheirados se reuniam no final da tarde para contar seus feitos, as vantagens conseguidas durante o dia. Ali bebiam e falavam de tudo e ele ali vendo a cena, aqueles senhores gordões, de suspensório, fumando cigarros de marca, botinas de cano longo, eles num canto e os pobres noutra, quase sempre do lado de fora. Num desses dias, um desses enxerga o garoto num canto e lhe pergunta: “O que quer ser na vida garoto?”. Ficou todo sem jeito e por causa disso não respondeu. O avô lhe veio em socorro e disse que o neto era tímido, não era dado a falar assim com gente importante. Logo acabou novamente esquecido num canto do lugar. Ele relembra e me rememora o que gostaria de ter respondido para aqueles todos, não o fez e hoje se arrepende. “O que gostaria de responder era que poderia ser muita coisa na vida, nada muito certo, mas de uma coisa tinha certeza, de não querer ser pessoas iguais aqueles senhores. Aquele jeito deles me causava repulsa, sentia por eles algo repugnante”.

Conta outra do mesmo local, algo vivido nas beiradas de Garça, onde desde menino ia na igreja do bairro e lá, ele mesmo me disse assim textualmente, “vivenciava as diferenças proporcionadas pela luta de classes”. A igreja aos domingos lotada e nos principais lugares os graúdos do lugar, esses chegavam e sentavam em lugares a eles já estabelecidos, sem existir a necessidade de ninguém guardar lugar, pois os da frente eram dos caras. O povão ficava ou em pé, rodeando os graúdos, encostados na parede ou quando tinham sorte sentados nos últimos bancos, bem ao fundo. Sua lembrança vai para um dia quando o padre carrega na homília e fala sobre os males deste mundo, das diferenças existentes e do lugar onde cada um deve estar na sociedade. Diz ser inesquecível, dessas coisas lembradas sempre, o olhar que esses deram para tudo o mais, como a dizer aos simplões, os pés rapados, como a confirmar o dito pelo padre: “Isso é para vocês, não para nós. Obedecer é o que lhes resta nesta vida”.

Isso tudo o foi modelando ao longo da vida e o fez ser o belíssimo ser humano de hoje em dia. Moreira vale mais, tanto no que faz, como nos exemplos de vida, na forma como toca a sua e conduz os seus, do que esses graúdos todos que se dizem os donos de tudo.

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