quarta-feira, 2 de maio de 2018

MEMÓRIA ORAL (224)


O “CHEFE” NA COZINHA DO ACAMPAMENTO MARISA LETÍCIA
De como o gaúcho Cruz caiu nas graças de todos no maior acampamento de resistência à prisão do ex-presidente Lula em Curitiba.


Já são mais de vinte dias da prisão do ex-presidente Lula junto à sede da Polícia Federal em Curitiba e no entorno dela uma inquebrantável resistência se faz presente. Impedidos de acampar nas ruas próximas, outros locais foram definidos pela organização para abrigar a todos. Um deles já se imortalizou pela forma como conduz a recepção e abrigo aos muitos que por ali aportam, vindos dos mais diferentes locais, todos necessitando de um porto seguro para a estadia ao lado de Lula. O Acampamento Marisa Letícia, distante aproximadamente 1 km do local de concentração, tornou-se também famoso após os tiros desferidos de um automóvel e ferindo dois de seus ocupantes. Um até então terreno sem ocupação definida por seus proprietários passa a ser o quartel-general, local de vigília e de passagem para boa parte dos que circulam alguns dias praticando um rodizio a denunciar o descalabro da arbitrária prisão.

Tudo no local é feito e mantido de forma planejada, nos seus mínimos detalhes, com uma estrutura enxuta e bem resolvida, cada um executando com denodo tarefas a eles determinadas. O acampamento foi levantado e é mantido por quatro equipes básicas de trabalho, as de Limpeza, Segurança, Manutenção e Cozinha. Essa última o coração do local, seu ponto nevrálgico e obrigatório de passagem de tudo e todos. Funciona internamente de forma ininterrupta, mas seus horários para atendimento aos acampados são basicamente dois, o do café da manhã, servido impreterivelmente das 7 às 8h (logo a seguir todos partem para o “Bom Dia Presidente Lula”) e o jantar noturno, esse dependendo dos atos do dia e do retorno de todos dessas atividades. Todas as placas indicativas de ações e atividades do dia são ali fixadas e comunicadas via microfone. Numa das placas está lá, “Sem bebidas” e noutra “Horário de Silêncio: 22h30m”. Tudo é seguido à risca por todos e os infratores, severamente advertidos, pois segundo ouço de um dos organizadores: “Ninguém está aqui a passeio. Todos sabem muito bem que nada aqui é festa. Estamos aqui por causa da injustiça feita com Lula e além da solidariedade, a missão maior é demonstrar a força popular. O exemplo nasce daqui e se espalha pelos outros lugares”.

Impossível circular pela cozinha e não se deparar com a forte personalidade do “Chefe”, como todos denominam o gaúcho de Santa Maria José Luzardo Cruz Brum, 43 anos, neto de três e pai de dois filhos e em Curitiba desde os primeiros dias após a prisão de Lula. Foi chegando de mansinho e conquistou a todos. Ele mesmo conta como se deu a chegada. “Eu sou Zeferino, o Sr. sabe o que é Zeferino?”. Ele mesmo responde: “É aquele que faz de tudo um pouco. Eu sou ligado a futebol, cheguei aqui e comecei a incentivar a molecada que vinham junto dos seus pais, um projeto com bola. Logo que o acampamento foi criado me interessei também pela cozinha, comecei a ajudar. Foi quando me disseram que não iria cozinhar, mas comandar. Entendi de cara o espírito da coisa e daqui não saio sem o Lula. O Marisa Letícia vai aonde o Lula for e eu vou junto. Tudo aqui é feito por convicção”.

Ele conversa enquanto prepara uma galinhada, o prato principal naquela noite, a do dia 1º de Maio, quando todos voltam das atividades com muita fome. Ao seu lado alguns ajudantes, todos absortos e envolvidos com o intenso trabalho. Mexendo a imensa panela com uma colher de alumínio, ele intercala a atenção com o que faz e segue falando sobre sua vida. “Sou oriundo nos movimentos sociais, CEBS, Pastoral da Juventude e hoje coordeno o Projeto Curumilha, de inclusão social através do futebol. São meninos e meninas até 16 anos. O nome do projeto é o de uma arvore típica da região, frondosa, grande e debaixo dela abrigo todos eles. De lá fui para dentro das escolas”. Interrompe a conversa, coloca uma concha cheia num prato e escolhe uma mulher à sua frente para provar o prato quase pronto. “Eu tenho que dar para uma mulher provar antes de servir”, diz resoluto.

Falta algo para finalizar e servir para a fila já se formando à frente do balcão principal da cozinha, colocada estrategicamente bem no centro do acampamento. Pergunto a ele, como além da questão do projeto social aprendeu a cozinhar. “Esse dom eu trouxe do militarismo. Fui do Pelops, o Pelotão de Polícia do Exército, por nove anos e lá fiz parte da equipe de cozinha. Aprendi a cozinhar para muitos e a trabalhar em equipe. Lá também cheguei a ser coordenador”. Seu jeito de dominar o ambiente de trabalho é admirado por todos. Basta pouco tempo por ali para ficar admirado com sua desenvoltura e o trato simpático, porém preciso, objetivo e direto. Conquistou logo a admiração de todos e se transformou num símbolo positivo do sucesso do local.

“Nunca trabalhei numa empresa por menos de nove anos. Por causa do FHC fui desligado do Exército e neste último emprego, operador de cinema, a tecnologia chegou e hoje sou mais um desempregado. Tocava meu projeto social, mas quando veio a prisão do Lula fui direto na casa da Ellen Cabral, a presidenta do PT em Santa Maria. Botei meu nome numa lista e vim. Vim e só saio daqui com o Lula”. Ele vai contando sua história sem desgrudar um só minuto a atenção das panelas e das pessoas ali ao seu lado. Um deles é Eliezio Alves Batista, 31 anos, também gaúcho, dizendo ter experiência em dez ofícios, mas tudo ter mudado ao se deparar com essa cozinha: “Eu fiquei impressionado com sua agilidade e me submeti logo de cara. Ele sabe o que faz, não maltrata ninguém. Sabe muito bem distribuir tarefas e pela forma como trata a todos, sem moleza, mas com respeito, doutor entra aqui e sabe que quem decide tudo é ele”.

Chama pelo nome uma das ajudantes conversando do lado de fora e lhe passa a tarefa de preparar a salada de tomates. “Não invente muito, óleo, tudo rápido, pois em dez minutos tudo precisa estar pronto”. Outra vai lavar a alface e ele, distribui mais água fervendo na fumegante panela. Quem havia limpado os tomates, tirando as sementes é outro voluntário, Alberto Pereira, de Bauru SP, professor de Educação Física e Capoeira, mais um dos muitos que, ao botar os olhos nos trabalhos no interior da cozinha não conseguiu permanecer parado: “O Chefe sabe exatamente o que vai fazer e o momento exato de cada ação. Não necessita de um monte de gente sabendo cozinhar, mas sim de pessoas ágeis, a executar o precisa ser feito e no momento exato. Ele te chama no ponto para cumprir aquela específica tarefa. Incrível, a adaptação coletiva é instantânea”.

Nisso o chamam num canto. É o coordenador de um grupo do interior de Minas Gerais, cujo grupo está prestes a pegar estrada, em no máximo meia hora e todos com muita fome. Determina que façam fila e serão os primeiros a serem servidos. “Botem eles já na fila. Ninguém vai embora daqui com fome. Se vieram para defender o Lula, eis o que podemos fazer por eles todos. Esse o mínimo que o acampamento podes lhes dar, segurança, tranquilidade e boa alimentação”. Durante a curta conversa, chegaram muitas caixas de papelão, doação vindas das mais diferentes origens, com alimentos e material de limpeza. Muitos trazem em seus carros particulares e tudo é deixado ali na entrada. Ele também organiza o armazenamento e sabe onde permanecerá guardado até a utilização, num amplo armário feito como tudo ali, com madeiras também doadas e a tradicional lona preta dando o revestimento. 

“Isso aqui não pode parar, a causa é mais do que nobre e ninguém pode sair reclamando da gente. Somos solidários, agimos como queremos ver esse país, como o povo precisa ser tratado. Aqui tem horário pra tudo, eu mesmo acordo por volta das 5h30m e vou até por volta da meia noite. Adoro o que faço e ainda acho que o Lula quando sair vai passar comer com a gente e vou lhe servir a pratada do dia”. São pouco mais de 20h e é quando delicadamente dá por encerrada a conversa, me dá um forte abraço e diz que agora precisa dar toda a atenção para quem está com fome. Começa a servir a longa fila e eu me dirijo para o seu final.

2 comentários:

Joao Pereira disse...

Eu tive a honra de dividir nao so uma grande amizade com este bagual fui coodenador de uma casa aqui em curitiba e o cruz foi coodenador da cozinha da casa eu como coodenador geral da casa.cruz e um cara carismatico um cara sempre bem humorado conheci meu amigo no marisa leticia num pedido de agua para o chimarrao que de pronto me sérvio a agua para minha garrafa as 05:30 da manha isso 3 dias depois cheguei la no dia 1 de maio 3 dias depois tive a honra de conhecer este meu amigo querido

Joao Pereira disse...

Meu amigo