terça-feira, 4 de junho de 2024

MEMÓRIA ORAL (307)


OUVI O DIÁLOGO DELES DISCUTINDO NA RUA E FUI ATRÁS... – ANDANÇAS PELAS QUEBRADAS DO MUNDARÉU
Eu sou do time dos que não se contentam com o pouco. Eu, inquieto por natureza, gosto demais das ruas, de seus personagens, mesmo quando para assuntar mais sobre algum assunto quase me meto em alguma confusão. Tenho algo dentro de mim a me levar para querer descobrir, desvendar, verificar in loco o que se passa. Nesta vida nem tudo são flores, aliás, pouca coisa são flores, pois do lado de fora de nossa janela existe um mundo a pulsar e nele, algo bem diferente da vida que levamos e tocamos adiante.

Estava eu estacionando o carro na feira dominical, ali na rua Julio Prestes, quando se aproxima o guardador de carros, um cara que nunca vi por ali, mesmo estacionando na mesma quadra há mais de anos. Encaro isso como algo dentro da rotatividade da vida, pois nada está parado, estático, tudo é movimento e se hoje o cara está aqui, amanhã estará acolá, trocam-se as carinhas de quem trombamos pela frente, mas a vida dura é a mesma, sem tirar nem por. Pois bem, parei o carro e ouvi o diálogo dele com uma mulher, sua conhecida, talvez algo muito mais que só uma mera conhecida:

- Sai daqui fia do diabo, tu atrapalha minha vida. Não te quero nem por um instante.

Ele tentava aparentar normalidade comigo, mas sei, estava também alterado. Rolar a vida como rolam estes vivendo na sarjeta não é bolinho e só mesmo com aditivos para suportar o insuportável. Tinham algo girando dentro de si, que muito bem podia ser um mero corote de pinga, como algo injetável ou mesmo fumável. Não tenho nada com a vida destes e diante da vida que levam, sigo a minha e os trato com a maior cordialidade.

Ela estava o mais desgrenhado possível, suja, maltrapilha e falando mole, lamentável dos pés à cabeça. Até queria tentar bater um papo, mas vi seria inútil e podia ser mal interpretado. Fingi demência, mas muito interessado nas questiúnculas ali apresentadas. Como alguém, naquela hora do dia, por volta das 9h30 da manhã, já se encontravam naquela situação, ou seja, não estariam assim durante todos os dias de sua vivência humana? Isso me corrói e assim, faço cera, invento estar buscando algo no carro antes de sair do local, tudo para sacar um algo mais. Não existe como resolver o problema destes só os observando, o buraco é muito mais embaixo, sei disso.

Puxo conversa com o cara. Ele mora nas imediações da Casa Pop, ali quase no cruzamento da Nuno de Assis com a Araújo Leite, Baixada do Silvino, que lhes dá apoio para as agruras da vida. Na verdade não me disse, mas observo sempre a morada de panos levantados bem debaixo da ponte, dos seus dois lados. Existe uma divisão de cobertores, seguros por pregos nas paredes, divisão de lares. Ele conhece aquilo tudo como na palma de sua mão. Conta que a vida está dura e que com os “cobres” conseguidos guardando carros, segue sua vida, bebe e come. Fala sem resquícios de maldade ou pudor. Não existe mais pudor dentre os moradores de rua, ou melhor, claro que existe, mas disfarçam bem. Aquele cobertores dividindo seus espaço é muito do pudor guardado dentro de cada um dos habitantes daquele apertado espaço de convivência humana.

Eu ouço isso tudo e fico, na maioria das vezes, sem saber o que fazer. Ele tenta conversar, mas a mulher não lhe dá folga, grita de longe, dirigindo a palavra para ele, como a dizer, “você me usou, agora que estou um trapo, não venha me descartar”. O cara finge não ser com ele e eu não sou bobo de tocar no assunto. Ouço sua história e fico de lhe dar uma boa gorjeta na volta da feira. Sigo em frente e na esquina, a mulher continua falando alto, consternada. Não consigo desviar o olhar, ela percebe e me pede algo:
- Tio, dá algum pra mim, vai! Eu tô numa situação que nem deus acredita. Judiada demais, quero ver se saio um pouco fora de mim.

Dou uma nota legal pra ela, que me arregala os olhos como querendo me abraçar, mas somos os dois contidos pelo inusitado da situação. Deve ter chegado na conclusão de que, na sua situação, ninguém a abraçaria, ainda mais numa movimentada esquina da feira dominical. Ela se afasta e vejo, precisa de gente pra lhe ouvir, escutar o que vai dentro de si, mas não naquele momento, na situação e no estado alcançado. Eu sempre olho bem para todos e quando os reencontro numa outra situação, tento uma melhor aproximação. Conversar é preciso.

Enfim, andei pela feira, circulei pelos seus corredores, não localizei o Carioca, o meu porto seguro por lá, livreiro do lugar, pois neste domingo, fico sabendo, não veio. Tinha festa no dia anterior e como segue sua vida sem a necessidade de abrir e fechar dentro de padrões estabelecidos, neste domingo, decidiu acordar mais tarde. Admiro muito estes, os que ainda conseguem não ser obrigados a levantar num certo dia e suar a camisa. Ele, sei disso, tendo o suficiente para os próximos dias, abre mão de alguns, tudo para continuar vivendo ao seu modo e jeito, meio que apartado do jeito convencional do qual estamos habituados.

Isto tudo me comove. É a forma encontrada por mim para me recarregar e continuar dando sentido à minha vida. Ruar é preciso. E na volta ao carro, lá estava o guardador, dei a gorjeta por ter olhado o carro e ele, disposto a contar algo mais de sua vida. Ouvi e saindo dali, estava novamente diante de outro mundo, o meu, bem diferente dos que vivem à margem de tudo. E como vamos fazer para deixar de existir essa enorme diferença entre todos nós, os seres viventes? No capitalismo, sabemos disso, impossível, não adianta nem tentar.
OBS.: As fotos são da Revista Metáfora (Memória FCA), 2020.

NEM SÃO PAULINO SOU, MAS ME ENCANTA A SENTIDA FALA DE ZUBELDIA, SEU TÉCNICO, ENTENDENDO COMO TUDO ACONTECE - GENTE LÚCIDA É OUTRA COISA
"O mundo está difícil economicamente. A riqueza está concentrada. Então, quando isso acontece em nível mundial, não é simples para o trabalhador pagar um boleto. Acontece aqui, na Argentina, em vários lugares do mundo. Pagar um ingresso para ver um jogo de futebol não é simples. Colocar 45 mil pessoas é para se ressaltar. Possivelmente, muitas dessas pessoas colocam como prioridade gastar o dinheiro para torcer pela equipe. Isso, nós não podemos ignorar. O futebol é, provavelmente, o espetáculo mais lindo em nível mundial. Nós temos que orientar, que sentir, que dar felicidade, vencer e entregar a melhor partida. Os torcedores não querem saber se jogamos bem ou mal, querem ganhar. Por isso eu desfruto o presente.", Zubeldia, técnico do São Paulo Futebol Clube.

ANOTAÇÕES SOBRE O MENINO PLÍNIO SCRIPITORE, 91 ANOS
Estive com eles na noite de terça, 04/6. Digo eles, pois neste dia dona Elza Scriptore fez anos e os reencontrei no salão de festas aqui do lugar onde moramos. Sim, tenho o prazer de ter como vizinho seu Plínio Scripore, este senhor, cara de menino levado, que já bateu a marca dos 91 anos e continua dirigindo seu imponente veículo pelas ruas aqui do bairro. O vejo diariamente circulando com seu cão pela praça aqui defronte e quem o vê nem imagina o que está por detrás deste imponente cidadão bauruense.

Ele é de uma geração que fez e aconteceu pela cidade de Bauru e tem muita história para contar. O bom de tudo isso é que, está disposto a sentar comigo e numa longa entrevista revivermos algo disso tudo, o passado onde esteve por mais de 30 anos ocupando um dos cargos mais disputados dentro da NOB - Noroeste do Brasil, o de secretário dos Superintendentes, este com maior importância que a dos prefeitos bauruenses. Plínio é advogado, porém dedicou sua vida inteira para suas funções na NOB, onde se aposentou. Fez e aconteceu também como diretor do time de nossa aldeia, o Noroeste, onde chegou a jogar e conta com todo orgulho, ter sido encaminhado para treinar no glorioso Flamengo do Rio, por indicação do escritor José Lins do Rego, que de passagem por Bauru, por ele se encantou.

Essa sua passagem meteórica pelo Rio de Janeiro, campos da Gávea deixaram nele marcas carregadas positivamente pro resto de sua vida. Fala disso com muito orgulho e me confessa numa das tantas conversas que temos pelos corredores da vida: "Se tivesse menos idade, teria o maior prazer em viver alguns anos no Rio de Jeneiro". Plínio carrega dentro de si parte de uma história bauruense ainda muito mal contada. Ele sabe disso e me deixa escapar na forma de drops, aos poucos, em pedacinhos, uma coisa ali outra aqui. É com imenso contentamento que, privilegiado pela sua proximidade, vou subtraindo algo dele e juntando os pauzinhos de algo consistente da história dos bastidores de quem de fato comandava a vida política, os tais donos do poder desta aldeia bauruense.

E como nem tudo é só a vivência política, Plínio pela sua posição ao lado do maior cargo da nossa maior empresa ferroviária, viu e viveu de tudo. Todos os ditos importantões que por aqui passaram, acabaram sendo conduzidos por ele para uma espécie de santuário existente na cidade décadas atrás, a Casa da Eni. Conhecia o lugar como poucos. Suas histórias são mais que saborosas e retratam bem como se dava o entrelaçamento existente entre nossos liustres visitantes e o que gostavam mesmo de fazer quando aqui na terra do maior entroncamento ferroviário do interior paulista. "Ele era o homem forte da ferrovia boliviana e seu secretário ligava semanas antes, me avisando sua estadia e o que faria no dia. Queria no final do expediente ir na Casa da Eni. Eu preparava tudo e o levava, ou melhor, levei todos", conta ele.

Este é o tipo de história que não pode ser perdida, não pode deixar de ser contada. Eu, na qualidade de historiador e registrador, sei que tudo só é válido quando ouvidos todos os lados. Este um deles. Conhecê-lo e juntar os pauzinhos com todos os demais, assim se dá a construção da história de um lugar. Ter Plínio, 91 anos, aqui ao lado de casa e vê-lo passeando com seu cão, com todas essas histórias lhe revirando as memórias é mesmo pra sentar, conversar, gravar, registrar e expor, numa forma de ter a verdadeira história contada nos seus mínimos detalhes. De tudo o que ouço dele, sei ser sincero nisso, me diz ter estado do outro lado, o do poder constituido e com a consciência tranquila afirma ter cumprido bem seu papel, ajudando muitos a se safar de problemas e assim, hoje sorri revendo onde já esteve metido. Neste momento ele sorri aqui na festa de sua Elza e já o imagino nas conversações que teremos em breve. Registrar os fatos por ele ditos será o o mínimo que posso fazer.

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