sexta-feira, 6 de junho de 2008

MEMÓRIA ORAL (36)
Quanto estou sem tempo livre, como nessa semana, publico aqui, algumas das histórias já escritas e que ainda não foram publicadas. Essa é uma delas e foi escrita em agosto do ano passado. Merece ser lida com atenção, pois retrata a vida de um bauruense de fino trato.

DARCY RODRIGUES, FONTE INESGOTÁVEL DE HISTÓRIA
Darcy Rodrigues é uma pessoa de estatura mediana, 65 anos, cabelos grisalhos, legítimo militante da esquerda brasileira e um personagem que viveu intensamente um dos períodos recentes da história desse país, quando pegou em armas contra a ditadura militar. Fez história e tem o que contar. Recentemente conseguiu obter na Justiça o reconhecimento de sua patente de capitão, por ter tido a carreira interrompida por motivos políticos. Além da patente no Exército Brasileiro, veio junto uma polpuda indenização e o pagamento mensal dos rendimentos advindos da patente atual. Os direitistas de plantão não aceitam isso e infestam a internet com agressões desrespeitosas a ele e outros na mesma situação. Alheio a tudo isso, Darcy conseguiu refazer a sua vida, vivendo hoje um dos momentos mais auspiciosos de sua trajetória.

A falta do soldo mensal não o impediu de ir à luta. Desde que voltou do exílio, não encontrou dificuldades elevadas para conseguir manter sua subsistência. Sempre foi um bravo, fruto da disciplina militar, da qual nunca se afastou. Sempre viveu uma vidas das mais espartanas, também fruto de outra disciplina, a da ideologia socialista, que nunca deixou de professar. Continua fiel militante, hoje ocupando um cargo na direção do PDT em Bauru (OBS.: saiu recentemente do partido, ingressando no PSB). Foi criticado tempos atrás, por trabalhar em administrações municipais de cunho conservador. Nunca se esquivou do fato, com a ressalva de que também, nunca deixou de ter liberdade de ação e de expressão, condição primordial para tudo o que fez na vida. Sempre soube que sua presença ajudava a referendar tais administrações e já que existia essa conotação, sempre fez questão de manter tudo o que fez, dentro da maior transparência possível. Tanto que, é desconhecido qualquer ato que desabone sua ação profissional no desempenho de qualquer função pública.

Na última delas, exerceu dois cargos de confiança na administração do atual prefeito, Tuga Angerami (sem partido). Sair com ele às ruas é um bom termômetro para avaliar sua popularidade e respeito profissional. Difícil andar mais de cem metros, sem uma abordagem de alguém conhecido, para um cumprimento ou para, simplesmente relembrar histórias em comum. Hoje, fora da administração municipal, devido a desentendimentos nos encaminhamentos das ações políticas, saiu atirando e pediu o boné. Preferiu assim e é exatamente assim, que gosta de conduzir sua vida. Nem por isso a atividade política foi interrompida, pois no PDT trabalha intensamente na preparação do partido para a disputa do próximo pleito municipal, no ano que vem (OBS.: Saiu do partido quando viu vencidas hipóteses de candidatura mais a esquerda).


A vida pessoal caminha dentro de uma tranqüilidade, nem sempre encontrada no passado. Sempre foi muito requisitado quando o assunto é algo sobre Os Anos de Chumbo, ou mais especificamente, o período da ditadura militar, que sucedeu o golpe militar de 1964. É que Darcy teve uma participação das mais intensas na chamada luta armada, que desencadeou-se pelo país no final dos anos 60. Foi um dos mais conhecidos militantes da VPR - Vanguarda Popular Revolucionária e uma, se não a pessoa mais próxima do lendário capitão Lamarca, um dos mais bravos na resistência armada ao regime de exceção. Esse contato transformou sua vida.

Passados esses anos todos, parte dessa história ainda não foi devidamente contada. Ou se foi, sempre faltam novos detalhes para o total esclarecimento de tudo o que ocorreu de fato no período. Como personagem vivo da história, Darcy é procurado por jornalistas das mais diferentes matizes e abordagens. Todos querem sua opinião, sua versão sobre os muitos episódios onde foi protagonista direto. Desde o retorno do exílio, perdeu a conta das vezes em que deu entrevistas e depoimentos para livros, teses, matérias jornalísticas e trabalhos sobre o ocorrido no período. Não sonega informações sobre sua experiência de vida, principalmente aquelas meio desencontradas, fazendo questão de dar sua versão, sempre firme, sobre cada episódio onde foi um dos ativos personagens.

A última entrevista concedida aconteceu dia 01/08/2007, em sua casa, para uma equipe ligada à TV Cultura, comandada pela jornalista e pesquisadora Flavia Baldi e dois técnicos de uma produtora, sendo bem específica. Flavia já havia estado com Darcy há 4 anos atrás, quando fez um trabalho de conclusão de curso na faculdade, sobre a Guerrilha do Vale do Ribeira. Recebeu tantos elogios e o incentivo final e definitivo veio agora, com a possibilidade de um documentário sobre o tema ser exibido na TV pública. Equipe montada, entrevista confirmada, tudo acontece numa manhã de quarta, no mesmo dia do aniversário da cidade de Bauru, 111anos, onde reside. A sala de sua residência se transforma em um pequeno estúdio, onde por mais de três horas o tema foi destrinchado. Darcy começa a conversa contando passagens pouco usuais, quebrando o gelo e um pouco da seriedade e sisudez da grande maioria dos relatos feitos até então, quando o tema discorre sobre nossa experiência com guerrilha urbana.

Conta o ocorrido com um companheiro, que logo após uma operação ocorrida com sucesso nas ruas, diz ter sido ele o único alvo, com todos os tiros vindo em sua direção. Sorrindo ele diz que lhe respondeu: "Pudera, você foi o culpado, como se apresenta para uma ação de rua com uma camisa vermelha. E ainda o ouvi retrucar com um: Mas por que não me avisou?". Conta outra, quando estava sendo torturado e percebe que os fios da maquininha de tortura, embebida em um algodão molhado se soltam da tomada. Ele continua gritando, até que um dos torturadores percebe: "Você é bem sacana mesmo, hem!". Hoje é fácil rir disso tudo, mas ele o faz com uma galhardia bem própria, de quem tem autoridade para tanto.

Flávia trouxe um pré-questionário preparado, mesmo tendo muitas das passagens já sob domínio, pois estudou com afinco o tema e entrevistou outros personagens. As respostas fluem fáceis, existindo um clima fraterno, de pura cordialidade e entendimento entre entrevistadora e entrevistado. Iniciam pelo período de preparação do golpe, ele em si e os primeiros anos sob o regime militar, desembocando na criação da VPR– Vanguarda Popular Revolucionária. Darcy enfatiza que a VPR surgiu fruto da união de militares, operários e de intelectuais da POLOP, que rachados, juntaram-se dando forma ao heterogêneo grupo. A passagem vivida dentro do exército, a militância dentro e fora da caserna, a aproximação com Lamarca, o fechamento do cerco, quando "tentaram domesticar os sargentos", tudo foi sendo resgatado. Desse período lembra com imensa saudade do sargento Jason, "um anjo da guarda" e do cargo que ocupava, cuidando do patrimônio do quartel. Daí, sempre fazia algo sobrar para a organização: "Tudo o que era para ser destruído, acabava ficando conosco".

Com o AI-5, por mais discretos que tentassem ser, a prisão era eminente, questão de dias.Uma data foi marcada para a deserção e teve que ser antecipada para 24/01/1969. Aqui Darcy esclarece algo controverso. Ele não estava no quartel quando Lamarca saiu com as armas: "Muitos ainda citam por aí, que estava nessa ação, mas já estava fora". Diz também que a fuga da família para fora do país foi bem planejada, pois não poderiam correr riscos. A clandestinidade advinda a partir daí recebe uma definição bem objetiva: "Festejávamos a cada instante o minuto seguinte. Éramos presos soltos". Lembranças desse período existem muitas, talvez a mais significativa e dolorosa seja a envolvendo Carlos Roberto Zanirato, um companheiro, que preso e torturado, foi encaminhado a um fictício ponto onde supostamente se encontraria com ele. Quando se viu só, num ponto de ônibus, atirou-se debaixo das rodas: "Ele inventou o ponto para se suicidar. Carregarei comigo essa morte até o fim, pois fui eu quem o trouxe para a luta e sua morte foi das mais dignas". Outro tópico, que não poderia ser esquecido, eram as necessidades, sempre presentes de numerário: "Tínhamos obrigação de prover tudo o que a organização precisasse. As nossas ações sempre foram realizadas sob muita tensão, mas não podíamos transparecer isso para o grupo". A mais famosa dessas ações, foi a realizada junto ao cofre na casa da amante do Ademar, então governador paulista e corrupto confesso. Ali foram levantados mais de 2 milhões de dólares. "Foi esse dinheiro o financiador da guerrilha rural no vale da Ribeira. A VPR tinha como norte a criação do Exército Popular revolucionário, sendo a guerrilha usada para a formação de quadros. A idéia sempre foi termos um campo de treinamento, como base de formação", destaca Darcy.

Flávia e Darcy adentram o ápice motivacional do encontro. A ida para o vale da Ribeira, a compra do sítio e as condições mínimas para a guerrilha rural de fato. Discorre também sobre o erro de haver levado para o campo pessoas, que não estavam totalmente convencidas dessa necessidade e de outras, que não tinham conhecimento completo da organização. Cita um caso: "Celso Lungaretti foi para a primeira área, não se deu bem, voltou para a cidade e nem conheceu a segunda". Darcy faz questão de ressaltar, que desde a saída do 4º Regimento de Infantaria do Exército, seu destino sempre foi o campo, somente consolidado nesse momento: "Participei da guerrilha urbana, pela falta de condições iniciais da ida para o campo". Na qualidade de militar por formação, para Darcy, essa ida ao campo não foi difícil. A adaptação a uma situação extrema e o contato com armas era uma prática cotidiana em sua vida de militar. O campo de treinamento recebeu o nome de Marighella e por medida de segurança foi dividido em dois, com a Base Carlos Zanirato, sob o comando de Darcy, tendo 9 pessoas e a Base Eremias Belizoikov, sob comando de Yoshitame Fujimori, com 8. "A comunicação era precária, rudimentar e o treinamento consistia, nos dias da semana em teoria e prática e nos finais de semana, só teoria", conta Darcy. Aqui, ele conta que Lamarca sempre teve ao seu lado um potente rádio e foi muito questionado sobre o único problema de relacionamento com o grupo, "onde existia um entrosamento muito grande", com a presença de Iara, sua companheira no local. Por fim, ela apresentou problemas de saúde e deixou o sítio antes do Vale cair.

A sucessão dos fatos a seguir, como a prisão de Mário Japa, o retorno de Lamarca à cidade, o seqüestro do diplomata japonês e logo a seguir a queda de toda a guerrilha, são narradas sob forte emoção. Após sua prisão, diz ter ficado uma semana estaqueado no chão, depois à OBAN – Operação Bandeirantes, ficando numa solitária de aço. Foram exatos 57 dias em prisões variadas e isolado de tudo e de todos. "Pelo barulho da portinhola se abrindo com a chegada da comida, contava as pancadas das portas, 8, 9 vezes o mesmo som, me orientava e sabia o número de celas e de pessoas presas", emocionado, conta Darcy, sobre a prisão na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro. Além da tortura física, a psicológica, também foi muito cruel: "É algo inimaginável, você não ter nada nas mãos para ler. É um castigo". Tudo desemboca no seqüestro do embaixador alemão, sendo incorporado ao grupo no último momento, quando todos os demais já estavam reunidos há mais de 72 horas. Daí, a saída para a Argélia, uma rápida passagem por países europeus e finalmente, Cuba, onde fixou residência.


A partir do desenlace, que foi a saída do país, Flávia recapitula os tópicos merecedores de melhor esclarecimento. As interrupções foram mínimas, somente para uma água, um pigarro indesejável ou a ida ao sanitário. Tudo foi filmado quase que de uma só vez, com a invasão do horário do almoço, que passou quase despercebido. Nesse momento, Darcy traz à sala alguns documentos pessoais, como cópias de fichas do DOPS e depoimentos variados, que manuseados, prolongaram a conversa. Nesse momento, são citados dois nomes, o de Lungaretti e de Maria do Carmo Brito, como prováveis delatores da localização do sítio no Vale aos repressores, porém, até hoje gerando controvérsias e isso também estende o papo. A reprodução de algumas fotos suas, retiradas dos arquivos da repressão, mostram Darcy no dia da prisão no vale da Ribeira e servem para as considerações finais. O intuito da vinda da jornalista Flávia estava alcançado e a partir daí, seguiria para mais uma entrevista, com o também guerrilheiro Ariston Lucena. Ela já havia entrevistado o coronel Erasmo Dias, carrasco do Vale, Celso Lungaretti e um grande companheiro de Darcy, José Araújo Nóbrega.

Momentos antes da despedida, ele entrega a todos um pequeno e valoroso mimo, ou melhor, uma relíquia, a reprodução de uma carta, datada de 1970, escrita por Lamarca, endereçada a ele e que lhe foi entregue no exílio cubano. Ali, além de outros assuntos, uma pequena reflexão sobre os resultados da experiência da VPR com guerrilha rural. A conversa foi conduzida até o portão e as despedidas foram ensaiadas várias vezes. A cada momento, algo novo surgia e o papo prosseguia. Quase 14 horas, Flávia e os dois técnicos se foram, deixando Darcy diante do seu portão, com lembranças dolorosas a lhe embrulhar o estomago. Percebe-se claramente, que reviver isso tudo, principalmenteas perdas e derrotas ocorridas pelo caminho, nunca serão totalmente digeridas e cicatrizadas. Com a voz ainda embargada, atende ao telefone e se prepara ir almoçar. De resultado prático e imediato, a constatação de que a história de Darcy, merece ser contada nos seus mínimos detalhes, pois foi presença constante em várias ações de âmbito nacional, sempre despertando muito interesse, principalmente histórico. Ele sabe melhor que ninguém, que terá que tocar em pontos polêmicos, que vez ou outra são levantados por aí. Um deles, o justiçamento do tenente da Polícia Militar, Mendes, no Vale, nem foi tocado nessa entrevista. Será a oportunidade de dar a sua versão, encerrando o assunto ou gerando mais discussão. Claro, que quando isso for feito, além da rica história, deve-se levar em consideração um desejo dele, o de não deixar de lado os fatos hilários, as amenidades, que serviam para quebrar a tensão dentro dos aparelhos. Afinal, por mais seriedade que deva existir na retratação da história de nossa luta armada, não podemos nunca deixar de lado, algo que nos foi ensinado por um mestre nessas coisas de guerrilha: "Endurecer, sem perder a ternura, jamais!".

2 comentários:

Anônimo disse...

DARCY É DE LUTA, FIBRA E CORAGEM.
E CONTINUA NA ATIVA
MÁRCIA

Anônimo disse...

A verdade seja dita,um terrorista contar vantagem depois de 30 anos, sugere que são falsos idealistas e que queriam levar o Brasil a uma segunda cuba. graças aos militares estamos livres destes pestes. Brasil acima de Tudo