domingo, 22 de junho de 2008

MEMÓRIA ORAL (38)
Esse texto foi escrito em 2007 e como ando com meu tempo um pouco corrido, cheio de idéias para novos textos, mas sem poder concretizá-los, acabo publicando alguns que estão na gaveta.

QUANDO, ONDE E PORQUE DEMOLEM UMA CASA
A casa era localizada no cruzamento das ruas Gustavo Maciel com Inconfidência, bem defronte o prédio do CIPS - Consórcio Interestadual de Promoção Social. Escrevo era porque foi demolida recentemente, após a ocorrência de um assassinato no seu interior. Estava desocupada fazia um bom tempo, servindo de abrigo para mendigos e moradores de rua. Freqüentada por muitos deles, que vivem gravitando naquela região próxima da estação rodoviária e da linha férrea de Bauru. Após a morte, acredito que por sugestão da Polícia Militar, para evitar novas ocorrências, os proprietários colocaram tudo abaixo, existindo hoje, só o muro e o quintal todo ocupado com o que restou da demolição.

Durante muitos anos ali foi a residência da família Filipini e após o falecimento das duas herdeiras, as irmãs Elza e Alzira, a casa foi fechada. Isso foi há quase 20 anos atrás e de lá pra cá, ainda foi alugada por um certo período. Por problemas de inadimplência no pagamento, o inquilino foi despejado e a casa não mais foi alugada. Ano após ano foi sendo invadida e ocupada de outra forma. Lugares próximos de estações rodoviárias são pontos freqüentes de mendigos, desocupados, gente desprovida de grana, que à noite procuram um lugar seguro para a pernoite. Os novos freqüentadores, que descobriam o abrigo, iam divulgando no boca-a-boca o local e um verdadeiro rodízio passou a acontecer por ali. Durante todo o tempo que esteve fechada, na situação de abandono, era freqüentada pela população denominada de "invisível", justamente aquela que está ao nosso lado, mas a ignoramos ou fingimos não notar sua presença.

Na casa tudo foi se degradando, com portas sendo danificadas, vidros quebrados e o mato tomando conta do quintal, num abandono total. Virou mais um dormitório de desabrigados. Eles circulavam cada vez mais pelo local, sendo que numa noite, quando o polícia foi chamada, mais de doze foram retirados de lá, causando espanto na vizinhança, que nunca imaginava tanta gente dormindo ali ao lado. Muitos eram conhecidos da vizinhança, tanto que um vizinho desabafou na época: "Foi horrível ver cada um deles tentando encontrar o seu caminho, totalmente perdidos no meio daquela noite suja". Jurandir era um desses moradores, batendo cartão no portão de todas as casas da região. Sempre foi sincero, pedia para a pinga. Muitos davam, afinal era mais um "vizinho", certo que diferente, magrelo, barba comprida, sempre muito sujo e quando mal humorado, de boca suja. Dona Eni é uma dessas vizinhas que sempre davam algo para ele e outros irem matando a fome. Um dia foi repreendida por policiais, que lhe pediram para não dar mais nada para eles comerem, chegando ao despropósito de insinuar ser ela uma das culpadas por eles continuarem pedindo no quarteirão. "O que esse policial quer, que deixe esse pobre coitado morrer de fome? Ainda tenho coração e se não lhe der algo quando me pede, nem conseguirei dormir direit odepois", afirma Eni, indignada.

Quem possui um pouco de sensibilidade com a realidade das ruas age do mesmo jeito. Ela morria de tristeza a cada reencontro com Jurandir, cada vez mais degradado, a podridão em pessoa e mais invisível. Afinal, nem aparentava estar ele logo ali, na casa quase ao lado da sua. De um dia para o outro Jurandir desapareceu, alguns comentaram que foi internado, outros que foi em busca de outros ares. Dele, não se tem mais notícia, porém, outros continuaram ocupando o espaço antes ocupado por ele. Ele se foi, outros vieram. Próximo de situações assim sempre existe um bar, onde a turma se reúne para gastar os tostões conseguidos. Fica sendo o ponto de encontro, onde rola o bate papo e correm as informações dos locais seguros pela redondeza para abrigo.

O dessa região é o bar do Hélio, logo ao lado da linha do trem. Eles não saem de lá, pois o seu Hélio vive do seu comércio e trata a todos bem. Um desses freqüentadores era o Birigui. Esse tinha algo mais que o diferenciava dos demais, pois andava no bolso com uma carteirinha, comprovando ser engenheiro. Seu nome, Wainer Aécio Minimi, 48 anos, formado na antiga FEB de Bauru e que após alguns tropeços da vida se viu na rua e nela foi ficando. Virou mais um deles, mas todos sabiam ser ele um letrado. Frequentava tanto o bar, como a casa dormitório. Numa noite, após um desencontro, onde rolou cachaça de mais e conversa de menos, ficou estabelecido um atrito com outro morador de rua. E no escuro da noite e na reclusão da tal casa, o desentendimento gerou golpes em sua cabeça, possivelmente por um caibro e tijolo, além de facadas no seu pescoço. Birigui morreu ali na noite de 16 de junho de2007.

Na manhã seguinte, a polícia foi chamada e muita gente foi ver o que havia acontecido. O fotógrafo Cristiano Zanardi, do jornal Bom Dia, estava no local a trabalho e viu o corpo esfaqueado no interiorda casa: "Ele está irreconhecível. Foi bárbara a coisa. O cara está desfigurado e fotografei tudo". Essa foto não saiu no jornal, mas a notícia saiu e foi matéria das TVs, afinal, não é todo dia que morre um mendigo engenheiro. Na semana seguinte, nada mais foi divulgado sobre o assunto. Talvez o criminoso já tenha sido identificado e preso. O fato é que a tal casa, que já estava em petição de miséria, com o assassinato havia ficado definitivamente estigmatizada.

Quando baixou a poeira, os moradores de rua voltaram a circular por ali, mas não demorou muito e tudo veio abaixo. Uma empresa de demolição fez o serviço e em três dias, a casa foi totalmente colocada no chão. Janelas, portas e tijolos foram sendo recolhidos, sobrando só os restos indesejáveis. A calçada da frente foi refeita e onde antes existia uma casa, hoje existe um vazio. Se quiserem saber, até a freqüência de mendigos diminuiu no quarteirão. O bar do Hélio continua sendo freqüentado pela mesma clientela e durante um tempo foi visto por lá uma placa com os dizeres: "Vende-se". Com toda a certeza, os invisíveis transferiram seu temporário domicilio para outras paragens e o terreno vazio deve estar aguardando a chegada de uma placa com os mesmos dizeres do bar. Trágico o destino trágico dessa casa e de Birigui, o engenheiro. Já do Jurandir, quem saberá?

Henrique Perazzi de Aquino - Bauru SP, 12 de agosto de 2007.

Um comentário:

Anônimo disse...

EU JÁ MOREI NESSA CASA.
SENTI MUITO QUANDO A VI NO CHÃO.
TORÓ