UM CÃOZINHO QUE VALE O QUE COME - publicado na edição 270 da Revista do Caminhoneiro - agosto 2010
Dia desses escutei uma história de caminhoneiro das antigas. Fiquei a apreciar a delicadeza do relato, feito com grande esmero por um amigo. O que mais me chama a atenção em algo desse tipo é a sua singeleza, pois traz em si a pureza do homem das cidades do interior brasileiro. Relembrar isso tudo é valorizar um estilo de vida mais simples, menos rebuscado e onde o ser humano sempre é o protagonista das ações. Enfim, chega-se a conclusão de que não é preciso muita coisa para estar diante da tão buscada felicidade.
Benedito Ramos Oliveira, ou melhor, Dito Guasca transportava algodão com seu antigo FNM (que o brasileiro popularizou como Fenemê), isso entre os anos 60 e 70, em pleno interior paulista, lá pelos lados de Reginópolis. O manuseio era feito totalmente a mão, sem auxílio de equipamentos, sempre executado por ele próprio e seu inseparável cão, o Mimoso. Tudo na força bruta, da mesma forma de domar um touro à unha. Todas as etapas envolvendo a preciosa carga eram realizadas diariamente e tendo ele como protagonista, junto de outros de sua família. Supervisionava e executava tudo, desde a chegada do algodão colhido, a colocação na carroceria, o transporte e depois o descarregamento, conferência e até o recebimento do combinado. Essa era sua vida, seu ganha pão. Vivia disso.
Quem o via na lida, com seus 60 quilos, magrinho, não imaginava a força contida dentro daqueles tesos músculos, conseguidos ao longo dos anos de labuta. Com a repetição do processo, fazia tudo já de uma forma um tanto mecânica, com pequenas alterações. Nada a alterar muito a ordem das coisas. Executava aquilo com o maior gosto e sempre acompanhado de um único parceiro, o Mimoso, personagem importante em sua vida de caminhoneiro. O cão havia sido encontrado numa das viagens e dele não mais se separou, virou amigo de todas as horas, inclusive nas andanças estradeiras de um lado para outro.
Muito esperto, como também honesto, Dito Guasca chegava a praticar o escambo, a troca de sua mercadoria por outra de sua necessidade, mas tudo dentro de certo limite de tolerância. Bom de barganha, diziam que de uma bicicleta velha, saia um caminhão, ou seja, sabia ir construindo aos poucos o seu patrimônio, como foi a história da aquisição do caminhão e de sua morada. Sabia, na verdade, é tocar a vida, feita com gosto e contentamento. Vida simples, bem vivida.
Mas tudo isso aqui foi contado só para poder chegar numa história (com H mesmo, pois é verdadeira), contada por um sobrinho distante, passados mais de quarenta anos dos fatos. Desde quando encontrou o cão, tomou uma decisão, a de sustentá-lo com um algo mais conseguido da revenda do algodão. E assim foi feito. De comum acordo com os outros negociantes, no momento da pesagem da carga, o Mimoso subia em cima da carga, já sob a balança e tudo era pesado com o animal e sem ele. A diferença era sempre pequena, mas daquele pequeno valor, saia a subsistência de Mimoso. E ele parecia entender o que estava acontecendo naquele exato momento, pois subia no alto da carga e latia em alto e bom som, sob risadas de todos. Dali saiam para comprar as guloseimas para tão dedicado auxiliar.
A rotina virou lenda por aquelas bandas, a do homem que sustentava seu cão com seu peso sob o algodão. Como nem todas as histórias possuem final alegre, num dia, num descuido nunca entendido, Mimoso desapareceu num posto de combustível. Foi do mesmo jeito que veio, de forma inexplicável. A procura foi intensa e mobilizou uma imensa legião de caminhoneiros. Sumiu na poeira do tempo. Tristeza de seu Dito Guasca, que nunca mais encontrou outro fiel companheiro de boléia como aquele. Continuou fazendo suas viagens até não mais poder e quem agora revive isso, contado que lhe foi pelo próprio protagonista, é aquele sobrinho distante, Fausto Bergocce, o ilustrador desse texto, que conviveu com seu Dito e chegou a brincar com Mimoso quando moleque. Dia desses me contou essa história num bar e nem a imaginava sendo aqui retratada. Agora está a mesma imortalizada para todo o sempre.
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