sábado, 3 de outubro de 2015

FRASES DE UM LIVRO LIDO (96)


A ALMA DAS RUAS CONTIDA NUM TEXTO - NOS LUGARES E PESSOAS DE MINHA ALDEIA
Lendo muito para o mestrado. Dentre as muitas leituras, um livro que já li e reli várias vezes, “A alma encantadora das ruas”, obra imortal do João do Rio. São crônicas do início dos anos 1900 na então Capital Federal, o Rio de Janeiro, mas nos seus lugares, situações e personagens com o viés de ver e entender as misérias humanas. O autor foi um autêntico flâneur, percorrendo becos, vielas, botequins, tortuosos caminhos, atento observador das misérias, tudo para relatar com fidelidade o que de fato ocorria nas ruas. Do livro extraio a sua frase mais linda e significativa, “EU AMO A RUA”. Busquei o livro, pois nessa edição em minhas mãos, a de 1991, um ensaio o abre, “A RUA” e ali muito do que faço, busco e me preenche intelectual, social, políticmente e como também não fico sem descrever meus relatos das trombadas que vou tendo, produzo algo com o que fui presenciando nessa semana, tudo junto e misturado com o que retiro do livro. Na mistura, algum entendimento, talvez elucidação dos meus motivos. Quando os trechos estiverem entre aspas será obra do João do Rio e sem aspas é coisa minha. Vamos...

“Eu amo a rua. (...) Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua. (...) A rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!”.

Circulo pelo Calçadão da Batista e lá reencontro Celsão, um artesão a viver de sua arte. Seu ponto fico é na praça Rui Barbosa, mas desde que a reforma do lugar começou o ajuntamento dentre os tantos por lá tornou impraticável seu comércio. Beneficiado que foi por ação do vereador Roque Ferreira, propiciando aos artistas atuarem no Calçadão mudou-se de mala e cuia para defronte a loja Pernambucanas e lá, com sua lona estendida no chão e seu alicatinho nas mãos, torce e retorce suas peças. Ao me ver sou chamado e me diz: “Escreva de mim, agradeça ao Roque por poder estar aqui. Isso foi conquista dele. Hoje, não só a praça é do povo, como o Calçadão”. Celsão é daqueles que, como eu, inventaram o próprio emprego e viaja país afora, fazendo turismo ao seu modo e jeito, ou seja, conhece lugares e trabalha nessas praças. Eu já parei com isso, ele não, o fará, pelo visto enquanto tiver forças.

“Em Benares ou Amsterdã, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. (...) A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. (...) A rua é generosa. (...) A rua é transformadora das línguas. (...) A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres... (...) A rua sente nos nervos a miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues e todos os lugares-comuns.”.

Descendo a Antonio Alves, ali defronte o Empório Barres, do outro lado da rua permaneceu por anos um vendedor e sua velha perua Kombi, primeiro vendendo frutas e legumes, depois só plantas. Seu nome era conhecido de todos, simplesmente João. De uma hora para outra sumiu, escafedeu-se. Preocupado fui perguntar dele no estacionamento onde guardava suas coisas. O que ouvi foi reconfortante. Assim recebi a informação: “João precisava se aposentar e conseguiu um emprego no CEASA, no box de flores. De segunda a sábado está lá, mas aos domingos continua na feira. Passe lá, vai ficar contente de saber que se interessam por ele”. Passarei nem que for para o abraço. João conseguiu galgar alguns degraus acima.

“A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios... (...) A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe (...), criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’ouro que se faz lama e torna a ser poeira – rua criou o garoto. (...) Para compreender a psicologia da rua é preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar.”.

Na esquina de baixo, ainda Antonio Alves com Ezequiel Ramos, no quintal da Casa Ponce Paz, sempre por ali o velho pintor e sua tela, retrando ao ar livre e fazendo questão de ser visto. Ele me diz: “Muitos passam e estranham, não estão acostumados. Em São Paulo ainda existem alguns como eu, aqui, pelo visto, hoje só eu. Adoro os que passam e puxam conversa. Até paro de pintar só para conversar melhor”. Junto dele um típico personagem das ruas, Denis Marques, um profundo conhecedor dos meandros das ruas bauruense, o que me deu a dica para escrever dias atrás sobre o “Ponto Vinte”, o dos taxistas que trabalhavam no movimentado ponto da zona. Conhece tudo das ruas, fonte inesgotável de pesquisa, uma enciclopédias ambulante sobre tipos, lugares e ocorrências. Se quer saber de fato algo das ruas fale com gente assim, que vive nelas. Aprendi isso e disso faço uso.

“Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali na esquina, seguir com os garotos, gozar nas praças os ajuntamentos, conversar com os cantores, é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir ali, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja...”.

Na banca de revistas eu bato os melhores papos desse mundo. Tenho algumas de minha preferência. Gostava muito da do Cláudio ali na Duque, mas ele foi dar um jeito numa lá na vila Falcão, defronte o Confiança e deixou a da Duque aos cuidados do filho, o Gustavo. Passo lá, mas o ajuntamento diminuiu. Converso muito na da Hilda, defronte o verdadeiro aeroporto. Ela é uma figura, aliás, imensa figura humana. Vive para seus cães, observadora como poucos. O aposentado Roberto Maldonado não sai dali, prefere ficar na prosa ali na rua do que dentro de casa. Não bate mais cartão, vai além disso, tanto que Hilda quando precisa se ausentar, como agora, cheia de dores, fisioterapia diária, larga tudo aos cuidados do amigo. Ele também muito bom de papo. A conversa fiada tem ali pouso e morada.

“Há nada mais enternecedor que o princípio de uma rua? É ir vê-la nos arrebaldes. (...) Oh! Sim, as ruas tem almas! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, aristocráticas, amorosas, ruas covardes, que ficam sem um pigo de sangue... (...) Há ruas que, pouco honestas no passado, acabam tomando vergonha. (...) Há entretanto outras ruas, que nascem íntimas, familiares, incapazes de dar um passo sem que todas as vizinhas não saibam. (...) Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vó já sentiu o mistério, o sono, as ideias de cada bairro?”.

Eu sempre fui vidrado em porteiros de prédios. Tem uns que são chatos pra dedéu, mas quando dão para serem bons e conversadores, sai de baixo. Daí tornam-se inigualáveis. Conheço vários e não existe solidão para quem mora sozinho e tendo um porteiro bom de papo, consiga se dizer em depressão. Seu Nezio Martins, que trabalha ali na travessa entre o shopping e o Aeroporto é um belo exemplo. Não queira lhe passar a perna, pois já viu de tudo nesse mundo, mas é a bonança em pessoa. Só não converso mais com ele, pois tenho medo de atrapalha-lo lá no seu ofício diário. Bom porteiro não é fofoqueiro, não fica no disque-disque, mas sabe prosear, contar histórias, ouvir causos e ser em muitos caos mais do que um bom conselheiro. Deveriam até por causa disso ganhar mais do que o próprio prefeito.

“A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. (...) Se as ruas são ente vivos, as ruas pensam, tem ideias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livre-pensadoras e até as ruas sem religião. (...) Entre as ruas existem também as falsas, as hipócritas... (...) Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. (...) A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo. (...) nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas.”.

Hoje passei lá pela Bernardino de Campos na saída da Falcão e nela vi algo que quase me fez bater o carro. Uma pequena porta aberta e lá dentro algo inebriante, o reduto profissional de um alfaiate. Um alfaiate resiste ali naquele lugar e ao olhar lá para dentro vejo muita roupa sob as mesas, demonstrando que algum trabalho ele deve ter por ali. Esse resistente personagem deve ter histórias mil para contar, relatos desconcertantes de vida e não conseguirei ficar muito tempo sem ali aportar, assuntar de quem seja o dono, ouvir, ouvir e ouvir. Alguém aí sabe quem possa ser esse tal de Valsan Alfaiate?

“Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão que tenha passado metade da existência numa não se habitua jamais com outra. Os intelectuais sentem esse tremendo efeito de ambiente, menos violentamente, mas sentem. (...) As pedras! As pedras são as couraças das ruas, a resistência que elas apresentam ao novo transeunte. (...) As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para os inimigos. (...) O homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisa interessar à rua. (...) No espírito humano a rua chega a ser uma imagem que se liga a todos os sentimentos e serve para todas as comparações.”.

O maior maravilhamento que vejo lá no Carioca, o tal da banca de livros no meio da Feira do Rolo é por descobrir ser ele um aglutinador de pessoas. Uma imensidão de gente gravita no seu entorno e só estão ali por causa dele, eu um desses. E quando descobri isso, passei a ir mais e mais, ou seja, o cara é dotado de um alto poder magnetizante, inebriante, um perigo, diria, pois pode nos levar para cima ou para baixo, para o nirvana ou para o buraco. Não me preocupo com isso. O que me motiva é ver o tanto de gente que por ali passa, ali para conversar, simplesmente jogar conversa fora. Aquele lugar merece mais do que um tratado sociológico, merece um amplo estudo de como algo tão simples pode vir a ter um inestimável poder de convergência humana. Carioca, mesmo sem o saber é um desses seres iluminados, acima do bem e do mal, propiciando a felicidade para muitos, pelo simples fato de ali estar, de ali permanecer e de ali irradiar coisas boas para tudo, todas e todos. Poderoso essa cara, viu!

“...considerarei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante. (...) A rua tem ainda um poder de sangue e de sofrimento. (...) olhai o mapa das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical. As ruas são perecíveis como os homens. A outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada, pela qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia, a inveja. (...) Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na ruína, rua das lágrimas, rua do desespero – interminável rua da Amargura...”.

Encerro esse longo texto sabadal com algo que li na última edição da revista Piauí, edição de setembro 2015. Dentre tudo o que tinha lá para ser degustado, algo me chamou a atenção. Para muitos passaria batido. Foi no texto onde um jovem escritor, Ta-Nehisi Coates explica, numa carta ao filho, o que significa ser negro na América latina. Certa vez em Chigaco, descendo pela rodovia Dan Ryan contempla pela primeira vez um imenso local com apartamentos populares para pobres norte-americanos, o STATE STREET CORRIDOR. Olha o que ele escreveu do lugar: “Uma extensão de mais de seis quilômetros de conjuntos habitacionais decadentes. Havia moradias populares desse tipo por toda Baltimore, mas nada tão abrangente. Essas moradias me parecem um desastre moral não apenas para as pessoas que lá viviam, mas para toda a região, uma metrópole de pessoas que se transportam todo dia de suas casas para o trabalho e passam por ali, e que com sua muda aquiescência toleram uma coisa dessas. Mas nesses prédios havia muito mais do que eu, mesmo com toda minha curiosidade, estava preparado para ver”. São esses lugares que me interessam. Fiz uma pesquisa rápida e iguais a ele, muitos aqui perto de nós, em menores proporções, mas tão ou mais aviltantes e neles pessoas, gente cheia de vida e histórias. É isso, é sobre a alma contida nisso tudo que reside o meu mais profundo interesse. Conhecer para transformar e mudar. Vamos que vamos.

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